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GLEDSON SOUSA

A Quimera

Vá com calma; não pense que só nas primeiras linhas já terá desvendado o que sou, formado uma imagem mais próxima daquilo que você supõe ser o real de mim. Você já viu alguma foto do planeta Mercúrio? Quando eles conseguiram fotografá-lo, só conseguiram fotografar o seu lado visível, a outra metade permaneceu no escuro. E mesmo assim a face fotografada aparece como um mosaico de diferentes quadros, monta-se o quebra-cabeça e lá está, Mercúrio.

Talvez eu seja assim, foi em 76, eu acho, que eles mandaram uma sonda vasculhar o pequeno planeta. Eu teria uns 4 anos. Fica a pergunta: que eu? Sou como esses planetas que só a distância dá a imagem mais aproximada: mas como me distanciar de mim para assim conseguir me enxergar?

Quatro anos. Quatro anos não é lá uma idade precisa. Muito da memória é uma só confusão com o presente, ou mesmo com o futuro; muitas vezes o visto e o vislumbrado confundem-se numa mesma entidade mítica, configurando aquilo que tentamos ser. São tentativas, talvez não mais que isso, de construir um mundo ao nosso controle, não queremos ser marionetes e sim diretores. Não sei se exatamente se naquele ano, mas me recordo de olhar-me uma vez no espelho e ver mais do que eu queria ver, mais do que eu conseguia entender. Me vi outro, ao meu lado. Bingo, dirão os psiquiatras de plantão, sua esquizofrenia vem desde a infância. Bingo.

Não deve ter sido aos quatro anos, tudo é muito brumoso nesse passado. Cinco, seis anos? Só sei que me senti como se caísse devagar num lugar desconhecido, entre pessoas estranhas, de nomes comuns e rostos usuais que se auto denominavam pais, irmãos, tios, primas, enfim, toda a fauna particular da família.

Tudo é um grande erro. Não sou mais que uma hipóstase de mim mesmo. O único rosto que vi foi: o de ninguém.

Sei que numa certa altura, comecei a abrir os olhos. Vivia em meio ao pleroma da infância e acho que não existia nada fora de mim: o tempo, o espaço, o sonho, estavam guardados como as jóias do conto de Ali Babá, e eu era a caverna. Cabia muito em mim, mas eu pouco entendia do muito que havia. Lembro-me que apanhei, uma vez, porque fiquei escondido a olhar a minha mãe trocar de roupa; não era o desejo o que me movia, era a curiosidade, o desejo sim, de descobrir a diferença. Paguei por aquilo e aprendi que as pessoas criavam relações de causalidade absurdas, os fins e os meios confundiam-se num jogo sério de manipulações variadas que falsificavam o acontecido em outra coisa, senão somente naquilo que eles queriam ver. Aprendi a mentir.

A arte do mosaico e a do quebra-cabeças são semelhantes; o que muda é somente a finalidade e o material: o mosaico dura todo um tempo capaz de acompanhar as mudanças de uma civilização; o quebra-cabeça resigna-se a sua condição episódica de passatempo. Vemos hoje os mosaicos de Pompéia: alguns são retratos, flashes de vida que o tempo decepou, restando somente essa lembrança em pastilhas. Há um que é clássico entre as imagens da antiga civilização romana: um casal, vestido à moda da época, olha serenamente para frente. A arte do mosaico atingira uma grande perfeição, a montagem é exata, ainda que distingamos sua face de puzzle, o conjunto é de grande beleza. O rosto do homem parece o de Belerofonte, meu assassino.

Um mosaico de mim não teria a uniformidade, a coesão do fogo. A chama é perfeita, indivisível e una, brilha por inteiro. Cada pastilha de cerâmica a me representar seria uma sucessão irregular de nadas, serpente, leão e bode. E a ferocidade. Anos depois, após uma outra surra, matei minha mãe. E meu pai. E minhas duas tias. E fugi.

