Quando
junho vier, antes de outubro chegar, milhões de leitores serão
enganados por um falso Machado de Assis.
É
que serão distribuídos seiscentos mil exemplares (600.000; você não
leu errado!) de uma edição falsificada de “O alienista”, uma história
de loucos, isto é, de médico e louco, dos quais todos nós temos um
pouco, mas não na dose a ser administrada ao distinto público nas
próximas semanas.
Machado de Assis foi o maior escritor brasileiro de todos os tempos.
De seu livro roubado e mutilado foi produzida essa montanha de
equívocos, com o seu, o meu, o nosso dinheiro, por meio de um recurso
fabuloso, a renúncia fiscal, que, entretanto, tem resultado em
projetos culturais tão louváveis, bonitos e importantes! Mas que vem
se prestando também a algumas falcatruas.
A
vida do Bruxo do Cosme Velho, como o chamou Carlos Drummond de
Andrade, não foi fácil, mas, se ele vivesse no Brasil de hoje, seria
ainda pior. Poucos entendem seus livros nos circuitos escolares, e a
razão é muito simples. Basta olhar nossos indicadores de educação no
mundo!
Mas o motivo é outro, segundo nos esclarece Patrícia Secco, a autora
da “adaptação”.
“De onde menos se espera, daí é que não sai nada”, profetizou o
lendário humorista gaúcho Barão de Itararé. “Entendo por que os jovens
não gostam de Machado de Assis”, disse Patrícia Secco ao jornalista
Chico Felitti. “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não
entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico
isso.”
Escreve o jornalista: “Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho
uma versão de ‘O alienista’, obra de Machado lançada em 1882, em que
as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos
mais comuns (um ‘sagacidade’ virou ‘esperteza’, por exemplo).” (…) “A
ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.”
Machado era órfão de mãe (de pai é uma coisa, de mãe é outra, o
abandono é ainda maior!), descendente de negros, pobre, gago,
epiléptico, casou com uma solteirona portuguesa que tinha comido a
merenda antes do recreio, e não tiveram filhos para não transmitir a
ninguém o legado da doença. Mas deixou-nos uma obra imortal!
Mais que gênio, oxigênio de nossas letras, Machado venceu preconceitos
de raça, de cor, de dinheiro, de tudo. Mas não passou pela senhora
dona Patrícia Secco, em breve “coberta de ouro e prata (600.000
exemplares!)”, mas que “descubra seu rosto”, “queremos ver a sua
cara”.
Augusto Meyer disse que “quase toda a obra de Machado de Assis é um
pretexto para o improviso de borboleteios maliciosos, digressões e
parênteses felizes”.
Araripe Júnior também foi outro que se enganou: “Filho das próprias
obras, ele (Machado) não deve o que é, nem o nome que tem, senão ao
trabalho e a uma contínua preocupação de cultura literária.”
Astrojildo Pereira enganou-se ainda mais: “Machado de Assis é o mais
universal dos nossos escritores; (…) ele é também o mais nacional, o
mais brasileiro de todos.”
O
francês Roger Bastide, destacando a paisagem carioca que poucos viam
em Machado, concluiu: “Escrevi estas páginas de protesto contra os
críticos literários que lhe negam essa qualidade: humilde homenagem de
um estrangeiro a um mestre da literatura universal.”
Paro por aqui. A senhora dona Patrícia Secco não tem o direito de
fazer o que fez. A obra de Machado de Assis não é dela. É patrimônio
do povo brasileiro.