Vergílio
Ferreira foi um escritor que nous deixou um obra narrativa e ensaística
que ocupa um lugar de destaque na literatura portuguesa e que tem na
temática existencial um dos seus vectores principais. A formação
filosófica do autor de Manhã
Submersa ficou fortemente marcada pela leitura de autores da corrente
existencialista (Sartre, Camus, Malraux, entre autros). Vergílio Ferreira
aderiu num primeiro momento ao neo-realismo mas sabemos também que, como
muitos outros portugueses, como Eduardo Lourenço ou António Ramos Rosa,
Vergílio Ferreira se distanciou cedo de algumas premissas teóricas desse
movimento[1].
A sua visão da arte impunha alguma distância e a sua opção passou a
situar-se noutro plano, acentuando a problemática existencial e separando
as questões de ordem estética. Desse questionamento sobre as relações
possíveis entre a arte e a condição humana terá surgido a pulsão criadora,
como afirma em Um Escritor
Apresenta-se:
Nasci para a
literatura nos fins da II Guerra Mundial. A esperança ou a certeza,
quebradas depois na dúvida e na questionação alargada, foi a sorte que me
coube. Do «homem económico» ao homem que o excede vai todo o percurso que
realizei. Mas o próprio «homem económico», que eu julguei cumprido na
planificação estatal, sofreu-me graves restrições ao exemplo nada
edificante dos países em que se efectivou. Mas sobretudo o que veio a
preocupar-me foi justamente o que a esse homem excede. Porque um homem não
cabe numa tigela de arroz e só morto se ajeita nas quatro tábuas do fim.[2]
Como vemos, o “nascer” para a literatura significou, antes de mais,
opôr uma atitude de esperança a um tempo de angústia, em Portugal, já
mergulhado no Estado Novo e numa Europa devastada pelas duas Guerras
Mundiais. A linguagem literária surge como atitude positiva, criadora,
«o que ao homem excede. Porque um homem […] só morto se ajeita nas
quatro tábuas do fim». Sobre o
fim, termo com ressonâncias literárias e filosóficas, também escreveu
Vergílio Ferreira em Conta corrente: “Mundo selvagem, foi o que
me coube conhecer à hora do fim”[3].
Esta referência ao
fim ou à morte, que aparece
também em título num dos romances (Até
ao Fim), constitui uma topicalização incontornável da questão do
tempo, temática que vamos abordar e se encontra, implícita e
explícitamente, numa parte considerável da obra, expressa por vezes nos
próprios títulos de alguns dos romances que o autor publicou.
Sabemos que não é alheia à criação
artística a nossa experiência do tempo e do espaço social, elementos que
na arte se encontram transfigurados, como não é allheia à criação
literária que Vergílio Ferrira nos deixou a sua experiência do tempo. A
relação das personagens com o tempo, particularmente os personagens que
têm o papel de narradores, constitui um elemento estruturante na obra
narrativa do autor, o que
motivou o trabalho desta breve intervenção sobre
Manhã Sumbersa (1954),
Estrela Polar (1962) e
Alegria Breve (1965).
Neste
caso a nossa referência ao tempo surge aqui como elemento a considerar do
ponto de vista da experiência estética[4]
nos termos considerados na tese de Mikel Dufrênne, nessa ampla abordagem a
uma Fenomenologia da experiência
estética, o que para nós significa situar o tempo nas condições em que
se forja a criatividade literária numa perspectiva fenomenológica.
Enquadra-se portanto esta proposta no âmbito de uma referência à noção de
experiência, associada à
criação literária enquanto projecção da consciência do tempo. Esta
referência a uma consciência do tempo remete-nos de imediato para uma obra
fundamental de Edmund Husserl[5],
mas também para Martin Heidegger[6]
e Jean-Paul Sarte[7],
além de obras que são clássicas neste
domínio como Saturno e Melancolia
(1964) de Kilbansky, Panofsky e Saxl. Mas, ocalizando o nosso trabalho no
âmbito da narrativa, serve-nos de linha de rumo, de forma abreviada e
talvez mais eficaz, um pensamento de Jean-François Lyotard em
O Pós-moderno explicado às crianças,
que ilustra de forma clara o nosso propósito :
A instituição literária, tal como
Proust a herdou de Balzac ou de Flaubert, está certamente subvertida, no
sentido em que o herói não é
um personagem mas sim a
consciência íntima do tempo[8].
