Não podemos passar pelos títulos das obras como se eles fossem janelas totalmente transparentes a nos remeterem de imediato para além. Ao contrário, não só a transparência é enganosa como uma parada para perceber sua real textura é necessária.
Assim, Anacrusa (2004), título do romance de Ricardo Daunt, oferece-nos como signo que nos instiga a atenção pelos sentidos sugeridos por essa forma de composição na qual se cruzam diversas fontes. Procedimento musical mas também forma poética e discursiva, na anacrusa despontam repetições, oscilação entre andamentos, arranjos inusitados, espaços e imagens imprevisíveis, contrapontos. E, sobretudo, uma modulação que se autocontempla como fazer. É o que a narrativa apresentará em seu percurso.
Não por acaso, o processo da anacruse, que o texto coloca em prática, era uma das técnicas do discurso socrático, dinâmica em que uma palavra provoca outra palavra de modo a destacar, não propriamente os sujeitos do discurso, mas a germinação de fios tecidos pela linguagem.
O que confere dinamismo ao texto ficcional do Autor, dentre outros aspectos, é a sua composição à maneira de uma montagem de cenário, não somente pela alusão às peças que o compõem, mas principalmente pelo processo escritural que vai se realizando aos olhos do leitor. Estruturado em quatro momentos – “Os nomes e os modos”, “A levedura dos corpos”, “A pelotinha de Isabel”, “O equinócio e a germinação das plantas”- essa singular trajetória do romance enunciada já pelos títulos permite situar a narrativa num espaço marcado pelos corpos que encenam a construção de sua existência no universo da escrita. Articulação que se explicita na retomada de frases ou palavras finais de um capítulo no seguinte, alternando-se a modulação fraco/forte e tornando-a plena de conotações, assim ampliando o sentido original de musicalidade da anacrusa. Personagens, vozes, tempos e espaços autoconstituem-se como peças móveis, apenas aparentemente moduladas por um narrador que ao mesmo tempo rege a composição e a deixa se fazer por si mesma. Desse modo, se um fio existencialista poderia perpassar a narrativa, ele acaba dissolvendo-se graças à maneira original com que o existencialismo se estrutura, tratando-se, antes, como o próprio Autor reconhece, de um neo-existencialismo, menos por sua temática do que pela construção inovadora. Se o romance está centrado em três personagens – Antônio, Vidal e Isabel – o movimento que essa triangulação adquire acaba desfocando as identidades para colocá-las num círculo de contínuas correspondências e intersecções. E, se lembrarmos que Anacrusa dá continuidade a outro romance de Daunt, Manuário de Vidal (1981), então as correspondências e o jogo com as identidades intensificam mais ainda os seus sentidos.
Entre Antônio e Vidal, desdobramentos de um mesmo (?) sujeito, arma-se um jogo de cabra-cega, de mútuas provocações, quer pela disputa por Isabel, quer pela busca de afirmação das identidades ou consciências, as quais simultaneamente se complementam e se recusam a ser a contraparte um do outro. É que Vidal, a componente infantil ou imatura de Antônio, e este, já na fase adulta, constituem instâncias de um psicologismo problemático, porém corporificado na técnica discursiva auto-reflexiva por meio da qual a ironia, com que tal desdobramento é focado, acaba desmitificando a prática convencional do psicologismo da narrativa realista: “Digo-lhe que Vidal está crescido, e que seus suspiros fundos não me deixam dormir. Por fim suplico-lhe para deixar o adolescente em paz.” (p. 56). Essa oscilação engenhosa entre maturidade e imaturidade se fortalece quando o que está em causa é o imaginário masculino acerca da figura feminina, representada pela personagem Isabel. O mito da mulher-peixe, complementado pela visão fantasiosa (e fantástica) da sexualidade, não só traduzem a busca de decifração do ser feminino como também desmascaram o conflito interior (homem adulto x criança), ambos marcados pela ambigüidade entre transparência e opacidade. Objeto que desliza para o incapturável, a mulher atua como invasora do espaço familiar e perturbadora da ordem, mas também instigadora de gestos liberais. Despontam na narrativa curiosas situações metafóricas, como a descoberta por Vidal de seu apetite sexual, levando-o a retirar a tampa do aquário em que estava imersa a mulher para poder tocá-la, procurando “emancipar Isabel de seu recanto”. (Con)fundindo-se o real e o fantástico, ingenuidade e malícia, revelação e ocultamento, a ótica desestabilizadora do narrador põe a nu o difícil exercício de autoconhecimento a que se entrega o sujeito.
