JORGE MAXIMINO..

Linguagem, Experiência e Tempo na obra narrativa de Vergílio  Ferreira

Vergílio Ferreira foi um escritor que nous deixou um obra narrativa e ensaística que ocupa um lugar de destaque na literatura portuguesa e que tem na temática existencial um dos seus vectores principais. A formação filosófica do autor de Manhã Submersa ficou fortemente marcada pela leitura de autores da corrente existencialista (Sartre, Camus, Malraux, entre autros). Vergílio Ferreira aderiu num primeiro momento ao neo-realismo mas sabemos também que, como muitos outros portugueses, como Eduardo Lourenço ou António Ramos Rosa, Vergílio Ferreira se distanciou cedo de algumas premissas teóricas desse movimento[1]. A sua visão da arte impunha alguma distância e a sua opção passou a situar-se noutro plano, acentuando a problemática existencial e separando as questões de ordem estética. Desse questionamento sobre as relações possíveis entre a arte e a condição humana terá surgido a pulsão criadora, como afirma em Um Escritor Apresenta-se:  

Nasci para a literatura nos fins da II Guerra Mundial. A esperança ou a certeza, quebradas depois na dúvida e na questionação alargada, foi a sorte que me coube. Do «homem económico» ao homem que o excede vai todo o percurso que realizei. Mas o próprio «homem económico», que eu julguei cumprido na planificação estatal, sofreu-me graves restrições ao exemplo nada edificante dos países em que se efectivou. Mas sobretudo o que veio a preocupar-me foi justamente o que a esse homem excede. Porque um homem não cabe numa tigela de arroz e só morto se ajeita nas quatro tábuas do fim.[2]  

            Como vemos, o “nascer” para a literatura significou, antes de mais, opôr uma atitude de esperança a um tempo de angústia, em Portugal, já mergulhado no Estado Novo e numa Europa devastada pelas duas Guerras Mundiais. A linguagem literária surge como atitude positiva, criadora,  «o que ao homem excede. Porque um homem […] só morto se ajeita nas quatro tábuas do fim».  Sobre o fim, termo com ressonâncias literárias e filosóficas, também escreveu Vergílio Ferreira em Conta corrente: “Mundo selvagem, foi o que me coube conhecer à hora do fim”[3]. 

Esta referência ao fim ou à morte, que aparece também em título num dos romances (Até ao Fim), constitui uma topicalização incontornável da questão do tempo, temática que vamos abordar e se encontra, implícita e explícitamente, numa parte considerável da obra, expressa por vezes nos próprios títulos de alguns dos romances que o autor publicou.

Sabemos que não é alheia à criação artística a nossa experiência do tempo e do espaço social, elementos que na arte se encontram transfigurados, como não é allheia à criação literária que Vergílio Ferrira nos deixou a sua experiência do tempo. A relação das personagens com o tempo, particularmente os personagens que têm o papel de narradores, constitui um elemento estruturante na obra narrativa do autor, o que  motivou o trabalho desta breve intervenção sobre Manhã Sumbersa (1954), Estrela Polar (1962) e Alegria Breve (1965).

Neste caso a nossa referência ao tempo surge aqui como elemento a considerar do ponto de vista da experiência estética[4] nos termos considerados na tese de Mikel Dufrênne, nessa ampla abordagem a uma Fenomenologia da experiência estética, o que para nós significa situar o tempo nas condições em que se forja a criatividade literária numa perspectiva fenomenológica. Enquadra-se portanto esta proposta no âmbito de uma referência à noção de experiência, associada à criação literária enquanto projecção da consciência do tempo. Esta referência a uma consciência do tempo remete-nos de imediato para uma obra fundamental de Edmund Husserl[5], mas também para Martin Heidegger[6] e Jean-Paul Sarte[7],  além de obras que são clássicas neste domínio como Saturno e Melancolia (1964) de Kilbansky, Panofsky e Saxl. Mas, ocalizando o nosso trabalho no âmbito da narrativa, serve-nos de linha de rumo, de forma abreviada e talvez mais eficaz, um pensamento de Jean-François Lyotard em O Pós-moderno explicado às crianças, que ilustra de forma clara o nosso propósito :   

  A instituição literária, tal como Proust a herdou de Balzac ou de Flaubert, está certamente subvertida, no sentido em que o herói  não é um personagem mas  sim a consciência íntima do tempo[8].  

