A questão, porém, e de novo, é o entrelaçamento dos fios. O perigo de se incorrer no primeiro erro, isso é, o de levar demasiadamente longe só o que o texto autoriza, é o de pagar pela obra o que ela diz que vale, e não o que sua estrutura, o seu arranjo interno, enquanto obra literária, permite validar. O perigo de se deixar levar pelo o que o texto sugere, por sua vez, é o de se sobrevalorizar as alusões e tomar como valor estético, filosófico ou de outra ordem, o que é mero adorno ou impostura. O risco fatal por excelência, contudo, é ainda o de construir um texto que não existe. As resenhas jornalísticas, por exemplo, são pródigas em casos de autores alçados à condição de gênios e textos rotulados como “definitivos”, construídos e desmanchados, uns e outros, no curto intervalo de duas edições de jornal. Concordo que quando se fala de literatura não é muito saudável falar em estabilidade do texto ou significações determinadas; as verdades manifestadas pela literatura são sempre conjecturais, subjetivas e, como tais, necessariamente instáveis e provisórias. Há, no entanto, que se evitar os riscos daquilo que os norte-americanos chamam de wishful reading, isto é, a leitura da vontade, o desejo de que o texto diga o que se quer ouvir; que se encaixe na vivência de leituras, na experiência do leitor. Essas digressões iniciais que faço aqui, vão a propósito menos do texto e do autor dos quais pretendo dizer algumas coisas, do que das coisas, propriamente ditas, e do modo como as quero dizer. São derivações, na verdade, motivadas por meu próprio ensaio e por seu lugar de fala, que pode parecer, a priori, inadequado, por extrapolador, ou ilegítimo, por descabido. Faço aqui, no entanto, a minha defesa: desconheço e ponho em dúvida o lugar e a importância da literatura de cunho fantástico no Brasil. Se tomarmos como fantástico, para fins comparativos, um seu subproduto, o fenômeno do “realismo mágico” que se dá na literatura latino-americana, certamente se terá que concluir que ele não existe na literatura brasileira. Mesmo os casos mais inusitados, como o de Murilo Rubião, por exemplo, não se encaixam no rótulo. Estão mais para o estranho, o insólito (com tudo o que esses termos têm de vago, de nebuloso) de estirpe kafkiana, do que para o “real maravilhoso” de Alejo Carpentier. Ignoro, também, o vigor de uma crítica “esotérica” da obra de Guimarães Rosa - a despeito da crescente bibliografia nesse sentido (2) - enquanto um sistema estabelecido. Não sei quem são seus teóricos nem qual a consistência de seus pressupostos. Parece-me que a pletora de trabalhos nesse sentido vindos à luz ultimamente, configuram mais esforços individuais e fragmentários (comoventes sim, na sinceridade de seus propósitos) de leitura do mágico, do que uma metodologia consistente de abordagem do texto literário. Vou, no entanto, render-me aos fatos: textos como os de Clarice Lispector ou os de Guimarães Rosa, vazados, muitas vezes, por uma intrincada simbólica ocultista, realmente clamam por uma abordagem desse tipo. Não para demonstrar, como inútil e equivocadamente se têm feito, que seus autores conheciam textos arcanos ou a tradição esotérica, mas, no caso específico de Guimarães Rosa, para iluminar (como se precisasse) a sua imensa capacidade como escritor, a sua eficácia narrativa e poética, a sua diabólica habilidade em transpor para um universo de pura linguagem, o simbolismo arcano que, mesmo quando inacessível ao leitor médio, não elide os outros sentidos que se encontram na própria superfície narrativa dos fatos. Consciente, então, dos riscos nos quais incorro, mas fiel à idéia de que a leitura acontece no corpo textual, sendo também um objeto estético (o que justifica a pretensão ensaística de meu texto), vou atrever-me, aqui, a expor uma leitura que, pretendendo se aproximar do complexo universo de Guimarães Rosa, da imensidão infinita de seu olhar sobre o mundo, se