JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES - IMAGENS DE UMA  LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Há no universo mental brasileiro uma questão recorrente que, de modo circular, reaparece com maior ou menor vigor a cada geração, impondo-se como enigma e desafio: quem somos nós? Dos países latino-americanos, talvez o Brasil seja o que mais se afirme como “país original”, o que mais proclame, ao mundo e a si mesmo, a sua pretensa especificidade étnica, cultural e afetiva. Paralela e paradoxalmente, no entanto, talvez sejamos, também, o país que mais se deixe contaminar por influências exógenas, alheias à nossa cultura, que, minando nossas certezas, nos faz questionar, o tempo todo, nossa “identidade nacional”, nosso estatuto de nação. O caráter híbrido e fragmentado dessa identidade, na qual o eu parece ser ao mesmo tempo sempre um outro, e que já se tornou um clichê no modo como nos vemos e nos mostramos ao olhar estrangeiro, tem sido o leitmotiv de muita reflexão sociológica e filosófica: “(...) não somos europeus nem americanos do norte”, diz um pensador, “mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é.” (1)

Esse questionamento, ao meu ver ainda pertinente no plano histórico e sociológico (apesar do discurso hegemônico e homogeneizante da globalização), mas talvez já não tão premente no plano artístico, como pretendo deixar claro mais adiante, quando transposto para o âmbito da criação é “traduzido” da seguinte forma: pode uma estética (tomada aqui no sentido mais amplo) ser realmente autóctone, “nacional”, ou ela transcende, de um modo ou de outro, o localismo cultural para ser algo do plano dos arquétipos e, como tal, suas formas e manifestações recorrentes, simultaneamente, em qualquer lugar? Sinto-me inclinado à segunda alternativa. Essa tendência tem tanto a ver com a observação das artes contemporâneas e, mais especificamente, com a análise da literatura atual, quanto, num olhar em retrospectiva, com a leitura das escolas literárias e dos movimentos de vanguarda brasileiros.

Freqüentemente, nas análises críticas da literatura contemporânea, afloram exigências de “virtudes” e profissões de fé jamais requeridas à manifestações anteriores. Entre as acusações à literatura atual, estão desde o “crime” de lesa-pátria do “transplante” estético (a ficção de hoje nada teria a ver com a realidade brasileira, sendo apenas uma imitação, na forma e nos temas, das literaturas européias e norte-americana), até a incapacidade de “criar uma ambientação que mereça ser narrada (2)”, passando por um pretenso narcisismo dos autores, incapazes, que seriam, de relatar qualquer coisa além do próprio umbigo e criar algo novo, além do impasse.

No que se refere ao transplante estético, caberia perguntar: em que momento a literatura brasileira não foi transplantada? Da literatura colonial à Semana de 22 toda a teoria, todo o horizonte estético, foi sempre balizado pelas matrizes européias. A própria ambigüidade de propósitos do modernismo, aliás, teoria e comentário de nossas contradições, só reforça e perpetua o hibridismo da cultura brasileira. Quanto ao “novo”, por sua vez, essa mesma síntese ruidosa e instigante, na teoria, do autóctone, da língua brasileira, com as vanguardas, com os ismos europeus, mostrou-se, enquanto obra, mais como blague do que como revolução. Ferreira Gullar chega a dizer que “Oswald, o inventor do Movimento Antropofágico, não produziu nenhuma obra inspirada nos manifestos que escreveu. (3)”

Isso, contudo, nem mesmo é um defeito. José Saramago já disse certa vez – como que ecoando a constatação feita por Bob Dylan, nos anos 60, de que todos os livros já haviam sido escritos – que a quantidade do novo não é algo inesgotável (4). Que um dos mais originais e perturbadores escritores da atualidade e um dos compositores-ícones dos anos da contracultura, ele mesmo autor de um caudaloso e caleidoscópico livro de prosa-poesia chamado Tarântula (1966), relativizando a importância da originalidade e pondo em dúvida a existência do absolutamente novo, confluam num diagnóstico menos de uma possível incapacidade criativa contemporânea, do que de um modo de pensar estético, é coisa que faz pensar.

