Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, I
CAPÍTULO IX

Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode conhecer e saber os futuros

A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é tanto para crer, e tão sua.

Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou: Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu, foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender, usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.

Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém as pode ver senão alumiado da mesma luz.

Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a quem é servido: Non enim voluntate humana allata est ali quando prophetia, sed Spiritu Sancto inspirati locuti sunt sancti Dei homines — diz S. Pedro: Mas ainda que a candeia esteja na mão de outrem, também se podem aproveitar da sua luz os que se chegarem a ela e a forem seguindo. Nesta propriedade fala a Escritura, quando diz da profecia de Ageu: ...factum est verbum Domini in manu Aggaei prophetae. E da profecia de Malaquias: Onus verbi Domini ad Israel in manu Malachiae. E geralmente das profecias de todos os profetas: Sicut locutus es de manu puerorum tuorum prophetarum. De maneira que pôs Deus a profecia como candeia na mão dos profetas, para que, alumiados e guiados da mesma luz os que não somos profetas, possamos entrar com eles no lugar escuro e caliginoso dos futuros e ver e conhecer com a luz não nossa, o que eles viram e conheceram com a sua.

Este é o modo com que, havendo a nossa História de caminhar por passos tão escuros e dificultosos, saberá contudo onde há-de pôr os pés, e os porá mui seguros, seguindo sempre os raios deste farol divino, e dizendo humilde a Deus com David: Lucerna pedibus meis verbum tuum, et lumen semitis meis. Serão pois as primeiras fontes desta nossa História, e os primeiros e principais escritores a quem nela seguiremos todos ou quase todos os profetas canônicos, desde Isaías até Miqueas; porque, exceto o profeta Jonas, cujo assunto foi um só, e particularmente determinado à história dos Ninivitas, todos os outros, mais ou menos, concorreram para a fábrica deste novo edifício.

Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais antigos, e estes são os que têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa História nos autores dos tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram. E porque entre os outros Livros Sagrados, também canônicos, há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm ou muitas ou algumas cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como o Gênesis, Josué, Josias, Reis, Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes, Eclesiástico e as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o Levítico, Números, Deuteronómio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos ajudaremos também, quando servirem ou puderem servir (que não será pouco) ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros. Assim que podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal fonte e os primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura Sagrada; com que vem a ser um só livro e um só Autor o que nela principalmente seguiremos: o livro, a Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes fundamentos da primeira e suma Verdade entrará o discurso como arquitecto de toda esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando, inferindo e acrescentando tudo aquilo que por conseqüência e razão natural se segue e infere dos mesmos princípios, no qual modo de fábrica se não perde a primeira verdade dos fundamentos, mas vai crescendo, dilatando-se e frutificando, não em diversos, senão no mesmo corpo, como a árvore em suas raízes.

Deste modo crescem e se aumentam todas as ciências, não só as naturais, senão as divinas, e por isso se chamam e são ciências. Assim como a filosofia de princípios naturais evidentemente conhecidos tira conclusões certas, evidentes e científicas, assim a teologia, de princípios sobrenaturais não evidentes mas certissimamente conhecidos, tira conclusões teológicas, também científicas e ainda mais certas, posto que não evidentes. Nem este modo de discorrer sobre as profecias e revelações proféticas, para vir em conhecimento dos mistérios, segredos, sucessos e tempos futuros, que nelas não estejam imediatamente expressados, é alheio da reverência que se deve aos oráculos divinos, nem atrevimento do entendimento e discurso humano, ou cousa nova e desusada na Igreja e escola de Cristo, antes estudo muito lícito, muito louvável e muito recomendado do mesmo Mestre Divino e seus sucessores.

Temos desta matéria um excelente texto do Apóstolo S. Pedro (primeira e infalível regra da Igreja), o qual, falando das mesmas profecias e profetas, diz assim no primeiro capítulo de sua primeira epístola: De qua salute exquisierunt atque scrutati sunt Prophetae qui de futura in vobis gratia prophetaverunt, scrutantes in quod vel quale tempus significaret in eis spiritus Christi praenuntians eas quae, Christo sunt, passiones et posteriores glorias.