Deus fez o mundo à sua imagem e semelhança, mas eu criei a deus como obra quase perfeita, não fosse sua ingratidão, ao me renegar, renegando o que lhe antecedia, e assim achar que a criação era somente obra sua. Dei-lhe toda liberdade, o fiz humano, porque sabia que sua humanidade era, para mim, uma obra impossível, eu, metade, digo, terço uma coisa, outro terço outra, uma trindade simbólica inacabada, leão, bode, serpente. Criei-lhe com todas as honras, com toda pompa e circunstância com que se molda uma grande obra, com a doçura de uma mãe que pare a um filho que será único. Na escuridão eu conversava entre mim, num pequeno quarto de coisas abandonadas; deus era só um projeto, até minha mãe abrir as cortinas e me chamar. Nunca fugi de casa e nunca matei ninguém, isso é conversa daqueles que me prenderam, porque sabiam de mim artífice de deus e temiam meu poder. Sim, temiam que eu me arrepende-se de minha obra e quisesse destruí-la; eles eram enviados de deus, eu descobri: ele não amadureceu, se esconde como qualquer filho que erra e teme aos pais. Eu o fiz perfeito, mas sua criação... é pior que o caos.

Era uma grande luz. Como Atenas, ele saiu de meu crânio, resplendente. Quantos anos levou minha gestação? Nove anos, nove longos anos, e seu primeiro ato, ao nascer, foi chamar-me de monstro e lançar-me a outro caos, em terríveis levas de encarnações sucessivas, em lugares distintos, tempos variados, cenários alternados, sem que eu pudesse ter ao menos uma identidade própria, sem que ao menos eu pudesse ter um rosto que se desenhasse ao longo dos anos, sem que eu pudesse ter símiles que ao longo da curva do tempo eu conhecesse. Crueldade do deus. Amarguei milhares de gerações; deus me tornou ressentido, ferido como a lua , às vezes faltando um pedaço, de milênio a milênio arquitetando o grande crime. Que amor moveu primeiro a minha mão ao criar algo tão forte? Não fui egoísta como ele, eu o criei além de mim e não a minha semelhança; porque me sabia fragmentado, temia ser também fragmentário, mas não, me mostrei capaz de criar uma unidade.

O que eu queria? Companhia? Eu queria transbordar.

Alguns dos meus olhos vêem cores de modo distinto, e outros percebem pouco a luz, de modo que não vi se estava só ou se haviam outros além de mim. Sonhava sonhos brancos, infindáveis e tristes, até que um dia sonhei com a mais linda criatura que eu podia desejar, e nessa mulher tudo parecia estar em potência. Foi desse sonho de desejo que engendrei a deus, numa lenta gestação. Ele não sabe, mas deve ser um sonho dela.

Quando disse que ia matar deus, minha mãe me chamou de blásfemo. Quando lhe contei da grande conspiração de deus para atrapalhar o sono das pessoas e assim impedi-las de descobrirem a verdade, que eu sou seu pai, ela me chamou de louco. Dias depois a conspiração seguiu adiante, e eles me prenderam aqui.

Já passei telegramas aos seres com cara de leão, aos com cara de bode e uma circular para todas as serpentes, para a hora da grande revolta. Não é possível que tudo permaneça como está. Será que ninguém vê o que acontece, só eu? Milênio após milênio na mais completa solidão. Será que vim parar no cosmos errado?

Descobri um ninho de cogumelos atômicos sob o leito de deus. Ele põe uma pomba sem sexo a chocá-los e me incomoda pensar que um dia possam explodir. Vi que o calor os trazia a tona e que seria só uma questão de segundos para que explodissem e comecei a gritar com pena da criação, xinguei deus com todos os nomes, com todas as obscenidades inventadas durante mil gerações, obscenidades pagãs e cristãs (aliás, toda obscenidade é cristã), palavrões em latim vulgar e em visigótico, e em qualquer língua escrita em cirílico. Vieram alguns soldados de deus e me prenderam numa camisa de força; mas minha força era tamanha, tanto que foram precisos vários para conseguirem me segurar, e se naquele instante Belerofonte tivesse aparecido, não haveria Pégasus que o salvasse: saía fogo de minha face de bode, meus olhos de leão eram puro sal a queimar as feridas e tanto veneno havia que escorria de minha boca de cobra. Vi o medo nos olhos deles, ah, eu era tão forte quanto deus quando eu o queria, e eles não entendiam que eu só queria redimir a criação do erro por mim cometido ao criá-lo.