O alicerce das vanguardas (anacrônicas hoje em dia), fundava-se na idéia de legitimação de suas experiências estéticas no presente em conformidade com um tempo intangível, um futuro inalcançável, sobretudo (pareciam dizer) ao comum dos mortais. O anacronismo dessa idéia vem do fato de que, no mundo contemporâneo, os sujeitos, pressionados pela velocidade dos avanços tecnológicos, pela instantaneidade da informação e pela rarefação da idéia de nacionalidade e, conseqüentemente, de identidade individual; desconectados com o passado e impossibilitados de vislumbrar um futuro, passaram a viver num presente perpétuo. As artes, em geral, e a literatura, em particular, também vivem esse impasse, e daí o seu aparente narcisismo. A ênfase nas questões existenciais e anímicas do sujeito individual está diretamente ligada à incapacidade de vislumbrar, no plano coletivo, algum horizonte utópico por trás dos emparedamentos claustrofóbicos impostos pelos “consensos” políticos, econômicos e sociais que parecem ter tornado obsoleto qualquer projeto que busque transcender a lógica do materialismo imediatista vigente.

Aqui, então, e mais uma vez, a idéia de transplante estético se torna sem sentido, demonstrando o equívoco no qual incorrem as críticas convencionais, baseadas em critérios de validação incompatíveis com a condição atual. Num mundo em que os desdobramentos políticos e econômicos conduzem à hegemonia do mercado, minando, de fora para dentro, as fronteiras nacionais e a própria idéia de nacionalidade; num momento em que as bases tradicionais de representação literária entram em crise, forçando a reinvenção dos elementos movedores do relato, o âmbito do nacional, do autóctone, já não serve como plano de validação estética. Tanto isso é verdade que o eixo das preocupações da ficção brasileira contemporânea parece deslocar-se, cada vez mais, da discussão sobre a identidade nacional (ou regional), para o questionamento da identidade dos indivíduos, dos seres fragmentados que vagam pelos caóticos espaços urbanos. É a perda dos grandes referenciais históricos que está radicalmente manifestada nesses textos e os fenômenos da crise do narrador e da indeterminação dos gêneros são a confirmação disso. Se a idéia de nacionalidade, de identidade coletiva tornou-se rarefeita (e o ressurgimento dos particularismos culturais, religiosos e políticos, em última instância, nada mais é do que a recusa dessa rarefação), o eu individual, construído sobre os alicerces da cultura que o acolhe, também se fragmenta, fazendo, de um lado, com que a voz que fala na literatura, o sujeito do relato, se apresente sem contornos definidos, e, de outro, com que os temas se diluam como representação, como “história”, para se constituírem como imediatismo, como coisa em si (5).

Nesse sentido, irônica e paradoxalmente, a arte contemporânea parece realizar, sem manifestos ou planos-piloto, muito do que as vanguardas se propuseram. O horizonte plástico da ficção contemporânea, no qual a matéria da vida não é, como antes, transposta, mas sim, visceralmente, exposta (fruto de uma recusa do testemunho a posteriori das coisas, e do concomitante desejo de sintonia com a própria coisa), a técnica da simultaneidade, a sobreposição de temas e cenas, a inversão cronológica dos acontecimentos, a construção circular do relato, enfim, onde cada avanço do sujeito implica apenas no seu próprio deslocamento, como a sugerir a impossibilidade de progresso e a transformação do futuro num lugar, parecem muito mais em seu habitat agora, no tempo de contingência extrema que nos foi dado viver, do que nos anos 20 do século XX, nos quais o ímpeto de cantar a fumaça e o asfalto era mais a revelação do desejo algo regressivo e infantil de ser “centro”, de superar a condição periférica que a História nos impôs, do que a manifestação de uma verdade concreta, tangível. É no aqui e no agora que a idéia de história com início, meio e fim, depositária de uma ordem causal e temporal apaziguante, já não encontra respaldo na realidade. É no bojo desse presente perpétuo que a arte se vê instada, organicamente, como uma decorrência natural do atrito com o seu tempo, a deixar de ser um instrumento de apreensão dos fatos para ser o próprio fato. É neste momento histórico, enfim, que, no plano literário, a supressão da lógica causal, da seqüência linear (as coisas não acontecem dessa maneira), em favor de elementos mais próximos aos fatos concretos da experiência como a simultaneidade, a descontinuidade, a fragmentação, o deslocamento espaço-temporal, o acaso; e, sobretudo, o olhar (e daí a influência do cinema na literatura) se justifica.