Quer dizer S. Pedro que os Profetas antigos, depois de lhes serem revelados com lume sobrenatural e eles conhecerem e profetizaram mistérios futuros (como os da paixão e glórias de Cristo) sobre os mesmos mistérios e sobre as mesmas suas profecias inquiriam e especulavam de novo com o lume natural do discurso muitas circunstancias que lhes não foram expressamente reveladas, como as do tempo estado do Mundo em que os mesmos mistérios se haviam de obrar e as suas mesmas profecias haviam de suceder.

Desta maneira, no sentido em que o digo vinham a inferir e alcançar pelo estudo e especulação natural e própria o que Deus lhes não tinha manifestado pela revelação sobrenatural e divina. Isto é o que literal e genuinamente significam aquelas palavras: «Exquisierunt et scrutati sunt.» Exquisitio et scrutatio (diz Lorino) ...proprie indicant... curam et studium et industriam naturalem vel meditationis,vel lectionis, vel disputationis.

De sorte que, ajuntando o lume natural do d curso ao lume sobrenatural da pirofecia, com o cuidado, estudo e indústria própria, lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito as mesmas profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente não estava reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa comparação) não só alumeia com a luz que está ao lume ou fogo que nela se sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai produzindo, multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes, conforme a sua menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai propagando, difundindo e estendendo a muitas cousas, tempos, sucessos e circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e conseqüência do mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In quod vel quale tempus. A palavra, enm que tempo significa a determinação do tempo certo em que as cousas hão-de suceder; e a palavra no qual tempo significa as qualidades e circunstancias do mesmo tempo, isto é, o estado dos reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particularesda paz, da guerra, do cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou mais vizinho ou mais distante, se hão-de ver e suceder no Mundo: Deprehendebant Prophetae instinctu spiritus Messiae ejusdem Messiae adventum et gratiae dona, quae allaturus erat, nec tamen salten omnes, definite sciebant quo tempore veniret et quali, quam brevi, an belli, aut pacis, captivitatis, aut libertatis; quo statu Reipublicae Hebraeorum. Eplicabant quae Messias primum passurus, quam postea gloriam consecuturus et collaturus etiam esset; at ignorabant circumstantiam tem poris, et ratiocinando, atque conjecturando disquirebant. Atèqui Lorino.

O mesmo diz Salmeirão, ambos doutissimos expositores deste lugar, e ambos trazem em confirmacão o exemplo da Virgem Maria, nossa Senhora, da qual diz o Evangelho: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in corde suo. Conferia a Senhora, com ser alumiada sobre todas as criaturas, as palavras que os pastores referiam ter ouvido aos anjos, as que ouviu a Simeão, a Ana a profetiza, e ao mesmo Cristo Menino, quando o achou entre os doutores; e delas, por discurso natural, inferia e descobria outros mistérios ocultos e profundíssimos, que nas mesmas palavras não estavam expressamente declarados. Isto mesmo é o que se diz no cap. XV dos Atos dos Apóstolos faziam os mais doutos cristãos da primitiva Igreja, e o que Cristo mandou a todos que fizessem, dizendo por S. João na cap. L: Scrutamini Scripturas. É isto o que nós fazemos e devemos fazer, pois de nós e para nós falam os Profetas, como diz o mesmo texto de S. Pedro nas palavras citadas: ...qui de futura in vobis gratia prophetaverunt; e mais abaixo: Quibus revelatum est quia non sibimetipsis, vobis autem mintistrabant, onde a versão siríaca tem: Nostra nobis: vaticinabantur.