A subversão aqui referida e a representação pelos personagens da consciência íntima do tempo aplica-se sem dúvida aos protagonistas de alguns dos romances de Vergílio Ferreira. O autor de  Estrela Polar foi um mestre da palavra, um mestre  da língua portuguesa e da arte romanesca, sendo a sua narrativa um dos melhores testemunhos em português do que pode ser uma poética da linguagem conjugada com um pensamento da temporalidade. É indispensável lembrar aqui o que escreveu Émile Benveniste na sua obra Problemas de Linguística Geral sobre a experiência do tempo e da sua repercussão no plano da língua: Les langues nous offrent en fait des constructions  diverses du réel, et c’est peut-être justement dans la manière dont elles élaborent un système temporel complexe qu’elles divergent le plus[9].

Os três romances de Vergílio Ferreira a que nos referimos vincam uma maturação do tempo e da linguagem, e surgem assim como obras fermentadas num tempo de angústia, de encontros e desencontros, de desencontros com a História  e com o presente.  É daí, desse ponto actuante, cujo eixo central é o tempo, de desencontros vários com o Presente, que  irrompe nas suas páginas uma força criativa, luminosa e  segura, uma linha de trabalho reiterado que marca um  pensamento contínuo sobre a  palavra e o tempo, completamente singular na nossa literatura, não como mero elemento aberto à construção da subjectividade, de um tempo interior. A sua experiência do tempo e da língua é uma experiência onde ambas se fundem nesse  ângulo em que se torna linguagem literária. É esse ângulo, entre outros da obra vergiliana, que nos interessa focalizar, visando especialmente o estatuto do narrador nestes três romances. Vejamos esta passagem de Manhã Submersa:    

   Quando transpus a porta do Seminário, apeteceu-me brutalmente largar um berro de triunfo para os confins do meu medo. E a minha voz chegou à garganta e o meu  gesto à ponta dos dedos. Mas uma força estranha  vinda lá detrás, do grande casarão, de todos os pares de olhos  dos prefeitos ausentes, da minha submissão antiga, coalhou-me o desejo e a esperança de o libertar.[…] Lembro-me bem de que muitas vezes, ao passarmos perto do tanoeiro, eu duvidava  da sua existência, desejava tocá-lo com as mãos para ter a certeza de que era real. […] Mas justamente agora, que  eu podia fazê-lo, nem o tentei. Uma distância intransponível separava-me do homem para sempre. Era uma vigilância feroz, já anterior ao tempo, vinda lá do Seminário, mas era sobretudo a feição especial que começavam a ter para mim os homens, as mulheres, tudo o que era mundo.  [...]Em torno de mim havia uma alegria travada, de arrumações e abraços[10].   

Marcados por uma separação imposta pelo isolamento, o narrador (António Borralho) e colegas, circunscritos ao espaço físico do Seminário e sob vigilância severa durante meses a fio, separação que os desliga da realidade social, do mundo por um lado, e por outro acentua nos personagens e particularmente no narrador uma visão fragmentada dos tempos, da qual sobressai uma pressão de um tempo social que humilha e oprime: o tempo de violência imposto pelo rigor das regras do Seminário, a tal “vigilância feroz, já anterior ao tempo”, resultando daí  uma marca específica da experiência do tempo e que se torna predominante na narrativa.

Manhã Submersa é um romance marcado pela coragem e força demonstarda pelo narrador centrada numa temporalidade que ganha foros de dimensão dialectica, uma vez que surge essa experiência do tempo como experiência da adversidade, experiência ontológica em que radica uma certa ferocidade verbal de que Alegria Breve  e  Estrela Polar são  também casos exemplares.

É a materialidade da palavra e a experiência do tempo que acompanham o narrador, na sua solidão, no seu mundo interior, através do romance. A palavra vergiliana testemunha um modo de pensar pela ficção o território de liberdade, mas também um modo de  questionar o campo da criatividade literária.