A
subversão aqui referida e a representação pelos personagens da consciência
íntima do tempo aplica-se sem dúvida aos protagonistas de alguns dos
romances de Vergílio Ferreira. O autor de
Estrela Polar foi um
mestre da palavra, um mestre
da língua portuguesa e da arte romanesca, sendo a sua narrativa um dos
melhores testemunhos em português do que pode ser uma poética da linguagem
conjugada com um pensamento da temporalidade. É indispensável lembrar aqui
o que escreveu Émile Benveniste na sua obra
Problemas de Linguística Geral
sobre a experiência do tempo e da sua repercussão no plano da língua:
Les langues nous offrent en fait des constructions
diverses du réel, et c’est peut-être justement dans la manière dont
elles élaborent un système temporel complexe qu’elles divergent le plus[9].
Os
três romances de Vergílio Ferreira a que nos referimos vincam uma
maturação do tempo e da linguagem, e surgem assim como obras fermentadas
num tempo de angústia, de encontros e desencontros, de desencontros com a
História e com o presente.
É daí, desse ponto actuante, cujo eixo central é o tempo, de
desencontros vários com o Presente, que
irrompe nas suas páginas uma força criativa, luminosa e
segura, uma linha de trabalho reiterado que marca um
pensamento contínuo sobre a
palavra e o tempo, completamente singular na nossa literatura, não
como mero elemento aberto à construção da subjectividade, de um tempo
interior. A sua experiência do tempo e da língua é uma experiência onde
ambas se fundem nesse ângulo
em que se torna linguagem literária. É esse ângulo, entre outros da obra
vergiliana, que nos interessa focalizar, visando especialmente o estatuto
do narrador nestes três romances. Vejamos esta passagem de
Manhã Submersa:
Quando transpus a porta
do Seminário, apeteceu-me brutalmente largar um berro de triunfo para os
confins do meu medo. E a minha voz chegou à garganta e o meu
gesto à ponta dos dedos. Mas uma força estranha
vinda lá detrás, do grande casarão, de todos os pares de olhos
dos prefeitos ausentes, da minha submissão antiga, coalhou-me o
desejo e a esperança de o libertar.[…] Lembro-me bem de que muitas vezes,
ao passarmos perto do tanoeiro, eu duvidava
da sua existência, desejava tocá-lo com as mãos para ter a certeza
de que era real. […] Mas justamente agora, que
eu podia fazê-lo, nem o tentei. Uma distância intransponível
separava-me do homem para sempre. Era uma vigilância feroz, já anterior ao
tempo, vinda lá do Seminário, mas era sobretudo a feição especial que
começavam a ter para mim os homens, as mulheres, tudo o que era mundo.
[...]Em torno de mim havia uma alegria travada, de arrumações e
abraços[10].
Marcados por
uma separação imposta pelo isolamento, o narrador (António Borralho) e
colegas, circunscritos ao espaço físico do Seminário e sob vigilância
severa durante meses a fio, separação que os desliga da realidade social,
do mundo por um lado, e por outro acentua nos personagens e
particularmente no narrador uma visão fragmentada dos tempos, da qual
sobressai uma pressão de um tempo social que humilha e oprime: o tempo de
violência imposto pelo rigor das regras do Seminário, a tal “vigilância
feroz, já anterior ao tempo”, resultando daí
uma marca específica da experiência do tempo e que se torna
predominante na narrativa.
