Padre António Vieira
HISTÓRIA DO FUTURO, I
CAPÍTULO II

Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os Portugueses à lição dela.

No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal. Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram antes ignorá-los.

...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura,
Et Superos vetuere loqui...

Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.

O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações, busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede, anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.

Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe perdoara a vida.

Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria se os prometera?

Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos Assírios, ajuntou também que o havia de ganhar o dos Persas e Medos: Divisum est regnum tuum et datum est Medis et Persis.

Eu, Portugal, (com quem só falo agora) nem espero o teu agradecimento, nem temo a tua ingratidão. Porque, se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos; se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a má fortuna sem receio, assim como te digo a boa sem lisonja. Mas é tal a tua estrela (benignidade de Deus contigo deverá ser), que tudo o que leio de ti são grandezas, tudo que descubro melhoras, tudo o que alcanço felicidades. Isto é o que deves esperar, e isto o que te espera; por isso em nome segundo e mais declarado chamo a esta mesma escritura Esperanças de Portugal, e este é o comento breve de toda a História do Futuro.

Mas vejo que o mesmo nome de Esperanças de Portugal lhe poderá com razão suspender o gosto, assustar o desejo e embaraçar os mesmos alvoroços em que o tenho metido com estas esperanças: Spes qae differtur, affligit animam, disse a Verdade divina e o sabe e sente bem a experiência e paciência humana: ainda que seja muito segura, muito firme e muito bem fundada a esperança, é um tormento desesperado o esperar.

Muito seguras eram, e tão seguras como a mesma palavra de Deus (que não pode mentir nem faltar)`, as promessas dos antigos Profetas; mas cansava-se tanto o desejo na paciência de esperar por elas, que vinham a ser fábula do vulgo em Jerusalém as esperanças das profecias. Assim conta esta queixa Isaías no capítulo XXVIII, que pelas ruas e praças da corte se andavam cantando por riso as suas esperanças, e que a volta ou estribilho da cantiga era:

...expecta, reexpecta,
Expecta, reexpecta.
Modicum ibi,
Modicum ibi.

Esperavam, reesperavam e desesperavam aqueles homens, porque em muitas cousas das que lhes prometiam as profecias, primeiro se acabava a vida do que chegasse a esperança. Deixaram os pais em testamento as esperanças aos filhos, os filhos aos netos e nem estes, sendo então as vidas mais compridas, chegavam a ver o cumprimento do que tão longamente tinham esperado. As esperanças da Terra de Promissão deixou-as Abraão a Isaac, Isaac a Jacob e Jacob aos doze Patriarcas; mas todos eles morreram e foram sepultados no Egito. A quem há-de cobrir a terra do Egito, que lhe importam as esperanças da terra de Promissão? No cativeiro de Babilônia pregavam e prometiam os Profetas que Deus havia de levantar mão do castigo e restituir o povo à sua antiga liberdade; e se lhes perguntavam quando, respondiam e afirmavam constantemente que dali a setenta anos.

Boa esperança para um cativo, ainda que não fosse muito velho. De que me serve a esperança da liberdade, se primeiro se há-de acabar a vida? O mesmo podem argüir os que hoje vivem com estas esperanças, que eu lhas prometo. Grandes são essas esperanças de Portugal; mas quando há-de ver Portugal essas esperanças?

Ponto é este que depois se há-de tratar muito de propósito, e em que a nossa História há-de empregar todo o quinto livro. Por agora só digo que me não atrevera eu a prometer esperanças, se não foram esperanças breves. Deus na Lei Escrita, como notaram grandes autores, nunca prometeu o Céu expressamente, porque o que se não pode dar logo não se há-de prometer. Prometer o Céu para ir esperar por ele ao Limbo, são promessas em que por então se dá o contrário do que se promete. Tais são as esperanças dilatadas. Se nelas se promete a vida, são morte; se nelas se promete o gosto, são tormento; se nelas se promete o Paraíso, são Inferno.

O Limbo chamava-se Inferno; e porque? Porque era um lugar onde se esperava tantos anos pelo Paraíso. Não me tenha a minha Pátria por tão cruel, que lhe houvesse de prometer martírios com nome de esperanças. Para se avaliar a esperança, há-se de medir o futuro, e não é este o futuro da minha História.

São Paulo, aquele filósofo do terceiro Céu, desafiando todas as criaturas, e entre elas os tempos, dividiu os futuros em dois futuros: Neque instantia, neque futura. Um futuro que está longe e outro futuro que está perto; um futuro que há-de vir e outro futuro que já vem; um futuro que muito tempo há-de ser futuro — Neque futura — e outro futuro que brevemente há-de ser presente: Neque instantia.