Um autor que escreve «A minha pátria é a imaginação[11]» tem com certeza uma espécie de impulso que lhe serve de guia de marcha fenomenológica que se erege em programa estético da arte literária como pensamento e que se concretiza na árdua e delicada tarefa da escrita romanesca. Há portanto nesta relação com a palavra ficcional um horizonte estético permanente na sua forma de experimentar e de pensar o tempo e a linguagem, que desagua em diversos cursos ou fios do mapa imaginário com que nos contemplou e pensou o mundo e o seu lugar no mundo. Torna-se aqui imprescindível assinalar  que na perspectiva do narrador destas três obras, embora não se limite a estes romances, a experiência do tempo ocupa um lugar essencial na construção da narrativa. Nestes três romances reincide a questão do tempo que tem uma configuração alegórica em que se centra a palavra dos narradores como um verdadeiro exercício de auto-análise, de catarse. A temporalidade e a palavra constituem o território de liberdade, onde o tempo tinge o espaço de construção do narrador: espaço para o qual tende e onde se distende a sua imaginação. Veja-se como é feita a relação do tempo com as situações absurdas da existência humana nesta passagem de Estrela Polar:  

E, no entanto, devia haver uma explicação para tudo isto, e eu não a sei. Devia haver uma explicação para o nosso encontro absoluto, para o apelo absurdo que me queima. Mas explicar que é que explica? Porque de todas as palavras que se dizem, de todas as razões que se esclarecem, de todo o encadeamento que se ordena, há um elemento ainda que se furta sempre e que é o de ser-se apenas humano… É-se homem e o homem é tão misterioso. Amava Aida desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade. Só assim eu entendo que não saiba contar bem como tudo começou. Porque os factos não são indício de nada e o verdadeiro indício está antes e depois de todos os indícios[12].  

Há várias vozes que nos interpelam do tempo interior do narrador, e parece cada uma corresponder às questões que se colocam na descoberta do eu ou sobre o mistério da existência humana. E o tempo está no centro desse mistério, desse conflito (“Amava Aida desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade.”). Gerando um território polifónico, essa pluralidade de vozes é uma projecção sintomática de  uma necessidade radical de experimentar o descentramento  –o descentramento do sujeito que experimenta uma multiplicidade de tempos interiores. Lembre-se que o plano da narração em Estrela Polar se alterna entre as 1ª , 2ª e 3ª pessoas do mesmo personagem-narrador.

A oscilação dos planos de narração revela uma vontade de saída para o exterior da ficção, como um movimento gerado através da alternância dos vários personagens sugeridos nas escolhas (1ª,2ª e 3ª pessoas), movimento que expõe o dilaceramento total e que induz ainda uma vontade de sair da ordem do literário, da ficção, para um exterior, num movimento que pudesse garantir uma duplicidade temporal. Elemento que se aproxima da ideia presente no texto de Michel Foucault sobre O Pensamento do exterior[13].

Estamos perante uma narrativa eivada de uma angústia existencial advinda da experiência da temporalidade dos personagens que se intercalam no discurso de narrador como se este vivesse num jogo de espelhos ou contaminado por um vírus de ordem heteronímica e só assim se pudesse exprimir a conflitualidade interior em que se fixa e desenvolve a face invisível da consciência do trágico ou, para sermos mais precisos, e segundo os termos de Jean-Marie Domenach (O regresso do trágico), o regresso da consciência do trágico da nossa modernidade tardia, a que alguns preferem referir-se como pós-modernidade como Jean-François Lyotard (A Condição Pós-Moderna) ou Gilles  Lipovetsky (A Era do vazio).

Modernidade tardia que é situação cultural e condição da qual ainda não saimos, nem literaria nem filosoficamente. Neste plano, o nosso momento histórico é ainda o mesmo do autor de Estrela Polar, pois  vivemos ainda o trauma da História ou, se quisermos, a ruína da História. A presença do elemento trágico nos três romances contém no seu centro, e no plano estético, uma mesma pulsão para a imaginação da morte, em resultado de uma experiência radical do tempo.