Ao contrário de toda a criação literária até esse momento, tributária de uma tradição oral que abarcava (ou pretendia abarcar) a totalidade da realidade e da experiência humana, a literatura contemporânea é devedora de um outro modo de percepção. Ao longo do tempo, de Homero ao romance realista do século XIX, tudo era passível de ser contado e apreendido pela audição, esse sentido, por assim dizer, compulsório, pois quem ouve o faz em decorrência de uma faculdade sensorial inata, independente da vontade (6). No entanto, à medida que o real vai se tornando mais complexo e a linguagem verbal vai deixando de articular todas as nuanças do raciocínio e da sensibilidade, a experiência vai se tornando refratária à transmissão oral, e passa a ter que ser vivenciada pelo próprio sujeito que, subitamente, se depara com uma nova contingência: já não se trata mais de ouvir o mundo, mas de vê-lo. Num tempo em que a velocidade dos fatos da vida, seu continuum vertiginoso, não permite a pausa necessária para a sua absorção e entendimento, a palavra já não serve como instrumento de adesão ao circundante e passa a ser substituída pelo olhar que, invadido por uma sucessão frenética de imagens troca a tentativa de ordenamento do mundo pela “consagração do instante (7)”, pela entrega absoluta ao aqui e agora.

Decorre daí o aparente não sentido da ficção contemporânea, pois se antes o relato se pautava por uma descrição rotuladora e totalizante do mundo (a qual conferia às coisas um certo ar familiar), agora ele se delineia através de flashes que iluminam o instante, mas não a paisagem; capturam a imagem, mas não a explicam, pois ela não tem explicação: a imagem, ao contrário das palavras, não conduz necessariamente a um contexto, a uma lógica qualquer. No entanto, a partir do momento em que a imagem é tomada como essência, mesmo, de um fazer até então caracterizadamente verbal, os próprios paradigmas de leitura são postos em cheque: como lidar com um texto em que as palavras recusam sua natural tendência para se colocar a serviço de um relato, de uma história, e passam a buscar a condição de imagens, de visualidade?

Referindo-se ao cinema, o cineasta alemão Wim Wenders lembra que “para funcionarem como palavras e frases (as imagens) têm primeiro que ser “violentamente” levadas a isso, isto é, manipuladas (8)”. Mudando o foco para a literatura, quero lembrar aqui alguns fragmentos da ficção contemporânea brasileira que são amostras exatamente do movimento inverso de manipulação das palavras de modo a elas se moldarem a uma outra natureza, de modo a elas funcionarem como imagens.

Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro, não consigo definir aquele sujeito através do olho mágico. Estou zonzo, não entendo o sujeito ali parado de terno e gravata, seu rosto intumescido pela lente. Deve ser coisa importante, pois ouvi a campainha tocar várias vezes, uma a caminho da porta e pelo menos três dentro do sonho. Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho. Tem a barba. Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. Eu não conheço muita gente de terno e gravata, muito menos com os cabelos escorridos até os ombros. Pessoas de terno e gravata que eu conheço, conheço atrás de mesa, guichê, não são pessoas que vêm bater à minha porta. Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre alguém conhecido mas muito difícil de reconhecer. E o rosto do sujeito assim frontal e estático embaralha ainda mais o meu julgamento. Não é bem um rosto, é mais a identidade de um rosto, que difere do rosto verdadeiro quanto mais você conhece a pessoa. Aquela imobilidade é o seu melhor disfarce para mim.


Esse fragmento – parágrafo inicial do romance Estorvo (1991), de Chico Buarque – que se deflagra a partir do olhar suscita na mente do leitor uma espécie de “cinema”, uma imaginação visual que antecede ou acompanha a imaginação verbal. É o mesmo apelo ao sentido da visão, a mesma plasticidade de cena que compõe os fragmentos abaixo, extraídos de Bandoleiros (1985), de João Gilberto Noll (9):

Steve caído na estrada de terra. Alguma criança lhe revisitará mais uma vez os bolsos e nada mais encontrará. Ah, ficou ainda o anel de prata talhada. A criança pega o dedo de Steve e puxa com dificuldade o anel manchado de sangue. Limpa o sangue do anel na calça ensangüentada de Steve.