deixará tornar permeável à possibilidades de compreensão que transcendam o unicamente literário para acolher o plano mais vasto da multiplicidade dos caminhos, da troca, da “conversa” não só com a poesia, que permeia o tempo todo a ficção roseana, mas também, “en passant”, com a filosofia e, sobretudo, com a tradição alquímico-esotérica (3). Esta postura, longe de menosprezar o que há de realidade empírica mais imediata no texto de Rosa, o que de há de narrativa, de história por contar em sua obra, quer-se apenas como um exercício a mais de compreensão de uma poética que trafega constantemente por veredas filosófico-metafísicas. Rastrear essas vias na ficção de Rosa, aliás, não é tarefa das mais difíceis, na medida em que o próprio escritor sempre forneceu, concretamente, os sinais, as pistas místicas e metafísicas de aproximação à sua obra. Estão aí a lemniscata, símbolo grego do infinito, que serve de pórtico a Sagarana e a Grande Sertão:Veredas; os símbolos ocultos, esotéricos, desenhados em Primeiras Estórias (4); as citações platônicas e religiosas presentes ao longo de toda a obra; os traços que se repetem na fala dos personagens, os quais fazem, permanentemente, digressões de cunho filosófico e sapiencial; e mesmo os temas simbólicos, arquetípicos, recorrentes em cada página: a imagem do rio, a idéia de jornada, de travessia; e, fundamentalmente, o Sertão, visto aqui não apenas como área geográfica, mas, principalmente, como microcosmo, como espaço de questionamento da condição humana. Nesse sentido, a obra de guimarães Rosa é toda ela uma busca de transcendência, um meio de quebrar os condicionamentos limitadores do cotidiano e (re)instaurar o sentido mí(s)tico das coisas: Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade, precisamos também do obscuro. (5) Essa necessidade do obscuro, do oculto, apontada por Rosa, é também um desejo de libertação da lógica racionalista, cartesiana, que se pretende como uma síntese totalizadora da vida. Em cada frase de Rosa há como que um germe da consciência de que o processo de apreensão do mundo através unicamente do pensamento lógico tende a revestir a realidade com um verniz de compreensão que, na verdade, apenas entorpece a percepção e induz a ver como óbvio, banal, algo que é, por essência, estranho e misterioso; algo que contém em seu âmago um elemento fundador, vital, que a razão não consegue enunciar. Sob esse prisma, o conto A terceira margem do rio (6) é uma peça emblemática, podendo servir de epígrafe a toda a obra de Guimarâes Rosa. Aqui, um homem “cumpridor, ordeiro e positivo”, desde sempre integrado ao pequeno mundo de um vilarejo interiorano, subitamente, e sem nenhuma explicação, resolve abandonar tudo para viver numa canoa, num eterno movimento de ir e vir rio acima, rio abaixo. Esse movimento, que se esgota em si mesmo, sem a finalidade prática de conduzir a algum lugar, extrapola a lógica racionalista, utilitária, para tocar o plano místico, simbólico. As próprias palavras iniciais do conto (“nosso pai”), a partir das quais o narrador traçará o retrato da situação, já trazem em seu bojo ecos religiosos, de enunciação litúrgica, e a figura paterna, com sua quietude e silêncio, reveste-se desde o início com uma aura sobrenatural, como se já trouxesse, envolto em sua condição de homem, a presença de uma dimensão oculta, transcendente, não humana. Nesse sentido, tal como nos mitos sobre as origens , o contorno simbólico do pai, no conto de Rosa, se aproxima da simbologia do céu: manifestação direta da transcendência, da perenidade, da sacralidade, e sugere não apenas um distanciamento da ordem secular, como, também, no plano do narrador, insinua aquilo que Jean Chevalier chamaria de “um sentimento de ausência, de perda, que somente o autor dos dias poderia preencher”. Daí, então, um pouco da sensação de vazio e de culpa que assola o narrador: Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. (p.412) Exemplo