A imaginação da morte é um conceito utilizado por Gilbert Durand, a que recorremos com o mesmo sentido que lhe foi atribuido por este autor em Imaginação simbólica[14], à qual se atribui uma função operatória análoga na arte romanesca à que foi proposta por Marcel Griaule, na sequência das várias interpretações das teorias de Sigmund Freud sobre o instinto de vida e o instinto de morte. Segundo Gilbert Durand, apoiado na ideia de função de eufemização, função da imaginação, a imaginação da morte na arte é uma força criativa e poderosa,  pois «O facto de se desejar e de se imaginar a morte,  implica  a sua destruição ou anulação»[15].

Essa pulsão que consiste na imaginação da morte resulta de uma conflitualidade na experiência do tempo e surge portanto também como uma projecção de um tempo interior, de uma temporalidade que se assume também como experiência negativa. O imaginário da morte é por conseguinte negação do tempo na sua forma radical (a morte, “as tábuas do fim” em Manhã Submersa) e exprime literariamente a negação da violência acumulada na experiência do tempo com os seus códigos e a sua gramática do medo. Deste modo, a imaginação da morte é sinal de força potenciadora, criativa, busca da verdade, da “perfeição” para assinalar aqui uma reflexão de José Antunes de Sousa num consagrado estudo sobre Vergílio Ferreira e a Filosofia da sua obra Literária, a propósito de Cântico Final: 

À falta de uma transcendência a que ater-nos, essa transcendência não faz falta nenhuma porque só faria se tudo não se esgotasse na imanência da vida. […] Tudo se torna perfeito pelo recondução que de tudo se faz  ao primado absoluto da “transcendência do eu”, que qualifica como verdadeiramente humano tudo o que pelo crivo da consciência se nos impõe. E aí até a morte, […], dizíamos, é forçosamente e apesar de tudo, perfeita, porque é exactamente com ela que uma vida se perfaz.[16] 

É nessa expressão de uma relação radical com a temporalidade, numa linguagem de fronteira, diríamos, que se situam estes três romances: espaço interior em que se forja  a  temporalidade, num jogo de espelhos permanente que representa o processo de escrita, e que se sustenta na procura do sentido e  do outro, mesmo quando esse outro é o eu-outro fora do tempo nessa relação com a imaginação da morte  e da ausência.

Nestes romances a experiência do tempo ganha uma dimensão relevante pelo modo como os personagens-narradores apresentam e vivem intensamente através da imaginação da morte, tema fecundo afinal, de enorme força criativa, diríamos mesmo que eles próprios são modulados pelo imaginário da morte,  ocupando um papel central na narrativa uma vez que é na morte que radica toda a experiência da intersubjectividade, da nossa experiência do mundo.

A situação de constante e intensa abordagem da imaginação da morte faz destas obras vergilianas romances em que a relevância da sua linguagem se situa especialmente no cruzamento do discurso literário com o discurso filosófico, sendo um caso paradigmático em Portugal, de modo que se pode e se deve considerar que  a esse título também é uma obra fundamental de questionamentos e trajectórias inovadoras na medida em que, em toda a sua dimensão criativa e filosófica, estamos em presença de uma arte romanesca que  faz a síntese do literário com o filosófico, ocorrendo por via dela uma dissolução do filosófico no espaço do romance, pela força heurística em que expõe e questiona a existência humana nos seus múltiplos aspectos, do sensível ao inteligível.

É uma arte ficcional em que a realidade intrínseca da sua trama narrativa integra o modus operandi do questionamento filosófico, sendo este pólo aglutinador da ficção um elemento indissociável do discurso vergiliano, ocupando o pensamento filosófico uma espécie de campo magnético da arte romanesca que se institui desta forma numa poética do conhecimento. E nela, pela força exercida por esse magnetismo que norteia a ficção, encontramos, em permanência, o pulsar da palavra como expressão ou vibração da vida e do pensamento. O que implica, em suma, a consciência da brevidade, de uma Alegria Breve do conhecimento que está condicionado pelo caminho a percorrer, esse caminho invisível entre as palavras e as imagens do mundo e, para citar uma obra sobre a qual Vergílio Ferreira também reflectiu, o caminho entre As palavras e as Coisas de Michel Foucault[17], esse caminho paradoxal, caminho do indizível, caminho por vezes intransitável entre as palavras e as coisas, que nos representa e nós através dele nos questionamos a nós próprios e ao mundo, pela força dessa experiência dupla da palavra e do tempo na procura da verdade.