Uma das faces que a ficção de Daunt exibe é seu espírito corrosivo na focagem de sistemas autoritários ou repressores, como o guarda, personagem que percorre a narrativa em vários de seus momentos (a policia?), sendo objeto de desmascaramento pelo narrador. A sua transformação em espantalho, um fantoche a serviço do poder, quer o da narrativa, quer o da instituição social, não se dá apenas como fato da diegese, mas sobretudo como construção hábil de uma linguagem que vai operando essa metamorfose grotesca nas imagens que enumera, promovendo uma carnavalização que põe em cena as várias faces ou losangos da figura arlequinal a que a autoridade se reduz quando é deslegitimado o seu papel. A quebra da Lei, pela instauração da rebeldia, patenteia-se na ousadia com que o personagem-narrador relata ao guarda suas ações ilegais, numa espécie de síntese da trama factual. E a recapitulação diegética termina com a capitulação da figura autoritária, desvestida literal e figuradamente de seu poder e sendo amarrada pelas personagens.
Também a instituição religiosa recebe tratamento caricato para atender ao propósito desmascarador que fisga as fraquezas do comportamento eclesiástico: “O pároco, que por tanto tempo cultivou o hábito de esgueirar-se pelas traseiras da igreja em visitações clandestinas, perdera de vez toda a roupa de clérigo, mais parecendo um cristo à cata de uma cruz em que pudesse instalar sua figura.” (p.107). Eis uma caricatura em que ecoa a consciência irônica de Eça de Queirós, porém atualizada pelo pathos que marca o final da descrição.
Pode-se dizer que o poder revolucionário acionado pela ficção de Daunt exercita-se duplamente, tanto como situação ficcionalizada, quanto como concepção de uma escrita que desarma as convenções de estruturas previsíveis. Uma das estratégias para criar o desarme está na composição dos discursos diretos, animados por uma espirituosidade que faz explodirem os limites do plausível bem como a moldura que os amarra à tradição. Ressalte-se, por exemplo, o diálogo entre Antônio e Vidal, na passagem que singulariza a caça, na primeira parte do romance. Também nesse primeiro momento, ao final do capítulo 4, as falas de Isabel, subtraídas da página, vêm indicadas apenas por aspas emoldurando o vazio textual, uma performatização que reproduz a demora do relato minucioso de fatos por Antônio, não deixando espaço para a interlocutora, que acaba explodindo de impaciência: “Às favas, Antonio. Onde e quando o encontro com Vidal?” (p.49). Outro momento engenhoso de situação dialogada encontra-se no final do capítulo 12 de “A pelotinha de Isabel”, em que é discutido, pelas três personagens do insólito triângulo amoroso, Antônio, Isabel e Vidal, o destino da pelotinha. O absurdo legitima-se pela espantosa coerência da argumentação e se mescla à auto-referencialidade da enunciação: “Na época em que eu comia vermes eu era grande, mas não o bastante. Depois então fiquei pequena e agora me tornei grande outra vez. Ou ninguém conhece a cronologia dos fatos aqui?” (p.99). Por sua vez, o final do capítulo 13 exemplifica o mutismo que desabou sobre a terra em decorrência do refluxo, configurando-se magistralmente em:
“............... “, insinuou Vidal, gesticulando.
“............................ “, assenti com a cabeça.
“..................... “, Isabel, chamando-nos para o jantar.
“........... “, agradeceu o espantalho. (p.113)
A componente lúdica revela-se na versatilidade que engendra os trocadilhos:
“Mais do que nunca as conversas foram amenas
Anêmicas, Antonio” (p.115)
É contra essa anemia ou acomodação diante do real e de sua re-escrita pela narrativa que se insurge o narrador de Anacrusa. Buscando ritmos diversos e estruturas inusitadas, o texto empreende uma aventura rumo a uma nova concepção romanesca cujo propósito é o de “capturar o espaço intermediário da fabricação de uma narrativa”, como o Autor descreve seu projeto estético. Ou seja, não é o texto definitivo ou “arte final” que interessa, mas um texto em que pulsam contradições, incertezas, sentidos semeados e disseminados, enfim, uma composição híbrida que dissolve a linearidade da prosa e dá corpo à forma circular do poético. Nesse sentido, convém atentarmos, por exemplo, ao final de “A levedura dos corpos”, capítulo 7, o qual se configura como um longo e único texto, num encadeamento de frases sem pontos finais e ritmadas, como se acionadas pelo segmento inicial “Sob o ritmo do barco os cachos de ondas desmanchando a pintura do rosto (…)” (p.67). Assim como a levedura dos corpos, o texto vai fermentando suas imagens, transformando-as num fluxo que faz escorrer o espírito inquieto do eu-narrador para construir o caos primordial, o fim e o começo de um mundo alimentado pelo son(h)o.