de concisão narrativa e tensão poética (parece que a linguagem “fabricada” de Guimarães Rosa é o único modo possível de dizer a realidade que sua sensibilidade intui e quer manifestar), essas palavras sintetizam toda a fragilidade e perplexidade do narrador perante dois elementos de seu cotidiano que, subitamente, adquirem um contorno irreal e desconhecido: o pai e o rio. No entanto, o próprio narrador já os havia aproximado, de um modo velado e inconsciente, no início do conto: Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. (p.409) (...) o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. (idem, grifos meus) Nessa aproximação involuntária, já estão presentes os indícios da inevitabilidade da ação do pai, o qual, como que atendendo a um apelo maior, estaria apenas retornando às origens, ao que lhe é semelhante. Num jogo intertextual, me arriscaria a ver, aqui, uma harmonização entre o universo simbólico de Rosa e a tradição alquímica, a qual tinha como horizonte justamente a reintegração do homem em sua unidade primordial (8). Repare-se que, no universo de Rosa, o rio, elemento orgânico-primevo, confunde-se com o espiritual, com o Absoluto, e entrar em suas águas equivale a galgar a uma outra esfera. As águas do rio de Rosa revelam um sentido simbólico próximo àquele atribuído à água pelos antigos alquimistas: princípio de fluidez, fertilidade; umidade ao mesmo tempo mórbida e geradora, elemento, enfim, mais sutil que a matéria, pois pode elevar-se como vapor e depositar-se como orvalho, constituindo-se num elo entre o imanente e o transcendente (9). Por sua vez, ao retornar às origens, à fonte primordial, o pai está, também, cumprindo uma missão: servir, ele mesmo, de intérprete, de intermediário entre o mundo e o infinito. O narrador parece intuir isso desde o início, daí a sua fala: Meu pai, eu não podia malsinar. (p.412) É como se ele já soubesse o que os outros não viam, e dessa “premonição” do papel que a ele, filho, deveria caber ( o de substituir, um dia, o pai), decorre a sensação de culpa, uma culpa antecipada pelo vislumbre do porvir e da incapacidade de estar à sua altura. Sob esse prisma, o “sacrifício” do narrador, sua decisão de permanecer próximo ao pai enquanto toda a família se muda, é como que uma espécie de compensação, um pedido de desculpas por não fazer o que deve: Só fiz que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado á popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: -“Pai, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo,quando que seja, a ambas vontades eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. (p.412) O desfecho, contudo, é o oposto do que a ação do narrador parece apontar: o pai, tendo aceitado a oferta, dirige-se ao encontro do filho. Este, porém, ao se deparar com aquela figura quase sobrenatural, como que vinda do outro mundo, tem uma espécie de “horror metafísico” que o faz renegar o pai, tornando sua missão inconclusa: Ele me escutou. ficou em pé. manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro,depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (p.412) Com o choque do narrador, com sua súbita consciência da dimensão fantástica que envolve o que vive e presencia, corta-se o liame de ligação entre os dois planos. Enquanto durou o bailado do pai sobre o rio, houve como que um congelamento do tempo e uma interpenetração dos dois mundos, mas no momento em que se dá a rejeição, fecha-se a porta de acesso ao transcendente e tudo se reduz à imanência. Nesse sentido, esse conto, de aura tão mística e mágica, que absorve do fenômeno da vida toda a sua intensa e ampla carga dramática, encerra-se na aparente impossibilidade de manter próximo o que é, por essência, distante. Permanece, contudo, uma certa nostalgia de um além do qual um dia se teve o vislumbre e que nem mesmo um pedido de perdão poderá resgatar. Daí, então, o