Antes de concluir, gostaria de deixar aqui uma reflexão sobre alguns aspectos  comuns a estes três romances que considero essenciais. Um deles, relacionado com a imaginação da morte e que se enquadra no seu processo de escrita como eixo estruturante da trama narrativa, que é a atitude niilista dos seus narradores e que, pela sua força dialectica, se apresenta como uma generosidade que releva, ainda, de uma relação com a alteridade, o que nos inscreve, sem dúvida, na senda do pensamento de Emmanuel Lévinas, particularmente no que diz respeito às questões relacionadas com os conceitos de presença, de ausência, de generosidade e do Eros.  O que implica ainda o campo da individualidade e a noção de corpo[18], por último.  Esta reflexão surgiu-me depois da leitura da seguinte passagem de Estrela Polar: 

E numa noite sonhei. Sobre um coxim de seda azul, uma mulher fita-me. Flutua em véus transparentes, oscila a fumo e a espuma. (…) Mas sem que eu desse conta, esta presença única de mim à sua face, esta evidência de nada mais, para além de nós, da nossa imobilidade, senão o rolar das gerações, multiplica-se-me para um lado e para o outro, como num reflexo de espelhos, em cem presenças iguais, em cem cópias de Aida. (…) Mas como diante de cópias de uma fotografia, eu percorri-as de uma a uma, a pesar de as saber repetidas. A certa altura, um gesto único lançou aos pés de todas os véus de tule. Havia agora uma uniformidade maior, porque eu olhava esses corpos nus, e o que ditingue um corpo de outro é sobretudo a face que o sabe. E, todavia, sem um instante de dúvida, como não sei dizer, avancei para uma delas, a primeira talvez que vi, e essa é que era a única. O seu próprio corpo falava-me um linguagem distinta, inconfundível, que eu sabia dela, que tinha o aroma de ser ela, lhe pertencia na pele branca e lisa, lhe revelava a presença, era ela toda desde os olhos, desde a voz, tinha a indizível beleza, a quente intimidade de todo o seu ser[19]. 

Encontramos aqui uma forma próxima do que expõe Lévinas sobre pensamento da alteridade na figura da mulher, da generosidade e do Eros, nesta passagem, nesta como noutros momentos destas obras de Vergílio Ferreira, por oposição a um tempo estéril do presente, estéril e adverso, sem desejo, desumanizado. A verdade que se procura nestas obras está suspensa entre uma ética que impõe a ordem narrativa e o discurso que nos dá a ver as suas emoções e a generosidade nostálgica que se inclina para o pensamento sobre a morte e sobre o Eros, sobre a relação amorosa, sobre a autêntica relação com o outro, não como descoberta do eu mas essencialmente como centro de um pensamento dialógico. Em suma, constata-se uma atitude dos narradores que podemos aproximar da filosofia do amor de Emmanuel Lévinas, especialmente em Totalidade  e Infinito.

Por outro lado, a esta noção de generosidade e do desejo erótico podemos associar a noção de projecção da palavra com a criatividade ou com a noção de fecundidade. E sobre a noção de fecundidade, concluiria, acrescentando que nestes três romances de Vergílio Ferreira fecundidade é sinónimo de verdade, exactamente no sentido de Cornélius Castoriadis nesta reflexão em Fait et à faire: “A verdade torna-se criação […] a ligação à verdade é a paixão pelo conhecimento ou o pensamento como Eros ”[20].

[1] Ver Hélder Godinho, Estudos Sobre Vergílio Ferreira, Lisboa, INCM, 1982.

[2] Um Escritor Apresenta-se, Lisboa, INCM, 1981, p.199.

[3] Conta Corrente IV, Lisboa, Ed. Bertrand, 1994, p. 267.

[4] Mikel Dufrêne, Phénoménologie de l’expérience esthétique, Paris, PUF, 1953.

[5] Edmund Husserl,  Lições para uma Consciência Intima do Tempo (1905).

[6] Martin Heidegger, Ser e Tempo (1923).

[7] Jean-Paul Sarte, O Ser e O Nada (1943).