E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nós como nossas as entendamos. Mas porque as profecias por sua natural escuridade não sao fáceis de entender, e assim como se há mister necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a quem Cristo chamou luz do Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et ponunt eum sub modio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos em tudo o que dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores sagrados, com que alumiaremos as profecias, e outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos entrar neste labirinto com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente no de Creta.

Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intricado; e para vencer e facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as tochas para ver o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este modo entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.

E porque o Espirito Santo, depois de fechado o número dos livros e os escritores sagrados (o qual se cerrou no Apocalipse de S. João), não deixou de ilustrar e ornar sua esposa a Igreja com o lume e dom da profecia; e depois daqueles seus primitivos anos houve sempre novos profetas, alumiados com o mesmo espirito, que por palavra e escrito predispuseram muitas cousas futuras, assim dos seus, como dos seguintes tempos, também estes darão matéria à nossa História. Não meteremos porém nesta conta senão aquelas profecias somente que, ou pela santidade de seus autores, aprovados e canonizados pela Igreja, ou por outros fundamentos sólidos da razão, experiência e opinião do Mundo, tenham, na forma possível, merecido no juízo dos prudentes o nome e veneração de profecias ou predições verdadeiras.

A este fim empregarei grande parte deste presente livro na qualificação do espírito profético que tiveram todos os autores do futuro que na História se hão-de alegar, por ser este não só o principal, mas o único fundamento de toda a sua verdade, e sem o qual vã e não merecidamente lhe devemos prometer o crédito que de todos os que a lerem esperamos.

Por esta causa se não acharão porventura neste nosso discurso menos algumas que em nome de profecias andam entre o vulgo, sem certeza de autor e muito menos do espírito com que foram escritas; e não só provaremos quanto for necessário o espírito da profecia destes autores, mas diremos o tempo em que escreveram as obras proféticas que deles existam; a inteireza ou corrupção com que se tem conservado, com uma breve relação também das mesmas pessoas (quando não forem geralmente mui conhecidas) pelo muito que importam todas estas notícias não só para a fé e crédito, senão ainda, e muito mais, para a inteligência e combinação das mesmas profecias, que grandemente depende do tempo e de outras semelhantes circunstâncias.

Procuramos quanto nos foi possível que fosse mui exata esta diligência, e não só falaremos nos autores e Profetas modernos e não canônicos, senão igualmente nos antigos e sagrados, pelas mesmas causas. Também excitaremos a este fim e resolveremos várias questões muito importantes ao conhecimento das profecias, pela ordem que a necessidade ou ocasião o for pedindo, e esta será a própria matéria de todo este livro, a que por isso chamamos Anteprimeiro, e é como alicerce de todo o edifício. E posto que todo este tão largo Prolegómeno em rigor não seja História do Futuro, senão preparação ou aparato para ela, à imitação de Barónio e de outros autores, que com menos necessidade o fizeram em suas histórias, esperamos que a matéria, por sua grande variedade e diligente erudição de cousas curiosas, e pela maior parte até agora não tratadas, não será injucunda aos que a lerem, e que possa sem enfado entreter a expectação e desejo da mesma História, enquanto não sai a luz, que será, como em Deus esperamos, muito brevemente.

De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História; porque as cousas que expressa e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos por concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que destas verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda que intervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdades segundas que participam a mesma certeza também infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro ou falsidade, nem perigo de poderem não ser.

As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois a fé e da ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes dissemos, todas as outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento

Restam somente aquelas profecias que, ou por não averiguadas com tão evidente certeza (posto que sempre estabelecidas com bons e racionais fundamentos) ou por sua interpretação não ser tão manifesta ou recebida que não desfaça moralmente toda a razão de dúvida, ficam dentro dos lates da probabilidade opinativa; le nestas, assim o que imediatamente predizem, como as conseqüências que delas por formalização se deduzirem, terão somente certeza provável naquele sentido em que dizemos provavelmente certas aquelas cousas de que há fundamentos prováveis para o serem.