Manhã Submersa é um romance marcado pela
coragem e força demonstarda pelo narrador
centrada numa temporalidade que ganha foros de dimensão dialectica, uma vez que
surge essa experiência do tempo como experiência da adversidade,
experiência ontológica em que radica uma certa ferocidade verbal de que
Alegria Breve
e
Estrela Polar são
também casos exemplares.
É a materialidade da palavra e a
experiência do tempo que acompanham o narrador, na sua solidão, no seu
mundo interior, através do romance. A palavra vergiliana testemunha um
modo de pensar pela ficção o território de liberdade, mas também um modo
de questionar o campo da
criatividade literária.
Um
autor que escreve «A minha pátria é a imaginação[11]»
tem com certeza uma espécie de impulso que lhe serve de guia de marcha
fenomenológica que se erege em programa estético da arte literária como
pensamento e que se concretiza na árdua e delicada tarefa da escrita
romanesca. Há portanto nesta relação com a palavra ficcional um horizonte
estético permanente na sua forma de experimentar e de pensar o tempo e a
linguagem, que desagua em diversos cursos ou fios do mapa imaginário com
que nos contemplou e pensou o mundo e o seu lugar no mundo. Torna-se aqui
imprescindível assinalar que
na perspectiva do narrador destas três obras, embora não se limite a estes
romances, a
experiência do tempo ocupa um lugar
essencial na construção da narrativa. Nestes três romances reincide a
questão do tempo que tem uma configuração alegórica em que se centra a
palavra dos narradores como um verdadeiro exercício de auto-análise, de
catarse. A temporalidade e a palavra constituem o território de liberdade,
onde o tempo tinge o espaço de construção do narrador: espaço para o qual
tende e onde se distende a sua imaginação.
Veja-se como é feita a relação do tempo com as
situações absurdas da existência humana nesta passagem de
Estrela Polar:
E, no
entanto, devia haver uma explicação para tudo isto, e eu não a sei. Devia
haver uma explicação para o nosso encontro absoluto, para o apelo absurdo
que me queima. Mas explicar que é que explica? Porque de todas as palavras
que se dizem, de todas as razões que se esclarecem, de todo o encadeamento
que se ordena, há um elemento ainda que se furta sempre e que é o de
ser-se apenas humano… É-se homem e o homem é tão misterioso. Amava Aida
desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade. Só assim eu
entendo que não saiba contar bem como tudo começou. Porque os factos não
são indício de nada e o verdadeiro indício está antes e depois de todos os
indícios[12].
Há várias vozes que nos interpelam do tempo
interior do narrador, e parece cada uma corresponder às questões que se
colocam na descoberta do eu ou sobre o mistério da existência humana. E o
tempo está no centro desse mistério, desse conflito
(“Amava
Aida desde sempre, o nosso encontro aconteceu na eternidade.”).
Gerando um território polifónico, essa pluralidade de vozes é uma
projecção sintomática de uma
necessidade radical de experimentar o descentramento
–o descentramento do sujeito que experimenta uma multiplicidade de
tempos interiores. Lembre-se que o plano da narração em
Estrela Polar se alterna entre
as 1ª , 2ª e 3ª pessoas do mesmo personagem-narrador.
A oscilação dos planos de narração revela uma
vontade de saída para o exterior da ficção, como um movimento gerado
através da alternância dos vários personagens sugeridos nas escolhas
(1ª,2ª e 3ª pessoas), movimento que expõe o
dilaceramento total e que induz ainda uma vontade de sair da ordem do
literário, da ficção, para um exterior, num movimento que pudesse garantir
uma duplicidade temporal. Elemento que se aproxima da ideia presente no
texto de Michel Foucault sobre
O Pensamento do exterior[13].
Estamos perante uma
narrativa eivada de uma angústia existencial advinda da experiência da
temporalidade dos personagens que se intercalam no discurso de narrador
como se este vivesse num jogo de espelhos ou contaminado por um vírus de
ordem heteronímica e só assim se pudesse exprimir a conflitualidade
interior em que se fixa e desenvolve a face invisível da consciência do
trágico ou, para sermos mais precisos, e segundo os termos de Jean-Marie
Domenach (O regresso do trágico),
o regresso da consciência do trágico da nossa modernidade tardia, a que
alguns preferem referir-se como pós-modernidade como Jean-François Lyotard
(A Condição Pós-Moderna) ou
Gilles Lipovetsky (A
Era do vazio).