Este segundo futuro é o da minha História, e estas as breves e deleitosas esperanças que a Portugal ofereço. Esperanças que hão-de ver os que vivem, ainda que não vivam muitos anos, mas viverão muitos anos os que as virem. Lignum vitae, desiderium veniens, disse no mesmo lugar alegado a mesma Verdade divina.

Assim como há esperanças que tardam, há esperanças que vem. As esperanças que vem são o pomo da árvore da vida: Lignum vitae desiderium veniens. A virtude maravilhosa daquele pomo era reparar e acrescentar a vida e remoçar aos que o comiam. As esperanças que tardam, tiram a vida; as esperanças que vem, não só não tiram a vida, mas acrescentam os dias e os alentos dela: Spes quae differtur, affligit animam. Lignurn vitae, desiderium veniens.

Que vida haverá em Portugal tão cansada, que idade tão decrépita, que à vista do cumprimento destas esperanças, não torne atrás os anos para lograr tanto bem? Vivei, vivei, Portugueses, vós os que mereceis viver neste venturoso século! Esperai no Autor de tão estranhas promessas, que quem vos deu as esperanças, vos mostrará o cumprimento delas.

Não é privilégio este de qualquer profecia, mas daquelas profecias de que se compõe esta História. Sim, porque são mais que profecias. Um profeta houve no Mundo mais que profeta, que foi o grande precursor de Cristo. E por que razão mereceu a singularidade deste nome S. João entre todos os profetas deste Mundo? Porque os outros profetas prometeram a Cristo futuro, mas não o viram, nem o mostraram presente; o Batista prometeu o futuro com a vez, e mostrou o presente com o dedo — Cecinit ad futurum, et adesse monstravit.

Se houve um profeta que foi mais que profeta, porque não haverá também algumas profecias que sejam mais que profecias? Assim espero eu que o sejam aquelas em que se fundam as minhas esperanças e que, se nos prometem as felicidades futuras, também as hão-de mostrar presentes. Agora as prometem com a voz, depois as mostrarão com o dedo.

Mas este grande assunto fique para seu lugar. Só digo que quando assim suceder, perderá esta nossa História gloriosamente o nome, e que deixará de ser História do Futuro, porque o será do presente.

Mas perguntar-me-á porventura alguma emulação estrangeira (que às naturais não respondo): se o império esperado, como se diz no mesmo título, é do Mundo, as esperanças porque não serão também do Mundo, senão só de Portugal? A razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos futuros que se esperam, e a mais gloriosa deles, será não só própria da Nação portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os instrumentos prodigiosos delas os Portugueses.

Vê agora, ó Pátria minha, quão agradável te deve ser. e com quanto gosto deves aceitar a oferta que te faço desta nova História, e com que alvoroço e alegria pede a razão e amor natural que leias e consideres nela os seus e os teus futuros. O Grego lê com maior gosto as histórias de Grécia, o Romano as de Roma e o Bárbaro as da sua nação, porque lêem feitos seus e de seus antepassados . E Portugal que com novidade inaudita lerá nesta História os seus e os dos seus vindouros, com quanto maior gosto e contentamento, com quanto maior aplauso e alvoroço será razão que o faca?

Portentosas foram antigamente aquelas façanhas, ó Portugueses, com que descobristes novos mares e novas terras, e destes a conhecer o Mundo ao mesmo Mundo. Assim como líeis então aquelas vossas histórias, lede agora esta minha, que também é toda vossa. Vós descobristes ao Mundo o que ele era, e eu vos descubro a vós o que haveis de ser. Em nada é segundo e menor este meu descobrimento, senão maior em tudo. Maior cabo, maior esperança, maior império.

Naqueles ditosos tempos (mas menos ditosos que os futuros) nenhuma cousa se lia no Mundo senão as navegações e conquistas de Portugueses. Esta história era o silêncio de todas as historias. Os inimigos liam nela suas ruínas, os êmulos suas invejas e só Portugal suas glórias. Tal é a História, Portugueses, que vos presento, e por isso na língua vossa. Se se há-de restituir o Mundo à sua primitiva inteireza e natural formosura, não se poderá consertar um corpo tão grande, sem dor nem sentimento dos membros, que estão fora de seu lugar. Alguns gemidos se hão-de ouvir entre vossos aplausos, mas também estes fazem harmonia. Se são dos inimigos, para os inimigos será a dor, para os êmulos a inveja, para os amigos e companheiros o gosto e para vós então a glória, e, entretanto, as esperanças.