Estes quatro gêneros de verdade são os de que repartidamente se comporá toda a História do Futuro, merecendo, segundo todas suas partes, o nome de história verdadeira, posto que não em todas com igual grau de certeza. Nas do primeiro gênero, verdadeira com certeza de fé; nas do segundo, verdadeira com certeza teológica; nas do terceiro, verdadeira com certeza moral; nas do quarto, verdadeira com certeza provável, pelo modo já explicado; sendo a excelência singular desta História que toda ela, ou provável, ou moral, ou teológica, ou canònicamente, será fundada na primeira e suma Verdade, que é; o mesmo Deus.

Daqui inferimos sem injúria nem agravo de quantas histórias até hoje estão escritas no Mundo, que esta História do Futuro é mais certa e mais verdadeira que todas elas (exceptas somente as Histórias Sagradas), e ainda esta excepção se não deve entender em todo, senão em parte; a História do Futuro igualará na verdade e na certeza, gu, por melhor dizer, se não distinguirá delas, por ir toda (como vai) não só fundada nos mesmos textos e sentenças da Escritura divina, mas formada e como tecida deles.

E digo que sem injúria nem agravo de todas as outras histórias humanas, porque, como também terão advertido os mais lidos e versados, assim nas antigas como nas modernas, todas elas estão cheias, não só de cousas incertas e improváveis, mas alheias e encontradas com a verdade, e conhecidamente supostas e falsas, ou por culpas ou sem culpa dos mesmos historiadores.

Que historiador há ou pode haver, por mais diligente investigador que seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações? E que informações há de homens, que não vão envoltas em muitos erros, ou da ignorância, ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração e tão inteiro amador da verdade, que o não incline só o respeito, a lisonja, a vingança, o ódio, o amor, ou da sua, ou da alheia nação, ou do seu ou de estranho príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue, e todos na tinta de escrever misturam as cores do seu afeto.

Prova Tácito a verdade da sua história, com ter longe as causas do ódio e amor; mas de aí se convence contra ele, que também tinha longe as informações da verdade. O certo é que só tinha perto a ambição de seu próprio juízo, com que formava os processos para as sentenças, e não as sentenças sobre os processos. Por isso Tertuliano lhe chamou com razão mendaciorum loquacíssimum.

Não aponto erros em particular das histórias mais vizinhas a nossos tempos por reverência deles, e porque fora matéria infinita. Das dos Gregos e Romanos disse S. Jerônimo, por ocasião do milagre da serpente: Cedaxt huic veritati, tam graeco quam romano stylo mendacis ficta miracula. E Cícero, que é mais, no livro primeiro das Leis: Apud Herodotum patrem Historiae et apud Theopompum sunt innumerabiles fabulae. Estes foram os pais da História humana, e desta é filha legítima a sua verdade, sobre a qual batalham tantas vezes os mesmos historiadores, mas nunca com conhecida vitória.

Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas, leia a mesma históna por diferentes escritores, e verá como se encontram, se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, sendo infalível que um só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz. Mas isto mesmo se conhece, ainda com maior evidência, daquelas histórias de que temos verdadeira relação nas Escrituras Sagradas, como são as de Noé, do Dilúvio, da divisão das primeiras gentes; as dos Assírios, Persas, Medos, Romanos, Egípcios, Gregos, e principalmente a dos Hebreus, com os quais cotejado, como em pedra de toque, o que escteveram os Berosos, os Heródotos, os Diodoros, os Trogos, os Cúrcios, os Lívios, e todos os outros historiadores daquelas nações e tempos, apenas se acha cousa que não seja contradição da verdade; e desta mesma experiência e razões dela se qualifica claramente ser a nossa História do Futuro mais verdadeira que todas as do passado porque elas em grande parte foram tiradas da fonte da mentira, que é a ignorancia e malícia humana, e a nossa tirada do lume da profecia e acrescentada pelo lume da razão, que são as duas fontes da verdade humana e divina.