Modernidade tardia
que é situação cultural e condição da qual ainda não saimos, nem literaria
nem filosoficamente. Neste plano, o nosso momento histórico é ainda o
mesmo do autor de Estrela Polar,
pois vivemos ainda o trauma da
História ou, se quisermos, a ruína da História. A presença do elemento trágico nos três romances contém no seu centro, e no plano
estético, uma mesma pulsão para a imaginação da morte, em resultado de uma
experiência radical do tempo.
A
imaginação da morte é um
conceito utilizado por Gilbert Durand, a que recorremos com o mesmo
sentido que lhe foi atribuido por este autor em
Imaginação simbólica[14],
à qual se atribui uma função operatória análoga na arte romanesca à que
foi proposta por Marcel Griaule, na sequência das várias interpretações
das teorias de Sigmund Freud sobre o instinto de vida e o instinto de
morte. Segundo Gilbert Durand, apoiado na ideia de função de eufemização,
função da imaginação, a imaginação da morte na arte é uma força criativa e
poderosa, pois «O facto de se
desejar e de se imaginar a morte,
implica a sua
destruição ou anulação»[15].
Essa pulsão que consiste na imaginação da morte
resulta de uma conflitualidade na experiência do tempo e surge portanto
também como uma projecção de um tempo interior, de uma temporalidade que
se assume também como experiência negativa. O imaginário da morte é por
conseguinte negação do tempo na sua forma radical (a morte, “as tábuas do
fim” em Manhã Submersa) e
exprime literariamente a negação da violência acumulada na experiência do
tempo com os seus códigos e a sua gramática do medo. Deste modo, a
imaginação da morte é sinal de força potenciadora, criativa, busca da
verdade, da “perfeição” para assinalar aqui uma reflexão de José Antunes
de Sousa num consagrado estudo sobre
Vergílio Ferreira e a Filosofia da sua obra Literária, a propósito de
Cântico Final:
À
falta de uma transcendência a que ater-nos, essa transcendência não faz
falta nenhuma porque só faria se tudo não se esgotasse na imanência da
vida. […] Tudo se torna perfeito pelo recondução que de tudo se faz
ao primado absoluto da “transcendência do eu”, que qualifica como
verdadeiramente humano tudo o que pelo crivo da consciência se nos impõe.
E aí até a morte, […], dizíamos, é forçosamente e apesar de tudo,
perfeita, porque é exactamente com ela que uma vida se perfaz.[16]
É nessa expressão de
uma relação radical com a temporalidade, numa
linguagem de fronteira,
diríamos, que se situam estes três romances:
espaço interior em que se forja a
temporalidade, num jogo de espelhos permanente que representa o
processo de escrita, e que se sustenta na procura do sentido e
do outro, mesmo quando esse outro é
o eu-outro fora do tempo nessa
relação com a imaginação da morte
e da ausência.
Nestes romances a
experiência do tempo ganha uma dimensão relevante pelo modo como os
personagens-narradores apresentam e vivem intensamente através da
imaginação da morte, tema fecundo afinal, de enorme força criativa,
diríamos mesmo que eles próprios são modulados pelo imaginário da morte,
ocupando um papel central na narrativa uma vez que é na morte que
radica toda a experiência da intersubjectividade, da nossa experiência do
mundo.
A situação de
constante e intensa abordagem da imaginação da morte faz destas obras
vergilianas romances em que a relevância da sua linguagem se situa
especialmente no cruzamento do discurso literário com o discurso
filosófico, sendo um caso paradigmático em Portugal, de modo que se pode e
se deve considerar que a esse
título também é uma obra fundamental de questionamentos e trajectórias
inovadoras na medida em que, em toda a sua dimensão criativa e filosófica,
estamos em presença de uma arte romanesca que
faz a síntese do literário
com o filosófico, ocorrendo por via dela uma dissolução do filosófico
no espaço do romance, pela força heurística em que expõe e questiona a
existência humana nos seus múltiplos aspectos, do sensível ao inteligível.
