GLEDSON SOUSA
A Dama de Espadas

Quando amanheceu, ela já ia longe. Seguira por uma estrada de terra, tateando mal o chão, quando o sol ainda saía devagar. Quase voava, apesar. Não era o que sempre falavam dela, que voava o vento, que cavalgava sem cavalo, pelo seu passo apressado, pelo seu jeito de quem sempre tinha alguma pressa ?

Saíra com a madrugada alta. Quando percebessem, ela já estaria longe, longe num lugar que nem ela sabia ainda. Para onde iria mesmo ? Tinha na memória algum anterior pouso de morada, um lugar que pudesse chamar de seu ? Tirou alguns espinhos e folhas secas que haviam grudado no vestido negro quando cortara caminho pelo mato há algumas horas. Tinha sede. Mas sabia esperar pela água, o importante era ir para longe, muito longe, algum lugar onde ela pudesse talvez nascer, pois gente sem memória de si e como se não existisse, e lembrar seria renascer.

Mas, quando saísse à tona essa outra memória, o que ela faria com as recordações, as lembranças do que fizera ali ?Em que ordem do tempo colocaria o que fizera ? O sol agora se erguia como senhor de mil armas, a tudo iluminando. Decerto, ela teria feito a vontade do sol.

Muitos pássaros se erguiam com o amanhecer, festivos, cheios de alegria inesperada, que até ela ficou alegre. Tinha sede. Mas estava alegre. As pessoas daquela cidade não eram alegres. Quando sorriam, traíam no olhar suas verdadeiras intenções, seu desprezo pelos outros, pelos de fora. Nas festas, quando os homens chamavam as mulheres para a dança, sempre as intimidavam, sempre juntavam à força os corpos, numa intenção clara, que as mulheres aceitavam caladas. Todos calavam, os homens da igreja, os homens da lei, os homens do dinheiro, mas agora ela tinha sede, e fome, e sorria como nunca mais o fizera, seu sorriso fazia coro com os pássaros diversos, com o vento, fazia coro mesmo com o canto dos grilos e dos bichos da noite, que não haviam feito nada contra ela quando ela atravessara, na alta madrugada, aqueles matos impenetráveis, antes de achar aquela estrada de terra.

Tinha nome ? Não recordava de nome, nem de pais ou cidade natal; só lembrava que um dia conseguira carona com um circo e o palhaço a chamara de dama de espadas, porque na mochila dela - verde, de lona-, trazia muitas diversas facas e adagas, todas diferentes entre si no tamanho e na forma. Tinha até uma espada pequena, de gladiador. Todas muito amoladas. Fizera até algumas apresentações com o circo, jogando facas numa tábua de madeira onde o palhaço estava, e ele fazia xixi de brincadeira e orava para vários santos imagináveis - santa briguilinta das calças frouxas, santo antonio pequeninim, são tomás do fumo de corda...-, antes que ela começasse: aí alguém tocava o tarol, às vezes uma corneta, e ela desferia todas as facas sobre os espaços vazios ao redor do palhaço, sem que nenhuma chegasse a ferí-lo. Depois, vinham os aplausos; ela olhava para a platéia e sorria; o mestre de cerimônia, dono do circo, continuava, e agora, respeitável público...

Sorria agora ao lembrar. Fizera sucesso no circo. Mas não ganhara dinheiro, todos eram muito pobres. Mas ganhara alimentos, abrigo, agasalhos. Tivera alguns amantes. Às vezes passava noites e noites a servir os vários homens, um de cada vez, quantas vezes esse agüentasse, porque amava a todos, e todos a respeitavam, a amavam, a cobriam de carinhos. Às vezes nem dormia. deixava seus amantes deitados e ia treinar, muitas vezes totalmente nua, com o nascer o sol. O sol dourava aos poucos seu corpo antes branco. Era muito branco. Mas de um branco suave, a pele firme, sem transições, um branco uniforme; seus seios pareciam ter leite, mas os mamilos eram rosados, como pele de bebê. Sua púbis negra e abundante contrastava com aquela pele clara, como se fosse um ponto por onde as coisas pudessem surgir, pois era como se o branco fosse um nada antes de tudo, e o negro fosse um ponto de início. seu corpo dourava. De início, o branco ficava rosado, o sangue afluindo para as maçãs do rosto, intumescendo os mamilos, dourando as nádegas. Ninguém a incomodava, até porque todos estariam dormindo, e também ninguém a incomodava quando ela estava com suas armas.

E eram tantas. Havia adagas iemenitas, facões, peixeiras, punhais nordestinos, pacas paulistas, canivetes suíços, uma espada de gladiador e uma faca primitiva, de pedra, que ela guardava como uma relíquia, que de fato era. Os cabos eram variados, de osso, de madeira de lei - cedro, sândalo, jequitibá -, incrustados de pedras ágatas, ametistas, ou de buzios pequenos, desses que dão na praia. Talvez ela pudesse, pela forma das armas, desvendar seu passado, reconstituir um itinerário possível que a levasse até a origem, o ponto de partida. Mas se cada arma diferente poderia indicar um lugar por onde ela teria passado, ela já teria viajado tanto assim ? Mas como ela ordenaria as armas para criar uma sucessão do tempo? Quem viria primeiro, os punhais nordestinos ou as adagas ? A faca de pedra ou a espada de gladiador ?Às vezes, quando não queria os homens do circo, ficava quieta num canto, as armas espalhadas na sua frente, a mente procurando fios que a tirassem do labirinto sem nome e sem passado. Às vezes sentia só o futuro.

