Maria Manuel Rocha nasceu em 1960, em
Aveiro, cidade onde sempre tem vivido. Licenciou-se na área das Letras
pela Universidade de Aveiro. É professora aposentada. Durante anos, foi
colaborando esporadicamente em publicações conjuntas: revista literária
Sol XXI, jornal regional “O Aveiro”, “Da Poesia – vol.
II” (ed. Minerva),
“Antologia de Contos” (ed. Sol XXI), “Folhas, Letras & Outros Ofícios”, nº
14 (ed. Grupo Poético de Aveiro), antologia, “Mar” (ed. Grupo
Poético de Aveiro), Antologia “Poetas
d’ hoje” (ed. Grupo Poesia da Beira-Ria, Aveiro). Publicou o livro “As
Horas Possíveis” (poesia) em 2014 e “A Porta e Outras Prosas” (contos) em
2015. |
Se o céu não muda,
o vazio permanece - onde as palavras?
Lá fora, as gotas de chuva insistem em cair, engrossando sobre os vidros
foscos da janela e os ramos das árvores desesperam-se em vão. De tempos a
tempos, uma figura apressada rasteja a parede rumo ao lar.
Ele
sempre procurava abrigo ali. O único cliente. O empregado levantou-se com
relutância.
- O do
costume?
Anuiu
com a cabeça. A nuca destapada fê-lo tremer. O céu não muda.
- O céu
não muda - disse.
Sentiu-se nu por dentro. Necessitava absolutamente de criar, era-lhe
indispensável como o ar que respirava ou a água que lhe lavava o organismo
e renovava as energias. Mas o vazio instalara-se. E o desconforto também.
Semanas a fio assaltadas por questões incontornáveis, noites de insónia
não resolvidas, horas de espera aguardando um sinal íntimo, pesadelos como
as da infância em que tentava
atravessar uma ponte oscilante, agarrava-se ao corrimão de corda e os pés
resvalavam nas rugas do tabuado; se a ponte oscilasse um pouco mais, a sua
certeza desapareceria num segundo e as frechas lhe saltavam aos olhos,
pareciam abrir-se em poços fundos como se caminhasse um espaço vazio que
impiamente se rasgava em buracos, condenando os pés a um frenesim temente
da queda, o mistério da queda. As aberturas iam tornando-se ínfimas,
pequenos olhos rasgados no chão de madeira, íris turva de água e já não
sabia, nunca saberia, de que são feitos os sonhos, se as palavras
transportam a imagem do mar em dias de benevolência. Nem sabia ao certo
que memória o assaltava naquela suspensão sem rumo das certezas feitas de
regras e convenções, hábitos e dúvidas metódicas mal resolvidas na
urgência dos dias.
A existência estagnara naquele fim de mundo, de caminhos de pedra, onde
pensara recuperar da inércia que o dominava há meses. Faltava-lhe tão
essencial como memórias do mundo perceptível e interior. Havia palavras
que não lhe saíam da cabeça: o vazio antecede a criação, mas também era
verdade que nada nasce do nada. O lugar vazio é a necessidade humana de
preencher a sua própria necessidade possível. Mas como tardava a
metamorfose! Um homem ávido de céu e luz... Assaltou-o o medo de um ser
kafkiano, isolado na sua inabitabilidade. Fechou-se ao devaneio.
- Se o
dia acabasse aqui mesmo.
- Que
disse?
Olhou o empregado com
espanto. Por momentos, esquecera a mesa em que se apoiava, de tampo de
mármore rachado e pé de ferro antigo, o chão de azulejo xadrezado, mosaico
gasto e mal lavado, o balcão corrido, as moscas e até as vozes vindas do
aparelho de televisão ao canto da sala. A simplicidade dos objectos
era-lhe, de algum modo, familiar. Ou talvez não. Simplicidade era coisa
que não existia na sua vida. Só lágrimas soltas, gota a gota, fiapos de
lonjura. Se tudo acabasse ali. Na noite de um café de beira de estrada.
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