É uma arte ficcional em que a realidade
intrínseca da sua trama narrativa integra o
modus operandi do questionamento
filosófico, sendo este pólo aglutinador da ficção um elemento
indissociável do discurso vergiliano, ocupando o pensamento filosófico uma
espécie de campo magnético da arte romanesca que se institui desta forma
numa poética do conhecimento. E nela, pela força exercida por esse
magnetismo que norteia a ficção, encontramos, em permanência,
o pulsar da palavra como
expressão ou vibração da vida e do pensamento. O que implica, em suma, a
consciência da brevidade, de uma
Alegria Breve do conhecimento que está condicionado pelo caminho a
percorrer, esse caminho invisível entre as palavras e as imagens do mundo
e, para citar uma obra sobre a qual Vergílio Ferreira também reflectiu, o
caminho entre As palavras e as Coisas de Michel Foucault[17],
esse caminho paradoxal, caminho do indizível, caminho por vezes
intransitável entre as palavras e as coisas, que nos representa e nós
através dele nos questionamos a nós próprios e ao mundo, pela força dessa
experiência dupla da palavra e do tempo na procura da verdade.
Antes de concluir, gostaria de deixar aqui uma
reflexão sobre alguns aspectos
comuns a estes três romances que considero essenciais. Um deles,
relacionado com a imaginação da morte e que se enquadra no seu processo de
escrita como eixo estruturante da trama narrativa, que é a atitude
niilista dos seus narradores e que, pela sua força dialectica, se
apresenta como uma generosidade que releva, ainda, de uma relação com a
alteridade, o que nos inscreve, sem dúvida, na senda do pensamento de
Emmanuel Lévinas, particularmente no que diz respeito às questões
relacionadas com os conceitos de presença, de ausência, de generosidade e
do Eros. O que implica ainda o
campo da individualidade e a noção de corpo[18],
por último.
Esta reflexão surgiu-me depois da leitura da seguinte passagem de
Estrela Polar:
E numa
noite sonhei. Sobre um coxim de seda azul, uma mulher fita-me. Flutua em
véus transparentes, oscila a fumo e a espuma. (…) Mas sem que eu desse
conta, esta presença única de mim à sua face, esta evidência de nada mais,
para além de nós, da nossa imobilidade, senão o rolar das gerações,
multiplica-se-me para um lado e para o outro, como num reflexo de
espelhos, em cem presenças iguais, em cem cópias de Aida. (…) Mas como
diante de cópias de uma fotografia, eu percorri-as de uma a uma, a pesar
de as saber repetidas. A certa altura, um gesto único lançou aos pés de
todas os véus de tule. Havia agora uma uniformidade maior, porque eu
olhava esses corpos nus, e o que ditingue um corpo de outro é sobretudo a
face que o sabe. E, todavia, sem um instante de dúvida, como não sei
dizer, avancei para uma delas, a primeira talvez que vi, e essa é que era
a única. O seu próprio corpo falava-me um linguagem distinta,
inconfundível, que eu sabia dela, que tinha o aroma de ser ela, lhe
pertencia na pele branca e lisa, lhe revelava a presença, era ela toda
desde os olhos, desde a voz, tinha a indizível beleza, a quente intimidade
de todo o seu ser[19].
