Segunda utilidade.
A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos próximos e presentes, é a paciência, constância e consolacão nos trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.
Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.
Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades, antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima sunt et vera.
Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal, e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais certo) nenhuma cousa poderão ter os homens de maior consolação, alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.
A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé e a fé nas Escrituras.
Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se cercada e combatida por todas as partes de poderosíssimos inimigos, só e desamparada, e sem amigo nem aliado que a socorra? Neste estado se viram muitas vezes no tempo de seu governo os Macabeus, de que Deus . sempre os livrou com maravilhosas vitórias e assistências do Céu, pelas quais lhes não foi necessário valerem-se da confederação que naquele tempo tinham com os Romanos e Esparcíatas; e dando conta disso aos mesmos Esparcíatas, Jónatas, que então governava o povo, diz assim em uma epístola: Nos. cum nullo horum indigeremus, habentes solatio sanctos libros qui sunt in manibus nostris, maluimus mittere ad vos renovare fraternitatem et amicitiam: «Mandamos renovar por este nosso embaixador (diz Jónatas) a antiga amizade e confederação» que convosco fizeram nossos maiores, não porque tenhamos necessidade dela e dos vossos socorros, posto que não nos faltam inimigos, guerras, opressões e trabalhos, mas temos sempre em nossas mãos os Livros Santos, em que lemos as promessas divinas, e com eles e com elas nos consolamos e animamos a resistir, pelejar e vencer, como temos vencido e vencemos a todos nossos inimigos.
No cap. VIII se verá que sem atrevimento ou demasiada confiança podemos chamar a esta nossa História do Futuro livro santo, se houver (como há-de haver primeiro) trabalhos, perigos, opressões, tribulações, assolações, e todo o gênero de calamidades, misérias e açoutes, com que Deus costuma castigar, emendar e domar a rebeldia dos corações humanos.
Para esta ocasião, e tão apertada sai a luz e se oferece ao Mundo este livro santo, no qual acharão os aflitos alívio, os tristes consolação, os atribulados esperança, paciência, constância e fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.
É cousa muito digna de notar, que nunca no povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilônia e no mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amos; no cativeiro profetizou Miqueas, Habacuç Jeremias, Ezequiel, Daniel e Solonias. De maneira que, sendo só doze os Profetas canónicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo, profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade.
A razão deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão.
Ordenou pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.
Foi mui particular neste caso entre todos os outros Profetas o zelo e diligência de Jeremias, porque, tendo ficado em Jerusalém, onde padeceu grandes trabalhos, prisões e perigos da vida por pregar e profetizar a verdade (pela qual finalmente morreu apedrejado), no meio destas opressões e perigos próprios, não esquecido dos alheios, antes mui lembrado do que padeciam os desterrados de Babilônia, escreveu um livro das suas profecias, em que por termos muito claros e palavras de grande consolação lhes anunciava a liberdade e o tempo dela, como se pode ver no cap. XXIX do mesmo Profeta. Levou este livro a Babilônia o Profeta Baruch, companheiro de Jeremias, leu-se em presença de El-Rei Iconias e publicamente de todo o povo, que com ele vivia no cativeiro, e nota o mesmo Baruch que todos com grande alvoroço corriam ao livro. Assim o diz no primeiro capítulo da relação que fez desta jornada, e anda no Texto Sagrado junta com as obras de Jeremias: Et legit Baruch verba libri hujus ad aures Jechoniae, filii Joachim, regis Juda, et ad aures universi populi venientis ad librum
Não sei se terá a mesma fortuna, e se será recebido e lido com o mesmo animo e afecto este nosso livro da História do Futuro; mas sei que nos trabalhos calamidades e aflições que há-de padecer o Mundo e pode ser cheguem também a Portugal, nem Portugal nem o Mundo poderá ter outro alívio nem outra consolação maior que a freqüente lição e consideração deste livro e das profecias e promessas do futuro que nele se verão escritas. Ao menos não negará Portugal que, no tempo da sua Babilônia e do cativeiro e opressões com que tantas vezes se viu tão maltratado e apertado, nenhuma outra apelação tinha a sua dor, nem outro alívio ou consolação a sua miséria, mais que a lição e interpretação das profecias, e a esperança da liberdade e do ano dela, e do termo e fim do cativeiro que nelas se lia.
Lia-se na carta e tradição de S. Bernardo que quando Deus alguma hora permitisse que o reino viesse a mãos e poder de rei estranho, não seria por espaço mais que de sessenta anos. Lia-se no juramento de El-Rei D. Afonso Henriques e na promessa do santo ermitão, que, na décima sexta geração atenuada, poria Deus os olhos de sua misericórdia no Reino. Lia-se nas célebres tradições de Gregório de Almeida no seu Portugal Restaurado, que o tempo desejado havia de chegar, e as esperanças dele se haviam de cumprir no ano sinalado de quarenta; e no concurso de todas estas profecias se consolava e animava Portugal a ir vivendo ou durando até ver o cumprimento delas.
Falando no mesmo cativeiro de Babilônia o mesmo profeta Isaías, e do alívio e consolação que com suas profecias haviam de ter em seus trabalhos aqueles cativos, diz com igual brandura e eloquência estas notáveis palavras: Spiritus Domini super me [...] ut mederer contritis corde et praedicarem captivis indulgentiam [...] ut praedicarem annum placabilem Domino [...] ut consolarem omnes 1ugentes [...] et darem eis coronam pro cinere, oleum gaudii pro luctu... «Desceu sobre mim o Senhor, e ungiu-me com seu espírito, diz Isaías, para que como médico dos aflitos cativos de Babilônia, curasse com o talento de minhas promessas e profecias, a tristeza e desmaio de seus corações». E declarando mais em particular os remédios cordiais que lhes aplicava, aponta nomeadamente dois que mais parecem receitados para o nosso cativeiro que para o de Babilônia: o primeiro, era um ano de indulgência e redenção, em que o cativeiro se havia de acabar: Et praedicarem captivis indulgentiam, annum placabilem Domino; o segundo, era uma coroa trocada pelas antigas cinzas, com que os lutos e tristezas passadas se convertessem em festas e alegrias: Et darem eis coronam pro cinere, oleum gauudii pro luctu.
