Luís Coelho. Terapeuta, filósofo, poeta, ensaísta, o autor tem dimensões várias difíceis de qualificar. A sua obra possui uma dupla componente de espiritualização do material e de psicanalização do Espiritual. Tem vários livros publicados. «Crítica da Razão Espiritual (...)» e «O Homem-Deus (...)» [ambos pelas Edições Mahatma, 2015] são os mais recentes. 

Sou um louco assumido

No instante, sou morto-vivo, mas, por milagre, lembro a loucura da vida. 

Nasci, os pais eram deuses e existiam princípios. Era um crente. Mal acorda(n)do da liberdade, vi-me divisado entre "bem" e "mal". Mantinha-me livre de preocupações. 

Veio o medo, a luta, a consciência, ganhei apego ao pensamento e à repetição. Na repetição encontrava a liberdade, o ciclo vicioso esgotava com perfeição o esforço da clareza. 

Era obsessivo-compulsivo, já o sabia quando saí do armário, a culpa não cessa quando se nomeia o problema, assim, mantive sempre as vestes, desarrumadas, enquanto pulava de prateleira em prateleira. 

Os primeiros pulos eram no concreto, no autismo, fui materialista mas já querendo afiançar outra coisa qualquer. "Arperger", houve quem dissesse, a verdade prévia perdeu terreno para a descoberta. A verdade chegou a ser clara, quando o juízo era ou parecia perfeito.  

O "abstracto" viria mais tarde com muito mor força. Os pensamentos viriam chocar, chocalhar, a verdade. Da descoberta passaria à construção. Deixei de ser "prático", preferi ser o "da triste figura", substituindo o "ego" que conhece sem "dúvida" pela própria dúvida refundida em "verdade", em "imagem" esculpida pela indómita vontade, logo tragada pelo "todo". 

Comecei a psicotizar. Transformei-me nas próprias imagens, o mundo era suspeito, a verdade inalcançável, tudo o que "era" deixou de ser e passou a "ser" o que "é" "sendo". Todos acharam que tinha perdido o juízo. Mas, como o "da triste figura", mantinha pura noção do "valor".  

Fundei uma seita. As minhas imagens tornaram-se "princípios". Escrevi um livro com que esculpi a nova moral. Fui pai de uns quantos tristes. Salvei uns tantos homens com a ilusão. E porque salvei "mais", tive maior relação com a verdade. 

A minha verdade tornou-se religião, afogou o próprio concreto, como o abstracto, cedendo-lhe o esteio da "normalidade", o intervalo moral da descoberta. E o concreto deu de beber às imagens. Os descobrimentos são invenções que nutrem invenções.  

Entretanto, psicotizei de vez. Perdi completamente o juízo.

Quando reparei já estava morto. Livre. Ando pelo mundo, convicto sem controlo ou previsão, ajuizado de vez.

Obedeço, simplesmente, sem o saber. Se o soubesse, estaria vivo, como quando relembro, forjando a culpa. Pode ser que construa o que rememoro, aí estarei ajuizando a própria história, dando um sentido ao tempo e um tempo ao sentido, ápice de um tempo maior onde os ciclos se recriam "ad aeternum", livremente cauterizados em demissão compulsiva do acaso.

 

Luís Coelho, escritor