Os choques pareciam ampliar meus poderes, só a insulina me diminuiu o ânimo. Quando acordei, estava no velho quarto de paredes acolchoadas, tantas vezes visitado. Preso em uma camisa de força, eu dormia no chão; eles nunca entenderiam. Para quem suportara a solidão durante longas eternidades sem ter nada nem ninguém para dividir seu peso, ficar um, dois ou três meses naquele quarto não seria nada. Por entre as grades da janela penetrava a luz de poucas estrelas; talvez elas fossem capazes de velar pelo meu sono. O que seria do todo se eu não o salvasse? A que horas o deus ensandecido se cansaria do mundo e o destruiria? Poderia salvar a criação matando a deus?

Tudo eram enigmas. E eu precisava resolvê-los.

Quando ele chegou, fazia dois dias que eu estava na sala branca. Ele, que é chamado de o opositor. Shaitan. Satã. Tinha um aspecto fatigado de homem de negócios. Estava bem vestido. Terno de grife italiana, pasta de couro de porco. Sentou a um canto. Revirou alguns papeis como se procurasse alguma coisa. Veio me falar da solidão de deus, de como ele sofria por um mundo em cuja engrenagem ele não controlava mais. Dizia que era um grande equívoco imaginá-lo como inimigo de deus. Inimigo? Quem, senão ele, colaborava para que as pessoas, através do sofrimento, se aproximassem de deus? Quem, senão ele, acrescentava ao mundo a dureza necessária para que se temesse ao desconhecido, se reverenciasse a deus? Quem, senão ele, se sacrificava por esse deus solitário, vivendo nas difíceis regiões infernais para que a ordem do mundo fosse mantida? Senti em sua voz quase um tom de súplica incontida, para que lhe reconhecessem os serviços prestados. Uma súbita e passageira emoção de homem de negócios. Falou a que vinha. Pedia que eu deixasse deus em paz. Sabia que ele era meu filho, e em nome do sentimento paterno, pedia que eu tivesse compaixão com deus, pensasse em sua solidão, em seu desamparo.

- Por que você faz tudo isso? - Perguntei-lhe.

- Devo lhe confessar uma coisa, que nem ele sabe. Quando você o gerou, que ele saiu de sua luz, ele não saiu só.

- Como assim?

- Eu também nasci junto com ele. Mas vendo o ódio dele pela sua forma, e também o poder dele, e vendo a minha forma, com chifres e pés de bode, olhos de fogo (herdei tanto do sr...), resolvi me esconder. Escondi-me durante várias eternidades, e enquanto ele criava, eu dormia e sonhava. E em sonhos vi minha mãe, que nos engendrou pela vossa mente. Sei que um dia ela virá, e nos resgatará do grande equívoco dessa criação e da louca sede de poder dele. Mas por hora tenho que ajudá-lo.

Olhei em seus olhos: havia muito de sofrimento e verdade em tudo isso. Não esperava por esse final de novela mexicana, mas ali estava um filho que eu desconhecia, que amargara durante eternidades em sua peculiar solidão. Não podia abraçar-lhe porque a camisa de força não deixava; mas ele me entendeu. Pela intensidade do olhar. Guardou vários papéis na pasta e disse que tinha muito a resolver. Foi embora.

Desde então encontrei a paz. Os médicos reconheceram minha melhora e me tiraram do confinamento.

Deixei deus em paz. Não há muito que eu possa fazer. Às vezes recebo a visita do outro filho, sempre ocupado e apressado, e o forço a relaxar contando-lhe histórias antigas, bebendo um pouco de vinho italiano. Lembro-me e espero aquela grande mulher, a fonte de tudo.

E só me fica a pergunta: o que eu sou?

 
gledson_sousa@yahoo.com.br