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JÚLIO CÉSAR 
DE 
BITTENCOURT GOMES

O Escultor Do Silêncio (1)

 

Sempre que se tenta situar determinados autores e obras dentro de um contexto mais amplo, no qual se possam identificar características e preocupações comuns, corre-se o risco das simplificações grosseiras ou das analogias equivocadas, tanto umas quanto outras insuficientes para dar conta da complexidade dos objetos em questão. Ainda assim, alguns rótulos acabam eternizados e tornados lugares-comuns na recepção crítica de algumas obras, passando, mesmo, a ser os pontos de partida dos quais advém todo o resto.

O romance de 30 brasileiro, por exemplo, tem agregado a si, como característica mais evidente, para fins didáticos, sua preocupação de cunho social. É o olhar voltado para a sociedade brasileira, suas precariedades e ignomínias que é realçado como a grande impressão digital deixada pelo romance de 30 em nossas sensibilidades. O realce desse olhar pela crítica, no entanto, se diz muito, não revela tudo; mascara, inclusive, uma série de outras características que acabam por desaparecer diante do peso desproporcional atribuído a esse traço em detrimento de qualquer outro. A possibilidade, por exemplo, de ser o romance de 30 e não a geração de 22 o verdadeiro marco definidor da literatura moderna brasileira, é uma hipótese que se perde em meio a uma "identidade" já estabelecida, que faz da geração de Graciliano Ramos, Erico Veríssimo, Raquel de Queirós ou Jorge Amado, aquela que se voltou para o painel da sociedade, diluindo os avanços de 22 (tornados mero elemento composicional - e ainda assim muito en passant - presentes no uso de regionalismos ou de um certo coloquialismo "moderno") e optando por um certo retorno ao realismo pré-modernista. Se compararmos, porém, a literatura brasileira contemporânea, com toda a sua diversidade de preocupações e formatos, veremos que ela é muito mais tributária do romance de 30 do que da geração de 22. É possível rastrear a presença do Graciliano de Angústia no Chico Buarque de Estorvo (1), é passível de aproximação as obras de Erico Veríssimo e Luiz Antonio de Assis Brasil. Encontrar os seguidores da prosa de Oswald, porém, é mais difícil, ainda que um recente número do caderno cultural Mais!, do jornal Folha de S. Paulo, traga em sua capa a afirmação de que "50 anos após a morte do autor do Manifesto Antropofágico, (a) influência de seu pensamento torna-se hegemônica em todas as esferas da cultura brasileira (2)". Talvez, como afirma João Cezar de Castro Rocha, nesse mesmo número do Mais!, "os achados oswaldianos já se encontram incorporados ao repertório da cultura brasileira, tornando desnecessária a menção de seu inventor (3)" - o que explicaria a presença algo difusa de Oswald e dos modernistas de 22 na literatura contemporânea (a não ser que consideremos contemporâneas as já cinqüentenárias obras dos concretistas ou as produções neo-concretas de Arnaldo Antunes, umas e outras tributárias da vanguarda modernista) -, no entanto, a sua receptividade "direta", ou seja, a leitura de sua própria obra como fonte primária e não a de seus seguidores e/ou diluidores, inclusive em outras formas, como a música, pelo leitor culto médio, parece trazer à tona a necessidade de uma relativização dessa pretensa "hegemonia" oswaldiana ou modernista na cultura atual, sobretudo se lembrarmos que, ao contrário de Graciliano Ramos e de seus pares de 30, que desde o momento em que publicaram pela primeira vez vêm sendo constantemente reeditados, a obra de Oswald parece sofrer, periodicamente, de alguns ostracismos, tendo de ser "redescoberta" ou "revalorizada", seja pelos concretistas, nos anos 50, seja pelos tropicalistas na década seguinte, seja, enfim - e mais uma vez - pela música (Castro Rocha menciona, por exemplo, Adriana Calcanhoto e sua síntese da antropofagia oswaldiana com a montagem das Bacantes , de José Celso Martinez Corrêa, em cuja encenação, nos anos 90, "devorou-se" o compositor Caetano Veloso, presente na platéia. E segue Castro Rocha, citando a letra de Vamos comer Caetano , de Calcanhoto: "Vamos comer Caetano/Vamos devorá-lo/Degluti-lo, mastigá-lo/Vamos lamber a língua (...)").

Voltando à dificuldade de encontrar os seguidores da prosa de Oswald - no sentido de autores que consigam alargar os pressupostos dos modernistas de 22, sem meramente reproduzi-los, naquela "mistura datada e ideológica de mitologia e tecnicismo", identificada por Alfredo Bosi não somente no movimento de 22 como, também ,em algumas vanguardas que o seguiram (4) -, creio que ela reside justamente no caráter programático e de artifício que guiava a proposta dos modernistas e que a tornava um artefato de baixa explosão a longo prazo. Não será à toa que vinte anos depois da semana de 22 Mário de Andrade reconhecia - até com uma auto-crítica exacerbada - não haver em sua obra uma ligação maior com a vida:

(...) E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu aristocracismo me puniu. Minhas intenções me enganaram. Vítima de meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos de meus companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem mais é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. (...) Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária de nosso discurso de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. (5)

Essa ausência de "revolta contra a vida como está", que fica particularmente evidenciada quando em oposição às preocupações sociais da geração de 30, é que faz desta última a geração, por excelência, do engajamento, da intervenção política no mundo "real", e que explica, por fim, a facilidade com que o rótulo foi aposto aos escritores do período.

