JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES
MEDALHÕES E SIMULACROS: A ACTUALIDADE DE MACHADO DE ASSIS

Confiar en las apariencias, sumergirse en ellas, interrogarlas, es el único camino de todo conocimiento religioso, filosófico, ético e artístico o científico. Alfonso Reyes, De Viva Voz, II: Prólogo


A contemporaneidade, o tempo que nos foi dado viver, vem se caracterizando – de um modo irreversível, ao que tudo indica – pelo império das aparências, do espetáculo (vide a inflação dos inapropriadamente chamados reality shows espalhados pelas TVs do mundo), e pela ditadura do discurso. Aos homens do nosso tempo, não interessa tanto ser, como parecer; importa menos o objeto do que o discurso sobre o objeto. A condição contemporânea, tantas vezes rotulada de pós-moderna, poderia, numa vasta medida, ser chamada de pós-real, pois nunca, como agora, os referentes concretos da realidade se mostraram tão porosos ou esmaecidos. As origens do virtual de hoje, contudo, podem ser rastreadas ainda no século XVIII, não apenas em eventos como a revolução industrial, que trouxeram – primeiro para o mundo do trabalho, depois para os demais aspectos da vida – uma convivência com a máquina até então impensada e impensável, como, também, a partir dali, nas reflexões sociológicas e filosóficas que a tomaram como tema e, sobretudo, na literatura, território onde a loucura e os fantasmas – inclusive os do mundo dito “real” – trafegam com uma desenvoltura não desejável ou permitida às ciências “duras”. Machado de Assis, por exemplo, no conto Teoria do medalhão (1881), já diagnosticava esse fenômeno que só se consolidaria e se tornaria evidente nos dias atuais: a desmaterialização da realidade que vai, aos poucos, se transformando num signo ou num simulacro e a instauração do império das aparências, do espetáculo.

Como já apontou o teórico e crítico norte-americano Fredric Jameson, em um ensaio seminal sobre a contemporaneidade, a sociabilidade regida pelas aparências, imposta pela necessidade de “se dar bem”, projeta e torna natural um padrão de comportamento que, tal como se apresenta, não faz parte da natureza humana. A paixão pelo status social é uma experiência que foi reificada (glamourizada, até, eu diria) e posteriormente projetada para as pessoas como um valor em si mesmo, despido de seu significado simbólico – o desejo de aceitação – e transformado em algo que hoje parece atributo de uma natureza humana intrínseca (1).

Essas questões, que se revestem de uma importância filosófica, na medida em que estão relacionadas com a essência do humano e com sua fragilização, são brilhantemente tematizadas no conto de Machado. Aqui, a conversa de um pai com o filho, no dia da maioridade deste último, é o pretexto de que o escritor se serve para problematizar a condição humana moldada pelo social e para, uma vez mais, nos revelar a perspicácia e a atualidade de seu discurso. Nesse sentido – e se a validade de uma teoria, de uma análise, guarda íntima ligação com sua coerência com os fenômenos observados e com sua capacidade de prever fenômenos futuros –, Machado se inscreve, com esse conto, no rol dos grandes pensadores da cultura em qualquer tempo. A “falência” do real, do universo do ser, e a instauração de um mundo feito de aparências, de simulacros – o qual adquire um status de realidade – é o tema da Teoria do medalhão, onde a identidade do indivíduo é determinada por imagens e mitos criados externamente, onde a realidade e a teoria se fundem e confundem, gerando uma pseudo-realidade ou realidade virtual que, paradoxalmente, acaba por se constituir na realidade de fato, na medida em que nela é que se dá a sociabilidade, a relação entre os indivíduos.

Já numa primeira leitura do conto, ficam evidentes os elementos que caracterizam a pobreza existencial do universo social que Machado retrata: o autoritarismo paterno, a hipocrisia da vida baseada em aparências, o reacionarismo de uma visão de mundo que propõe não a transformação da vida, mas a adequação – o mais vantajosa possível – ao modo como ela se apresenta. O primeiro elemento dessa série, o autoritarismo do pai, sobejamente presente no conteúdo da fala do personagem, se revela também graficamente, no contraste entre os longos parágrafos que seu discurso ocupa no texto – trinta e duas linhas no parágrafo que inicia na página 332 e vai até a seguinte em minha edição (2) – e a fala monossilábica do filho que ocupa, quando muito, duas linhas. O próprio pedido do pai para que o filho abra a janela tem um quê de autoritário, como se fosse uma senha para o filho “abrir-se” e deixar o que vem de fora – os conselhos do pai – entrar. O que, porém, vem a seguir, travestido de conselhos, nada mais é do que a manifestação dos desejos do pai, que nutrira ele mesmo, em sua mocidade, o sonho, frustrado, de ser medalhão:

(...) Mas qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante. (pp.328-329).

