No momento em que a editora Companhia das Letras se põe a reeditar a obra de Erico Veríssimo - e não por acaso no ano de seu centenário de nascimento - um olhar despido de idéias feitas e preconceitos se impõe aos velhos e novos leitores de Erico, quanto mais não seja, para que se faça justiça àquele que foi, em seu tempo, um dos maiores fenômenos editoriais do país (o único escritor, juntamente com Jorge Amado, a conseguir viver unicamente de seus livros) e um caso raro, sob vários aspectos, de escritor admirado e louvado pelas razões se não erradas, ao menos equivocadas. Talvez por terem levado demasiadamente a sério suas freqüentes declarações de que era apenas um "contador de histórias", tanto o leitor comum quanto muitos dos leitores acadêmicos apreciam a obra de Erico Verissimo à luz somente de uma sua capacidade de fabulação calcada numa estrutura "clássica" de início, meio e fim, sem maiores arroubos formais ou estilísticos. Essa chave de leitura, legítima e proveitosa, obscurece, porém, alguns elementos outros presentes na formação do Erico leitor e escritor, que, sem dúvida, põem em dúvida a sua tão propalada simplicidade de escrita.
Membro de uma geração tremendamente influenciada pela cultura francesa, Erico foi encontrar seus pares em autores de língua inglesa, como o britânico Aldous Huxley, de quem tomou emprestada a técnica do contraponto - presente, justamente, no romance Point Counterpoint (1928), que traduziu e que utilizaria em Caminhos Cruzados (1935), por exemplo - ou o norte-americano John dos Passos, de quem se tornaria amigo, e que fazia uso de técnicas visuais e cinematográficas na construção de seus escritos. Autor de um "romance histórico" tornado ícone e modelo na literatura feita no Rio Grande do Sul, foi, ao mesmo tempo, conservador e subversivo; um reforçador, aparente, do mito do gaúcho, e um sutil sabotador do horizonte épico que ainda hoje tantas vezes parece servir de pano de fundo ao nosso modo de olharmos para nós mesmos. Numa época em que o leitor parece, tantas vezes, constrangido pelas "difíceis" obras contemporâneas, centradas em si mesmas, ou submetido à superfície rasa dos bestsellers , a releitura de Erico revela como que uma terceira via, um feliz encontro dos elementos narrativos básicos - o plano dos "acontecimentos" inserido numa estrutura linear facilmente reconhecível pelo leitor médio - com um modo de narrar revestido de alguma sofisticação - a técnica do contraponto - suficientemente hábil para seduzir leitores mais exigentes, e essa junção, que foge às simplificações totalizantes, encontra um paralelo também naquela ambigüidade, a que me referi antes, presente no modo de lidar com os conteúdos arquetípicos da cultura rio-grandense. Discorrendo sobre a feitura d' O Continente e a criação de um tipo "óbvio e inevitável" como o Capitão Rodrigo Cambará, Erico dizia que o problema todo consistia em "(...) como aceitar a inevitabilidade do óbvio sem cair no estereótipo" (1). À luz do caráter arraigado de algumas concepções a respeito da "gauchidade", o tamanho do problema que Erico toma para si passa a se revelar em toda a sua real dimensão e complexidade, pois como ele mesmo lembra, "a palavra gaúcho está associada em nosso espírito a termos como macho, bravo, violento, mulherengo, aventureiro, nobre, generoso..." (2). Essa adjetivação, que é uma descrição do gaúcho mítico, arquetípico - ou estereotipado, para usarmos o termo de Erico - poderia ser, também, a caracterização perfeita de seu personagem Capitão Rodrigo Cambará. Reiterando a imagem do gaúcho como homem livre, sem laços estáveis de qualquer natureza, o escritor faz de seu personagem um indivíduo "(...) vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicacho puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida, e aquele seu olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas" (3).