Assim o liam os cativos de Babilônia; a nas suas profecias, e assim o líamos nós também nas nossas. E assim como eles não tinham outro remédio na sua dor senão a esperança daquele desejado ano e a mudança daquela prometida coroa, assim nós, com os olhos longos no suspirado ano de quarenta e na esperada coroa do novo rei português, aliviávamos o peso do nosso jugo e consolávamos a pena do nosso cativeiro. E pois este remédio das profecias foi tão presente e eficaz para os trabalhos passados, razão tenho eu (e razão sobre a experiência) para esperar e confirmar que o será também para os futuros.
Eu não prometo nem espero infortúnios a Portugal; mas ou sejam de Portugal, ou da Cristandade, ou do Mundo os que pode causar nele a necessidade ou a adversidade dos tempos, para todos lhes prometo este remédio: melhor é que sobejem os remédios à cautela, do que faltem à providência.
E porque não pareça que argumento só de casos e profecias de tempos antigos, sejam os casos e profecias próprias dos nossos tempos e escritas só para eles.
Ninguém ignora que as profecias do Apocalipse e mais ainda as que estão por cumprir) são próprias dos tempos que hoje correm e hão-de parar no fim do Mundo. Assim o dizem Padres e expositores, e nós o mostraremos em seu próprio lugar. Mas a que fim, pergunto, ordenou a Providência Divina que S. João tivesse aquelas revelações e escrevesse aquelas profecias?
É pergunta esta de que foi respondida Santa Brígida, como se lê no Livro VI de suas Revelações. Querendo Cristo, por particular favor, que a santa ouvisse a resposta da boca do mesmo Profeta, apareceu ali S. João e disse desta maneira: Tu, Domine, inspirasti mihi mysteria ejus, et ego scrpsi ad consolationem futurorum, ne fideles tui propter futuros casus everterentur: «Vós, Senhor, me revelastes aqueles mistérios, e eu escrevi as profecias deles para consolação dos vindouros e para que os vossos fiéis com os casos futuros se não perturbassem», antes confirmados com as mesmas profecias, estejam neles constantes.
Este é o fim (posto que não só este) por que Deus revela as cousas futuras, e por que os Profetas antigos, e o último de todos, que foi S. João, as escreveram: para que se veja quão justa e quão útil é, e quão conforme com a vontade e intento de Deus, a diligência com que eu me disponho, e o trabalho de escolher entre todas as profecias que pertencem a nossos tempos, e de as ajuntar, ordenar e tirar à luz para o benefício público. E porque o fruto deste benefício se pode colher nas novidades que promete este mesmo ano em que. somos entrados, aplicando o remédio à ferida ou aos ameaços dela, digo assim com o profeta Amos: Leo rugiet; quis non timebit? Dominus Deus locutus est quis non prophetabit ? Está o leão bramindo? Sim, está; pois agora é o tempo de se ouvirem as profecias e de se saber e publicar o que Deus tem dito: Dominus Deus locutus est. quis non prophetabit? Falem todos nas profecias e entendam-nas todos, pratiquem-nas todos, que agora é o tempo.
Quando as bramidos do leão se ouvirem em suas caixas e trombetas, soe também em nossos ouvidos por cima de todas elas, o trovão de nossas profecias. Assim lhes chamei, porque são voz do Céu. Leo rugiet, quis non timebit? «Quando bramir o leão, quem não tremerá?»
Responderão com razão os nossos soldados que não temerão aqueles que tantas vezes os têm vencido; que não temerá Portugal, que é o Sansão que tantas vezes o tem desqueixado. que não temerá Portugal, que é o Hércules que tantas vezes se tem vestido de seus despojos; que não temerá Portugal que é o David que tantas vezes lhe tem tirado das garras os seus cordeiros. Esta é a resposta do valor, e esta pode ser também a da arrogância, de que Deus se não agrada.
Não confie Portugal em si, porque se não ofenda Deus; confie só no mesmo Deus e em suas promessas, e pelejará seguro. Oh! que bem armados esperarão o leão na campanha os nossos soldados, se tiverem nas mãos as armas e no coração as profecias! Leo rugiet, quis non prophetabit?
Estas são as trombetas do Céu, de cujo som tremem os muros de Jericó e a cuja bateria nenhuma fortaleza resiste.
Mas se acaso (que pode ser) houver algum sucesso adverso (que também depois do milagre de Jericó houve nos campos de Hai), não perca Josué nem seus soldados o animo; recorram a Deus e a suas promessas, que por isso nos tem prevenido com elas.
Costuma a Providência Divina começar suas maravilhas por efeitos contrários, ou para provar nossa fé, ou para mais exaltar sua omnipotência. Ele pode mais que todos os poderes humanos, e só uma cousa não pode, que é faltar ao que tem prometido. Deixou Cristo aos discípulos lutar com a tempestade na primeira vigia, na segunda não lhos acudiu, nem na terceira; e quando na quarta, depois de os atemorizar com fantasmas, os socorreu com sua presença, ainda então os repreendeu de pouca confiança. Escureça-se a noite, brame o mar, rompa-se o céu, enfureçam-se os ventos, que Deus há-de acudir por sua palavra; seguro está o Reino em que ele e a palavra de Deus correm o mesmo perigo.
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