Encontramos aqui uma forma próxima do que expõe
Lévinas sobre pensamento da alteridade na figura da mulher, da
generosidade e do Eros, nesta passagem, nesta como noutros momentos destas
obras de Vergílio Ferreira, por oposição a um tempo estéril do presente,
estéril e adverso, sem desejo, desumanizado. A verdade que se procura
nestas obras está suspensa entre uma ética que impõe a ordem narrativa e o
discurso que nos dá a ver as suas emoções e a generosidade nostálgica que
se inclina para o pensamento sobre a morte e sobre o Eros, sobre a relação
amorosa, sobre a autêntica relação com o outro, não como descoberta do eu
mas essencialmente como centro de um pensamento dialógico. Em suma,
constata-se uma atitude dos narradores que podemos aproximar da filosofia
do amor de Emmanuel Lévinas, especialmente em
Totalidade
e Infinito.
Por outro lado, a esta noção de generosidade e
do desejo erótico podemos associar a noção de projecção da palavra com a
criatividade ou com a noção de fecundidade. E sobre a noção de
fecundidade, concluiria, acrescentando que nestes três romances de
Vergílio Ferreira fecundidade é
sinónimo de verdade, exactamente
no sentido de Cornélius Castoriadis nesta reflexão em
Fait et à faire: “A verdade
torna-se criação […] a ligação à verdade é a paixão pelo conhecimento ou o
pensamento como Eros ”[20].
|
Jorge Augusto Maximino
é professor, doutorado pela Universidade de Paris IV-Sorbonne, escritor e
investigador em literatura, estética e teoria da cultura. Foi bolseiro da
F.C.T. entre 2005 e 2008 pelos trabalhos de investigação para a sua tese
sobre Filosofia e Modernidade na obra poética de António Ramos Rosa.
Investigador como membro integrado do
IELT / CEIL-Centro de Estudos sobre o Imaginário Literário da
Universidade Nova de Lisboa e
Professor, foi coordenador científico de dois cursos no Instituto
Piaget, tem publicações dispersas em revistas e antologias de poesia de
cuja edição foi responsável como
Tempo Migratório (Limiar) ou
18 + 1 Poètes de Langue Portugaise
(Chandeigne-Instituto Camões).
Autor
de três livros de poesia e um de contos, assinou
a programação, a curadoria
e a gestão de projectos culturais internacionais (artes plásticas, cinema
e literatura):
Portugal e a Europa (Paris em 1994), numa parceria do Centro
Georges Pompidou e ARIMAGE; o
Festival do Imaginário
(1996-1999), com o patrocínio do Ministério da Cultura, da Fundação
Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Abrantes, a
Bienal Internacional do Douro,
a
Mostra de Arte Contemporânea do Côa,
parceria da SOMA com as Câmaras de Trancoso, Mêda e Foz Côa.
É
co-fundador do
Festival de Poesia de Vila Nova de
Foz Côa (1984), com os escritores Egito Gonçalves, E.M. Melo
Castro, João Rui de Sousa,
da Revista LUSOGRAFIAS
e tem sido
coordenador científico do
Ciclo de Conferências do Côa,
inaugurado em 2011 em Vila Nova de Foz Côa com Eduardo Lourenço.
Principais livros publicados :
Philosophie et modernité dans l’oeuvre poétique d’António Ramos Rosa,
Paris, Éditions de L’Harmattan, 2013.
(Tese de doutoramento).
Ética e
Alteridade em Primeiras estórias de
João Guimarães Rosa, São Paulo, Escrituras Editora, 2013. (Ensaio).
Língua, barco
afectivo, col. Governo Civil da
Guarda/Côa-Cultural, Guarda, 1985.
(Poesia).
Edição e
org. de antologias de poesia de autores de Língua Portuguesa, em
colaboração:
Tempo
Migratório, org. em col. com Egito
Gonçalves, Porto, Ed. Lumiar, 1985.
Rio Interior,
org. em col. com Marília R. Alonso, Porto, Ed. Lumiar, 1986.
18 + 1 Poètes
de Langue Portugaise, org. em col. avec
Nuno Júdice e Pierre Rivas,
Paris, Éd. Chandeigne / Instituto Camões, 2000.
Imaginários de
Ruptura - Poéticas Visuais, em col. com
Fernando Aguiar, Lisboa, Ed. Piaget, 2002.
|