Idealizada, romântica, quase épica, essa descrição do personagem é uma recorrência ao longo da obra, fruto de uma opção - ainda que parcial e temporária - pelo mito. Uma releitura do episódio Um certo capitão Rodrigo , n' O Continente recém relançado, traz de volta cenas emblemáticas dessa escolha, como aquela em que o capitão incorpora em si a reação de toda uma comunidade contra os desmandos de um determinado clã - os Amarais - ao retirar Bibiana das mãos de um de seus membros, Bento Amaral, para com ela dançar. Essa "desfaçatez" acaba motivando um duelo entre os dois homens, o qual terá como desfecho a inicial de Rodrigo marcada com espada no rosto de Bento. Nessa seqüência torna-se explícito o caráter heróico do personagem, que pouco ou nada tem a ver com o gaúcho histórico, marginalizado, cujo único horizonte existencial possível era aquele constituído pela servidão aos proprietários rurais e aos donos do poder. Por outro lado, pondo em xeque as interpretações "definitivas" a respeito da natureza de sua obra, o autor nos apresenta, no mesmo relato, um gaúcho "medroso" ou "poltrão": José Lírio, o Liroca, que, apesar de usar nas revoluções uma fita no chapéu com os dizeres "pelear é o meu prazer", constitui-se numa figura patética, que vai à guerra mais por falta de alternativas e pela necessidade de se mostrar valente e digno da confiança dos senhores do sobrado - o que faz dele tão somente uma vítima da estratificada estrutura social rio-grandense da época - do que por uma coragem inerente ou - menos ainda - por convicções ideológicas. Essa ambigüidade que permeia a construção dos personagens de Erico Verissimo adquire contornos ainda mais intrincados nas figuras femininas, que podem ser vistas, com o mesmo peso de argumentos, tanto como arquétipos de uma suposta "mulher gaúcha", quanto como exemplos de transgressão desse modelo: se por um lado elas gozam de voz própria num universo predominantemente masculino, por outro suas características de enraizamento e de referencial ordenador do caos podem ser vistas apenas como um contraponto esquemático ao desenraizamento e à entropia dos homens. Sob esse prisma, o elemento "revolucionário" não só d' O Continente , mas de toda a trilogia d' O Tempo e o Vento , da qual faz parte, não seria Ana Terra, ainda que seja ela uma espécie de "self made woman" agreste, mas sim uma figura en passant na narrativa, a alemã Helga Kunz, uma amante eventual do Capitão Rodrigo, que, sintomaticamente, é uma "forasteira", desconectada dos valores prezados pelas mulheres nativas, como o amor à terra, à família, às convenções sociais.
A simples possibilidade, então, de ler esses personagens sob ângulos tão diversos (assim como o contraponto ou a idéia de narrativa circular que volta ao princípio - não esqueçamos que O Tempo e o Vento inicia e termina com a mesma frase (4) - que, ainda que singela, constitui, no plano estritamente formal, uma quebra na linearidade do relato) vai, no plano da psicologia e do "conteúdo", contra as recepções críticas que conferem aos relatos de Erico um status de "caso exemplar" de narrativa tradicional, centrada e totalizante. Ainda que para chegar a Floriano Cambará - uma espécie de alter ego do autor e talvez, no plano psicológico, o personagem mais complexo de toda a trilogia - tenha sido necessário a nós, gaúchos, e a Erico Verissimo, duzentos anos de história e centenas de páginas de narrativa (o que poderia sugerir um apego exagerado aos modos tradicionais de narrar e a uma talvez ultrapassada concepção da literatura como "painel do social"), há muito de sutileza e complexidade a serem rastreadas no conjunto da obra do escritor. Para além de algumas características do romance contemporâneo - fragmentação do sujeito, rupturas espaciais e temporais, dispersão do relato - tão em sintonia com nossa época e tão, paradoxalmente, distantes do leitor, essa proposta de ordem e sentido ainda tem algo a nos dizer.
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