Sem dúvida, a imagem que melhor traduz, na narrativa, a sua composição por montagem é o caleidoscópio. Embora implícito ao longo do romance, indiciado na sua estrutura circular e em anacrusa, como dissemos, é ao final, no “Capítulo Sem Número”, que o caleidoscópio desponta como signo a atuar como verdadeira metáfora da narrativa. Esse brinquedo, recuperado da infância de Isabel pelo personagem-narrador, serve-lhe de instrumento para tentar enxergar “o nítido nulo” para onde teriam seguido Vidal e o espantalho, personagens que o narrador desloca para fora de seu alcance e com eles brinca, atitude metafórica do apagamento ou retirada desses fantasmas de seu passado. Olhar pelo orifício do caleidoscópio e movimentá-lo propicia o efeito duplo de manipular as peças da matéria narrada para dar-lhes novas configurações e iluminar o próprio processo da enunciação, marcado pela heterogeneidade de suas imagens e estratégias de construção: “A cada curto sobressalto os espelhos propunham novo esquema de cores e ocupação do espaço absolutamente original.”(p.121).
Olho mágico que re-inventa o real fundindo-o ao fantástico, desloca as identidades como se fossem vidrilhos combinatórios e aciona o imaginário, o caleidoscópio é a própria narrativa de Anacrusa. É por conta de seu manejo, por exemplo, que a narrativa pode se abrir e se fechar com as mesmas imagens, porque reviradas e rearranjadas em sua função: moscas e mariposa, presentes no início e final, são peças que não apenas compõem o cenário da escrita mas atuam com gestos que denunciam o próprio desenvolvimento da trama montada. Imóveis ou debatendo-se e roçando as asas, elas acompanham atentas os primeiros e últimos acordes da narrativa de que também fazem parte. É por meio ainda dessa manipulação lúdica que o narrador faz as personagens desaparecerem e exercita o olhar para si mesmo, então confundido com um palhacinho: “pelo orifício do caleidoscópio do palhacinho pude ver um único vidrilho, que podia ser o reflexo de uma agulha sob o sol, ou nada, coisa nenhuma.” (p.126). Assim como as outras personagens e os espaços por onde transitam, o personagem-narrador não é senão um fortuito arranjo ou peça frágil prestes a se desmanchar, afinal identidades imaginárias, forjadas nas figurações do texto montado. Mas, mesmo instável e a existir como reflexo provisório, há um único vidrilho que permanence, tal como o único caco que brilha, “virado do exterior lustroso, entre os astros”, no poema “Apontamento”, de Álvaro de Campos – a coisa nenhuma, desmembrada e fraturada, tem o seu avesso, seja lustroso ou opaco (não importa), que o poder do imaginário faz fulgurar nesse instante intenso de captura pela leitura.
E, quando pensamos que a montagem estaria completa, vem outra sacudidela do caleidoscópio pelo narrador, surpreendendo-nos com mais um artifício. Já no final do romance, ao ser focalizada a casa que abriga o personagem-narrador e Isabel, preparados para beber o absinto plantado no jardim, a cena se transforma num tabuleiro móvel, onde se joga uma relação ambígua, reversível, entre vidente e visível, interior e exterior, continente e conteúdo. Mas o efeito de real (lembremo-nos de Barthes) parece nos atingir, por força mesmo da intensidade de sua espessura enquanto construção habilmente jogada por seu autor. É por isso que, como uma experiência de leitura provocada por essa instigante narrativa, fica-nos a tentação para fruirmos o capítulo 17 como se nele estivessem as últimas palavras de um cenário que não precisa ser fechado, nem continuado. Fiquemos com o brinde inconcluso, por isso intenso, que aproxima as personagens e a casa:
“(…) e um sol gelado e manso ao pé da fornalha, se aquecendo timidamente, meu corpo tocado, rompida a membrana travo estigma, Isabel e a casa, por ora a casa, escorrendo pelos dedos, o cálice.” (p.135)
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