De manhã Steve abrirá os olhos. E se verá sem dinheiro, documentos, o anel. Pergunta-se onde está. Como foi parar ali. Parece não ter forças para se levantar. Parece que seu velho bíceps não lhe responde mais ao comando. Parece um cadáver ensangüentado no chão.

Algumas crianças cercam o corpo caído. Comentam que seus olhos estão abertos e ainda se mexem. Steve não reconhece o lugar. E agora, de espaço para ver, só tem a cúpula do céu: as crianças o cercam, não lhe deixando ar nem a paisagem em volta. (p.99)

Começo a descer o morro. Viro a cabeça e olho ainda uma vez. O corpo, puro sangue banhado numa mecha de sol. Isso mesmo: uma mecha de sol banhando o corpo de Steve. Esfrego os olhos, mas é isso mesmo: Steve banhado por um spot celeste no negro deserto de pedras.

Steve me olha. Mas ele não tem mais olhos. Cada órbita uma poça de sangue. O spot é suficientemente amplo para pegar um pouco do solo ensangüentado em volta. vejo que, pouco a pouco, sob o efeito da mecha de sol, aquele todo começa a se reter e a coagular-se. Steve parece agora incorporado às pedras. Um acidente vermelho do solo. (p.108)

A criança maior ateia fogo num feixe de folhas de jornal. Diz que agora todos vão olhar para o que ele vai fazer ali. A criança maior joga as folhas de jornal em fogo bem em cima do corpo do homem.

Isso, o lixo pouco a pouco em fogo. A fumaça que sobe tem um cheiro ruim.

Na rocha vizinha o urubu come e come alheio sua carniça. (p.110)
Apalpei o revólver de Steve no meu bolso. Ouvi um pássaro cantar. Segunda-feira, pensei. Puxei o revólver e pensei se estava engatilhado. Apertei o gatilho contra a testa de Steve. E vi a flor de sangue arrebentar. De repente só sangue, o rosto e cabelos de Steve. (p.113)

O registro, nessa seqüência de cenas, ora no presente, ora no futuro, num mesmo bloco narrativo (que instaura uma percepção indiferenciada dos dois tempos); o relato que transmigra da primeira para a terceira pessoa; a simultaneidade de acontecimentos sem relação entre si (um canto de pássaro e a lembrança de que é segunda-feira, como que numa inconsciente tentativa de retorno a um tempo linear, quantificável); e, sobretudo, o insistente apelo ao olhar, manifestado não apenas através das próprias imagens, já por si cinematográficas, mas também, quase que subliminarmente, através do uso de um termo técnico, spot, emprestado do cinema, fazem com que na ficção de João Gilberto Noll (assim como na de Chico Buarque) tudo conduza para a procedência ou o acompanhamento da imaginação visual à imaginação verbal que mencionei anteriormente.

Como se vê, não é por acaso que o romance de Chico tenha sido levado às telas, nem será à toa que Noll reconheça em sua ficção uma maior influência do cinema do que da própria literatura (10). Há na ficção contemporânea um abandono dos elementos tidos como intrínsecos, congênitos ao fazer literário, como a descrição de acontecimentos dispostos num tempo e num espaço lineares (pressuposto da narrativa) e a concomitante apropriação de técnicas mais afeitas à fotografia e ao cinema. Esse abandono, na verdade, nada mais é do que uma manifestação da época em que vivemos, a qual se caracteriza pelo império das imagens, do que é visível. Nessa vasta medida, o flerte explícito da mais perturbadora literatura de nosso tempo com linguagens não literárias, mais especificamente com o cinema, com o seu apelo visual, mas também com as demais artes plásticas (suas formas e volumes), e com as massas sonoras e rítmicas da música, demonstram claramente uma consciência da exaustão, do esgotamento da linguagem literária, da capacidade de essa linguagem dar conta do que não é verbal, do que só é passível de absorção pelos sentidos, sem filtros de qualquer espécie. Nomes surgidos para a literatura brasileira nos anos 80 e 90 do já agora século passado, como os já citados João Gilberto Noll, que estreou em 1980 com o livro de contos O Cego e a Dançarina, e Chico Buarque - Estorvo (1991) e Benjamim (1995) -, Bernardo Carvalho - Os Bêbados e Os Sonâmbulos (1996) e Teatro (1997) - e Fernando Bonassi - O Céu e o Fundo do Mar (1999) e 100 Coisas (2000) - imantam-se, cada um com sua especificidade, das mesmas preocupações de alguns de seus contemporâneos de outras geografias, como o português José Martins Garcia, cujo Imitação da Morte (1982), um romance inteiro escrito em 2ª pessoa (!), tem momentos de absoluta visualidade, como se fora um filme em palavras, o argentino Ricardo Piglia, que colaborou com Hector Babenco no roteiro de Coração Iluminado (1998) e o norte-americano Paul Auster que, também já tendo escrito roteiros para o cinema e dirigido, ele mesmo, um filme, Os Mistérios de Lulu (1998), recentemente revisitou o cinema num dos mais intrigantes romances de sua fase atual, O Livro das Ilusões (2002). Comungando um instrumento de trabalho, a linguagem verbal, não mais suficiente, a priori, para dizer o mundo, esses autores refazem-no, e provocam com ele e através dele o efeito de uma imagem cinematográfica que, no sentido idealizado por Wim Wenders, mais do que conduzir a alguma coisa, é a própria coisa.