[8] Jean-François Lyotard, O Pós-moderno explicado às crianças (1988), Paris, Galilée, p. 25 (Tradução nossa).

[9] Émile Benveniste, Problèmes de linguistique générale, vol.2, Paris, Gallimard,1980, p. 69.

[10] Manhã Submersa, Lisboa, Portugália Editora, p. 60.

[11] Conta Corrente, IV, op. cit., p.275.

[12] Estrela Polar, Lisboa, Quetzal, 2011, p.34.

[13] Michel Foucault, O pensamento do exterior, Lisboa, Fim de Século, 1998.

[14] Gilbert Durand, Imaginação simbólica, Lisboa, Edições 70, Lisboa, 2000.

[15] Idem., p. 108-109.

[16] José Antunes de Sousa, Vergílio Ferreira e a filosofia da sua obra Literária, Lisboa, I. Piaget, 2010, p.p.75-76.

[17] Michel Foucault , As Palavras e as Coisas  (1966).

[18] Jean-Paul Sarte, l’Être et le Néant, Paris, Gallimard, 1943, p. 390: « A consciência  não é outra cosia senão o corpo. O resto é nada e silêncio ».  (Tradução nossa).

[19] Estrela Polar, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 43-44.

[20] Cornélius Castoriadis, Fait et à faire, Paris, Seuil, 1997, p. 252.

Jorge Augusto Maximino é professor, doutorado pela Universidade de Paris IV-Sorbonne, escritor e investigador em literatura, estética e teoria da cultura. Foi bolseiro da F.C.T. entre 2005 e 2008 pelos trabalhos de investigação para a sua tese sobre Filosofia e Modernidade na obra poética de António Ramos Rosa.

Investigador como membro integrado do IELT / CEIL-Centro de Estudos sobre o Imaginário Literário da Universidade Nova de Lisboa e Professor, foi coordenador científico de dois cursos no Instituto Piaget, tem publicações dispersas em revistas e antologias de poesia de cuja edição foi responsável como Tempo Migratório (Limiar) ou  18 + 1 Poètes de Langue Portugaise (Chandeigne-Instituto Camões).

Autor de três livros de poesia e um de contos, assinou a programação, a curadoria e a gestão de projectos culturais internacionais (artes plásticas, cinema e literatura): Portugal e a Europa (Paris em 1994), numa parceria do Centro Georges Pompidou e ARIMAGE; o Festival do Imaginário (1996-1999), com o patrocínio do Ministério da Cultura, da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Abrantes, a Bienal Internacional do Douro, a Mostra de Arte Contemporânea do Côa, parceria da SOMA com as Câmaras de Trancoso, Mêda e Foz Côa.  É co-fundador do Festival de Poesia de Vila Nova de Foz Côa (1984), com os escritores Egito Gonçalves, E.M. Melo Castro, João Rui de Sousa, da Revista LUSOGRAFIAS e tem sido coordenador científico do Ciclo de Conferências do Côa, inaugurado em 2011 em Vila Nova de Foz Côa com Eduardo Lourenço. 

Principais livros  publicados :    

Philosophie et modernité dans l’oeuvre poétique d’António Ramos Rosa, Paris, Éditions de L’Harmattan, 2013.  (Tese de doutoramento). 

Ética e Alteridade em Primeiras estórias de João Guimarães Rosa, São Paulo, Escrituras Editora, 2013. (Ensaio). 

Língua, barco afectivo, col. Governo Civil da Guarda/Côa-Cultural, Guarda, 1985.  (Poesia). 

Edição e org. de antologias de poesia de autores de Língua Portuguesa, em colaboração:   

Tempo Migratório, org. em col. com Egito Gonçalves, Porto, Ed. Lumiar, 1985. 

Rio Interior, org. em col. com Marília R. Alonso, Porto, Ed. Lumiar, 1986. 

18 + 1 Poètes de Langue Portugaise, org. em col. avec Nuno Júdice e Pierre Rivas,  Paris, Éd. Chandeigne / Instituto Camões, 2000. 

Imaginários de Ruptura - Poéticas Visuais, em col. com Fernando Aguiar, Lisboa, Ed. Piaget, 2002.