desejo do narrador ser um dia, ele mesmo, colocado numa canoa para vivenciar, já não mais através do pai, mas diretamente, a experiência do eterno: (...) e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro - o rio. (p.413) Relato misterioso, diálogo entre o transcendente insondável e a mais premente imanência, mas também elogio da linguagem e da literatura, essa pequena obra prima de contenção e eficácia poética impõe ao leitor o desafio e o desamparo das grandes obras. Paulo Rónai dizia que, para Guimarães Rosa, “escrever tinha tanto de brincar quanto de rezar” (10). A terceira margem do rio parece confirmar essa afirmação: ao mesmo tempo em que a narrativa insinua estar a serviço de uma dimensão oculta, a dimensão oculta sugere ser um mero pretexto para o jogo lingüístico, para a afirmação reiterada da mais radical experiência literária. Nessa ambigüidade de propósitos, na harmonização dos contrários, Rosa parece, como a famosa esfinge, lançar um desafio: “decifra-me, ou te devoro!” Felizmente, o número de vezes em que se pode ler a obra de Guimarães Rosa e descobrir coisas novas é infinito; a “decifração” não tem fim. Rosa afora, Rosa adentro, a leitura continua, reinventada, a cada vez, numa nova direção. Nonada. No Todo. (1) Cf. VALÉRY, Paul. Acerca do cemitério marinho. In:___. Variedades. Trad: Maiza Martins de Siqueira. São Paulo, Iluminuras, 1991, p.176. (2) Dentre a recente enxurrada de trabalhos que abordam, de um modo ou de outro, o simbólico e o místico em Guimarães Rosa, cito três que logram escapar da transposição pura e simples da linguagem esotérica para a construção literária: Poe e Rosa à Luz da Cabala, de Monique Balbuena, Rio de Janeiro, Imago, 1994.; A Metafísica do Grande Sertão, de Francis Uteza, São Paulo, Edusp, 1994, e, com algumas restrições, por suas escorregadas no “esoterês”, O Roteiro de Deus, de Heloisa Vilhena de Araujo, São Paulo, Mandarim, 1996. (3) Que Guimarães Rosa teve um interesse incomum por artes e assuntos metafísicos e esotéricos, o provam os inúmeros volumes dedicados ao assunto em sua biblioteca particular. No que diz respeito à alquimia, especificamente, encontram-se, entre outras, as seguintes obras, listadas como apêndice ao livro de Suzi Frankl Sperber, Caos e Cosmos, São Paulo, Duas cidades, 1976, pp.159-201: um volume bilíngüe, francês-grego, do tomo I do Corpus Hermeticum, atribuído a Hermes Trismegisto; Paris, Les belles lettres, 1945; um exemplar do Traités et Sermons, de Mestre Eckhart; Paris, Aubier-Montaigne, 1942, e uma edição do Le Miroir du Salut Eternel, de Ruysbroeck, o Admirável; Bruxelas, Vromant,1938. Ver, também, de Francis Uteza, o capítulo Rosa de oriente e ocidente, Op. Cit. pp-27-53. (4) Esses símbolos, presentes nas primeiras edições da José Olympio, foram inexplicavelmente suprimidos nas edições posteriores da Nova Fronteira e da Nova Aguilar. (5) Carta de Guimarães Rosa a seu tradutor alemão Curt Meyer-Classon datada de 9 de fevereiro de 1965. Citada In: BALBUENA, Monique. Poe e Rosa à Luz da Cabala. Op. Cit. p.52. (6) GUIMARÃES ROSA, João. A terceira margem do rio. In: Primeiras Estórias. In: Ficção Completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, Vol. II. pp.409-413. (7) Cf. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva (et al.), 8ª ed., Rio de janeiro, José Olympio, 1994, p.678. (8) Daí o mote alquímico: “Naturalissimum et perfectissimum opus est generare tale quale ipsum est.” (A obra mais natural e mais perfeita é gerar o que é semelhante a si mesmo.). Cf. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. Trad: Maria Luiza Appy (et al.), 4ªed., Petrópolis, Vozes, 1991, p.236. (9) Cf. a introdução ao Livro das Figuras Hieroglíficas, de Nicolas Flamel, alquimista francês do século XIV. Trad: Luís Carlos Lisboa, São paulo, Editora Três, 1984, p.22. (10) Cf. RÓNAI, Paulo. “Tutaméia”. In: GUIMARÃES ROSA, João. Op. Cit. Vol. I. p.160.
|