Num ensaio panorâmico sobre o moderno e o modernismo na literatura brasileira, Alfredo Bosi diz que em muito das obras de autores contemporâneos “(...) já se desfez aquela mistura ideológica e datada de mitologia e tecnicismo que o movimento de 22 começou a propor e algumas vanguardas de 60 repetiram, até virarem em esquema e norma.(11)” Num sentido que não é o pensado por Bosi, creio que ele tem razão. O tratamento dispensado pela ficção contemporânea à linguagem é de outra ordem, nada tendo a ver com a recuperação de uma “língua brasileira” (estranha vanguarda a que propõe o resgate do que quer que seja) proposta pelos modernistas.

Esse procedimento lingüístico da literatura atual, a rigor impensável fora do caótico contexto contemporâneo, no qual a complexa diversidade de experiências aponta para uma inflação de significantes, sobretudo visuais, os quais não guardam, necessariamente, qualquer relação reconhecível entre si, decorre, em muito, da necessidade de dar conta da velocidade e rarefação do mundo de agora, velocidade e rarefação essas que atropelam todo e qualquer referencial (inclusive o da identidade, coletiva e individual) estabelecido, impondo-nos a necessidade de um novo olhar, de uma nova forma de perceber o mundo.

Num tempo, ao que tudo indica, pós-ideológico, no qual o mito do futuro foi dessacralizado e vencido pela lógica avassaladora do mercado, a destinação do homem contemporâneo na ficção que o manifesta permanece em aberto, se fazendo no decorrer da própria escrita. A imagem que melhor traduz essa indefinição do porvir, esse não saber para onde (nem como) prosseguir, é a do diminuto circuito eletrônico que, com poucos milímetros quadrados de superfície, pode conter centenas ou milhares de componentes interligados: o chip.

Assim como o chip constitui a potencial unificação de todas as tecnologias numa só (se não concretamente, ao menos como metáfora), as poéticas contemporâneas parecem confluir todas para um mesmo “campo semântico”. Por trás dessa convergência há como que a intuição de que o mundo do fragmento e do múltiplo é o caminho natural e inevitável para o uno e o todo. Num estranho e perturbador paradoxo, é como se estivéssemos equacionando a realidade com um sinal trocado, como se tudo o que hoje chamamos de fragmentação, no plano estético, fosse, na verdade, o germe da grande unificação, o esboço do primeiro e verdadeiro encontro com um mundo com o qual nunca tivemos efetivo contato pelo simples fato de que ele, na verdade, nunca existiu anteriormente.