A preocupação com a linguagem, porém, tão cara aos primeiros modernistas, é também um elemento fundador e constituinte de parte do que se fez a partir de 30, ainda que por um outro viés, e Graciliano Ramos é um caso emblemático de escritor que, sem aprofundar as experiências lingüísticas da geração de 22, opta por um caminho próprio, onde a língua não é apenas um experimento, mas a materialização mesma do universo mental de seus personagens.

Nessa medida, paralelamente à carga de crítica e denúncia social de que se reveste, por exemplo, o sertanejo na obra de Graciliano, ele está ali também como pretexto para reflexões de cunho mais genérico e universal: é a própria precariedade da condição humana que está em jogo, metaforizada na crise daquilo que mais a caracteriza: a linguagem. Graciliano já estaria, assim, nos anos 30 do século XX - e na periferia de um país periférico - intuindo um fenômeno que só se consolidaria nos dias atuais, haja vista que é o mundo contemporâneo que apresenta indícios generalizados de uma crise da linguagem verbal. É no mundo contemporâneo que o processo de apreensão do real pela palavra, com o império da mídia e da cultura de massa, desaguou numa civilização onde a palavra, corrompida pela banalização adquiriu um nível de diluição ou empobrecimento de significados jamais visto. Nessa "inflação verbal", onde a palavra pode significar tudo - sem, na realidade, significar nada - a língua há muito deixou de ser um caminho para atingir alguma verdade demonstrável e cada vez mais revela-se meramente como um círculo vicioso e tautológico onde as palavras, numa remissão infinita, falam de outras palavras e não de algum referente no mundo real. É como se o estado atual da palavra servisse para confirmar que a realidade, enfim, não é mesmo verbal, ou, ainda, como diria George Steiner, que "(...) a linguagem só pode lidar, de modo significativo, com um segmento especial e restrito da realidade. O resto, e é possível que seja a parte maior, é silêncio. (6)"

Ao fazer essa afirmação, Steiner está pensando no complexo mosaico da realidade contemporânea, que extrapolou a capacidade de enunciação da língua. Não é apenas o complexo, porém, que escapa ao alcance comunicativo da palavra; o mesmo fenômeno se dá em relação ao que é extremamente simples, ao que ainda não acedeu ao domínio da linguagem. Para além, ainda, do que sugere Steiner, é possível intuir, então, que a linguagem verbal, na prática, só funciona no plano restrito situado entre o vertiginosamente abstrato - onde as linguagens não verbais, como a matemática, por exemplo, acenam com a saída - e o absolutamente primordial, que não encontra palavra que o descreva.

 
 

1 Um exemplo, ao acaso:

1) "Há nas minhas recordações estranhos hiatos. Fixaram-se coisas insignificantes. Depois um esquecimento quase completo. As minhas ações surgem baralhadas e esmorecidas, como se fossem de outra pessoa. Penso nelas com indiferença. Certos atos parecem inexplicáveis. Até as feições das pessoas e os lugares por onde transitei perdem nitidez. (...) Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali." 2) "Não é razoável que tenha chovido tanto na minha infância. Mas me vejo menino, e chove. Minha irmã já adolescente, e chove. Os dois no riacho, em roupa de banho, queimados de sol, e chove. O sol, vejo o sol no cimento, vejo o gato deitado no sol do cimento, e chove. Pode ser que então não chovesse, a chuva imprimiu-se mais tarde na memória." O primeiro fragmento é um trecho de Angústia , de Graciliano Ramos (23ªed., Rio de Janeiro, Record, 1981, p.110.); o segundo, um trecho de Estorvo , de Chico Buarque (São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p.66.). Em ambos o mesmo tom, a mesma dicção, a mesma perplexidade com as coisas ínfimas do cotidiano.

2 "Folha de S. Paulo, "Mais!" ", 10 de outubro de 2004. (capa)

3 ROCHA, João Cezar de Castro. Devorando Oswald . In: "Folha de S. Paulo, "Mais!" ", 10 de outubro de 2004. p.5.

4 BOSI, Alfredo. Moderno e modernismo na literatura brasileira . In:__. Céu, Inferno : ensaios de crítica literária e ideológica . São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, p.226.

5 Ver o texto da conferência proferida por Mário de Andrade, a convite da Casa do Estudante do Brasil, em 30 de abril de 1942, reproduzida parcialmente por Alfredo Bosi em seu ensaio Mário de Andrade crítico do Modernismo . In: BOSI, Alfredo. Céu, Inferno : ensaios de crítica literária e ideológica . São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, pp.240-241.

6 Cf. STEINER, George. O repúdio à palavra. In:__. Linguagem e Silêncio . Ensaios sobre a crise da palavra . Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo, Companhia das Letras, 10988, p.40.

 
JÚLIO CÉSAR DE BITTENCOURT GOMES. Colaborador de Triplov. Professor de literatura, doutor em literatura brasileira pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com a tese Imagens, Esquinas e Confluências: um roteiro cinematográfico baseado no romance "O Quieto Animal da Esquina", de João Gilberto Noll, seguido de anotações .