Já nessa passagem, há a fusão de dois dos elementos que apontei como evidentes no conto: o autoritarismo paterno e o seu reacionarismo, o qual se revela numa visão fatalista da vida. Convém notar, contudo, que, em vista do que virá depois, essa aceitação das coisas se refere tão somente à vida, em geral, não à vida de Janjão, que deverá ser grande e ilustre. É como se o pai dissesse: “para os outros nada; para nós tudo”. Ou, ainda, numa variação tristemente associada aos políticos de nosso tempo: “aos amigos tudo; aos inimigos os rigores da lei”. Esse pragmatismo cínico, fundado nos interesses próprios que se sobrepõem a todo o resto, vão se desdobrando ao longo da exposição do pai:

– Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. (p.329)

A partir daqui, revelando textualmente – ainda que de forma inconsciente – os seus verdadeiros propósitos, o pai passa a discorrer, num tom algo professoral e “científico”, sobre o medalhão, iniciando a “teoria” com uma digressão pormenorizada a respeito da idade em que o verdadeiro medalhão se manifesta (p329). Afloram então, nessa passagem, os ecos do cientificismo, do positivismo, do discurso racionalizante da época, enfim, fina e corrosivamente ironizados por Machado que vai, paulatinamente, desmascarando a pseudo-filosofia banalizadora usada como instrumento de prestígio social, como já, aliás, demonstrado por Benedito Nunes em seu ensaio Machado de Assis e a filosofia (3). No mundo dos medalhões descrito por Machado, onde a aparência é o que conta, o uso de termos como “metafísica” ou “filosofia da História” traz para quem os emprega uma aura de respeitabilidade à qual se agrega a admiração, fim último e narcísico de toda a trajetória de aparências do medalhão bem sucedido, ainda que o preço dessa admiração seja o sacrifício de qualquer originalidade de pensamento, como reitera o pai ao considerar a hipótese de o filho seguir a carreira parlamentar:

(...) Quanto à matéria dos discursos, tens à escolha: – ou os negócios miúdos ou a metafísica. Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-tom, própria do medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; – é mais fácil e mais atraente (...) Nenhuma (imaginação), antes faze correr o boato de que um tal dom é ínfimo. (...) Entendamo-nos: no papel e na língua, alguma (filosofia), na realidade nada. “Filosofia da História”, por exemplo, é uma locução que deves empregar com freqüência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc. (pp.336-337)

Como se vê, o uso de termos rebuscados revela-se como um dos pilares em que se apóia o medalhão, e a proibição a qualquer reflexão ou originalidade – que faz lembrar a atitude do pai do filósofo e matemático Blaise Pascal, proibindo-o de estudar matemática por achar que quem a ela se dedicava perdia contato com todo o resto (4) – nada mais é do que um modo de manter o foco unicamente no “campo de ação” do medalhão, sem “obstáculos” que possam afastá-lo do caminho. Nesse sentido, o império do discurso, constituído pela palavra em si mesma, sem um referente concreto no mundo real, é um elemento a mais na construção de um universo de aparência, de espetáculo, daí, então, o esvaziamento de conteúdo semântico das palavras, que passa a ser o ideal de todo o medalhão que se imiscui na política:

(...) Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos (...). (p.336)

A atualidade desse fragmento é impressionante e faz pensar. Poderia, perfeitamente, ser a descrição emblemática de uma prática de nossos dias: o fisiologismo e o descomprometimento com idéias ou ações políticas. No conto de Machado, esse uso oportunista de palavras alia-se a um outro elemento fundamental no mundo narcísico das imagens: a publicidade do eu, a auto-promoção ou – usando uma terminologia mais afeita aos modismos atuais – o marketing pessoal:

(...) A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. (...) Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos de mundo. (...) (p.334)

Não deixa de ser sintomático que o individualismo, o pragmatismo e a hipocrisia, elementos de dissimulação da realidade e de construção de um simulacro – o medalhão – presentes no conto de Machado, assemelhem-se tanto aos elementos característicos de nosso tempo identificados por vários teóricos da contemporaneidade. O próprio Fredric Jameson, já citado aqui, aponta, em diferentes ensaios, para a rarefação das relações humanas, a qual decorre, justamente, da superficialidade imposta pelo predomínio, na vida atual, da vida pública, da moda, dos locais de exibição e dos padrões de comportamento calcados nas aparências. Poder-se-ia argumentar, aqui, que esses elementos não são específicos da vida contemporânea ou da época de Machado; que a idéia de imagem, entendida como um elemento externo à essência das coisas, é uma idéia rastreável até a pré-História. Nada disso, no entanto, invalida o fato de que Machado de Assis, sendo essencialmente um homem de sua época, consegue extrapolá-la e atingir a estatura de um escritor universal, não apenas geograficamente, mas também no tempo (não será à toa que em outro de seus contos, O Alienista (1882), já estejam presentes traços do que viria a ser a anti-psiquiatria, no século XX) . “O clássico”, diria Italo Calvino, “não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber) mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (...)” (5).

N O T A S

* Colaborador de Triplov, professor, doutor em literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Brasil, com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance “O quieto animal da esquina”, de João Gilberto Noll.

1 Cf. JAMESON, Fredric. Pós-modernidade e sociedade de consumo. In: “Novos Estudos” – Cebrap, São Paulo, nº12, junho/1985, pp.16-26.

2 ASSIS, Machado. Teoria do medalhão. In:__. Contos/Uma Antologia. Vol I. Seleção, introdução e notas. John Gledson. 2ª ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp.328-337.

3 Cf. NUNES, Benedito. Machado de Assis e a filosofia. In:__. No Tempo do Niilismo e Outros Ensaios. São Paulo, Ática, 1993, p.132.

4 Ver os fragmentos da biografia de Pascal, de autoria de sua irmã Gilberte, reproduzidos no livro A Magia dos Números, de Paul Karlson. Trad. Henrique Carlos Pfeifer, Eugênio Brito e Frederico Porta. Porto Alegre, Globo, 1961, p.347 e seguintes.

5 Cf. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. In:__. __. Trad. Nelson Moulin. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.12.

Júlio César de Bittencourt Gomes. Colaborador de Triplov, professor, doutor em literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Brasil, com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance O quieto animal da esquina, de João Gilberto Noll.