Essa intuição, que conduz a uma revisão de categorias aparentemente cristalizadas, que passa a exigir um novo regramento, novas leis, parece (remetendo, de algum modo, ao universo mental brasileiro, à questão do hibridismo cultural e de identidade com os quais abri este ensaio) confirmar algo que Jorge Luis Borges já enunciava, com a habitual lucidez, num ensaio dos anos 30: que nós, jovens países periféricos, herdeiros da tradição ocidental, somos também seus proprietários, sendo-nos lícito usá-la como bem nos aprouver. “Além do mais,” prossegue o argentino, “o culto da cor local é um recente culto europeu, que os nacionalistas deveriam rechaçar, por estrangeiro.(12)”

Do olho do furacão, pois, e até onde é possível vislumbrar um horizonte possível para as poéticas contemporâneas, a assimilação da imagem como um procedimento literário, como um instrumento de manifestação da impossibilidade de narrar, de expor as seqüências de acontecimentos que se sobrepõem freneticamente uns aos outros, será ainda, por um bom tempo, um modo de estar no mundo, uma forma de gerar, a partir do próprio descontrole, um ordenamento, uma “psicologia” do caos. “A beleza”, diz João Gilberto Noll, “vem da insuficiência brutal querendo ser lúcida (13).”

N O T A S

(1) Cf. SALLES GOMES, Paulo Emílio. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. São Paulo, Paz e terra, 1996, p.90.

(2) Cf. o artigo de Ronaldo Azevedo “A hora da preguiça”, sobre o livro Canoas e Marolas, Rio de Janeiro, Objetiva, 1999, de João Gilberto Noll. In: Bravo!, São Paulo, set. 1999, Nº24, p.102.

(3) GULLAR, Ferreira. “Nem tudo é verdade”. In: Bravo!, São Paulo, maio 1998, Nº 8, p.22.

(4) Cf. entrevista de José Saramago In: Porto & Vírgula, Porto Alegre, ago-set. 1992, nº 9, p.5. Ver, também, o texto de Dylan para o encarte de seu disco Bringing It All Back Home (1965).

(5) Essa diluição tem um correlato nas artes plásticas. Penso, sobretudo, na substituição do figurativo pelo abstrato, presente não apenas no nível pictórico, mas principalmente no nível dos suportes, os quais agora podem ser, literalmente, qualquer coisa. Veja-se, por exemplo, a proposta da performance e da instalação, modos de expressão que, ao contrário dos paradigmas tradicionais, que propunham o despertar e o registro de sentimentos “duradouros” revelam, justamente, a transitoriedade, a impermanência das experiências contemporâneas.

(6) Não estou dizendo com isso, obviamente, que a visão não seja uma faculdade sensorial.

(7) A expressão, precisa e bela, é de Octavio Paz, em ensaio de mesmo título que se encontra no clássico El Arco Y La Lira. Mexico, D.F., Fondo de Cultura Económica, 3ed., 1990, pp.185-197.

(8) WENDERS, Wim. Histórias impossíveis. In:____. A Lógica das Imagens. Trad. Maria Alexandra A. Lopes. Lisboa, Edições 70, 1990, p.76.

(9) Bandoleiros. Rio de Janeiro, Rocco, 1989.

(10) O romance de Chico foi transformado no filme homônimo de Ruy Guerra, com roteiro do próprio diretor. Quanto à influência do cinema na obra de Noll, veja-se a seguinte declaração do escritor: “O cinema tem raízes muito fundas na minha vida, mais que a literatura, porque chegou antes. Entrou na minha proto-história intelectual. (...) Quando era um garoto de classe média, com uma certa tendência a idealizar demais, sentindo um certo incômodo pelo sentimento de insuficiência das coisas, o cinema foi um respiradouro.” Cf. entrevista a Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo, livros, 18 jul 1993, p.6-7. A vocação cinematográfica do texto de Noll resultou no elogiado filme Nunca Fomos Tão Felizes (1984), de Murilo Salles, baseado no conto Alguma coisa urgentemente do livro O Cego e a Dançarina (1980). Também o romance A Fúria do Corpo (1981) teve seus direitos para o cinema adquiridos, por Hector Babenco, que, no entanto, nunca levou a cabo seu projeto de filmá-lo.

(11) Cf. BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In:____. Céu, Inferno. Ensaios de crítica literária e ideológica. 2ª ed. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2003, p.226.

(12) Cf. BORGES, Jorge Luis. El escritor argentino y la tradición. In:____. Obra Completa. Vol. I, Emecé Editores, 1989, pp. 267-274.

(13) Cf. Uma sinfonia a céu aberto/a histeria litúrgica da literatura. Entrevista de João Gilberto Noll a Eduardo Sterzi. Zero Hora, Segundo Caderno, Porto Alegre, 14 fev. 1996, p.4

JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES. Professor, doutor em literatura brasileira pela Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).