No
instante, sou morto-vivo, mas, por milagre, lembro a loucura da vida.
Nasci,
os pais eram deuses e existiam princípios. Era um crente. Mal acorda(n)do
da liberdade, vi-me divisado entre "bem" e "mal". Mantinha-me livre de
preocupações.
Veio o
medo, a luta, a consciência, ganhei apego ao pensamento e à repetição. Na
repetição encontrava a liberdade, o ciclo vicioso esgotava com perfeição o
esforço da clareza.
Era
obsessivo-compulsivo, já o sabia quando saí do armário, a culpa não cessa
quando se nomeia o problema, assim, mantive sempre as vestes,
desarrumadas, enquanto pulava de prateleira em prateleira.
Os
primeiros pulos eram no concreto, no autismo, fui materialista mas já
querendo afiançar outra coisa qualquer. "Arperger", houve quem dissesse, a
verdade prévia perdeu terreno para a descoberta. A verdade chegou a ser
clara, quando o juízo era ou parecia perfeito.
O
"abstracto" viria mais tarde com muito mor força. Os pensamentos viriam
chocar, chocalhar, a verdade. Da descoberta passaria à construção. Deixei
de ser "prático", preferi ser o "da triste figura", substituindo o "ego"
que conhece sem "dúvida" pela própria dúvida refundida em "verdade", em
"imagem" esculpida pela indómita vontade, logo tragada pelo "todo".
Comecei
a psicotizar. Transformei-me nas próprias imagens, o mundo era suspeito, a
verdade inalcançável, tudo o que "era" deixou de ser e passou a "ser" o
que "é" "sendo". Todos acharam que tinha perdido o juízo. Mas, como o "da
triste figura", mantinha pura noção do "valor".
Fundei
uma seita. As minhas imagens tornaram-se "princípios". Escrevi um livro
com que esculpi a nova moral. Fui pai de uns quantos tristes. Salvei uns
tantos homens com a ilusão. E porque salvei "mais", tive maior relação com
a verdade.
A minha
verdade tornou-se religião, afogou o próprio concreto, como o abstracto,
cedendo-lhe o esteio da "normalidade", o intervalo moral da descoberta. E
o concreto deu de beber às imagens. Os descobrimentos são invenções que
nutrem invenções.
Entretanto, psicotizei de vez. Perdi completamente o juízo.
Quando
reparei já estava morto. Livre. Ando pelo mundo, convicto sem controlo ou
previsão, ajuizado de vez.
Obedeço, simplesmente, sem o saber. Se o soubesse, estaria vivo, como
quando relembro, forjando a culpa. Pode ser que construa o que rememoro,
aí estarei ajuizando a própria história, dando um sentido ao tempo e um
tempo ao sentido, ápice de um tempo maior onde os ciclos se recriam "ad
aeternum", livremente cauterizados em demissão compulsiva do acaso.
Luís Coelho, escritor
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