Talvez por isso usasse negro, era um começo, um início. Ouviu o vôo de muitas andorinhas que chegavam, numa alegria incontida, como se carregassem o mundo nas asas. Ela era andorinha também, voara para muitos lugares com o povo do circo, até chegar naquela cidade e saber que era ali que tinha de ficar. Por um tempo.

Sentia sede. Tinha pouca água no cantil, mas ouvia de longe o barulho de outras águas. Um rio deveria estar perto. Apressou ainda mais o passo, e o som das águas crescia, tranqüilo, pacífico. Chegou à beira do rio e sem querer espantou um veado que ali bebia. Tirou a roupa e entrou na água. Lavou o rosto, lavou os longos cabelos. A água enregelava a pele, intumescia os mamilos, mas também matava a sede. encheu o cantil. Ajoelhou-se na beira do rio e com cuidado foi tirando as armas da mochila. Tirou a tampa do cantil e com cuidado começou a lavar uma por uma. A terra ao redor ficou vermelha, de um vermelho dissolvido pela água, ela cuidando que o sangue das armas não sujasse o rio, seria profanação. A espada de gladiador era a que mais tinha manchas de sangue ressecado. A menos suja era a faca de pedra.

Estava longe, não a alcançariam mais. Aqueles homens, eles odiavam a mulher. Os maridos torturavam as esposas, os filhos, de pequenos, já sabiam xingar as mães, bater-lhe nos rostos. Muitas mulheres não chegavam até os 40 anos, eram assassinadas, espancadas até a morte.

E ela, que idade teria? Os do circo diziam que ela teria uns 30 anos. Ela achava que teria muito mais: não que de si ela tivesse lembranças guardadas que dissessem onde um antes e depois no tempo; mas ela sentia - e do sentimento ela tinha certeza-, que não havia novidade no mundo, ainda que, mesmo assim, do mundo ela não se cansasse.

Mergulhou no rio novamente, na mão direita segurava uma adaga, única arma que estava limpa. Imóvel por alguns instantes, num golpe rápido ela acertou um peixe, e logo mais dois. Tinha fome. Pensou em fazer uma fogueira ali, na beira do rio, mas isso talvez irritasse o deus do rio. Se afastou.

O peixe assado talvez atraísse os animais predadores da floresta, mas deles ela não tinha medo. Talvez também fosse meio onça, rompendo, matando, estraçalhando, mas não para comer, mas não por prazer, mas por uma necessidade, como se cumprisse uma sina, precisasse fazer o necessário, aquilo que ninguém queria fazer. O peixe tinha gosto bom. Não era dos que ficavam revirando pedras no fundo do rio e que a carne sabia a barro. A carne era leve, como se não existisse. Mas as guelras, quando ela estava tratando o peixe, o sangue que escorria lembrava o sangue do prefeito. Ele fora o mais difícil de morrer. Primeiro, porque todos os seus capangas haviam lhe cercado, para protegerem-no, e ela tivera de matar um por um para poder chegar até ele. Depois, acertara com a faca de pedra na altura do coração, mas não o atingira em cheio. Ele ficou ali morre não morre, até ela pegar a espada de gladiador e com toda força cortar-lhe a cabeça: o sangue espirrara muito e sujara-lhe o vestido negro, os cabelos.

O circo nem se apresentou naquela cidade. Seu Candeias, o dono do circo, dizia que aquele povo era arrogante e que gente arrogante não era capaz de sentir alegria, nem de sorrir. O circo só passara, mas ela ficara, sem saber ao certo o porque. Se hospedara num pequeno hotel; disse que vinha atrás de emprego, mas não disse o que fazia. Os homens da cidade a devoravam com os olhos, cada vez que ela andava pelas ruas, logo iam querer seu corpo. Mas eles não eram capazes de amar, ela via isso nos olhos tristes das mulheres da cidade, nos rostos manchados de roxo, no andar cheio de mancos. Não eram como os homens do circo, cobrindo-a de flores, dizendo-lhe palavras de carinho; quando souberam que ela ia ficar na cidade, antes de partirem colocaram-lhe uma coroa de flores e beijaram-lhe os pés e todos choravam. Ela sorria. De alegria.

Aqueles outros eram impotentes, isso sim. O coração deles era uma pedra, granito de má qualidade. Não dera seus favores para ninguém. Eles chegavam com seus sorrisos cínicos, fingiam uma gentileza que não lhes era natural, a convidavam

em particular ou lhe chamavam para as orgias mais terríveis. Ela recusava como se não soubesse que aceitar seria sua morte, se ela não fosse quem fosse.

Ela era linda. Agora, tinha a cor de um bronze leve, o vestido negro acentuando-lhe a curva da cintura, o desenho dos seios, a marca do mamilo; seu sorriso era gentil, poderia amanhecer o mundo, mas eles não sabiam de sorrisos, viam seu corpo como um pedaço de carne ensangüentada.

Vez em quando, uma ou outra mulher aparecia morta, o corpo abandonado pelos ermos, violentado, sujo. Ninguém fazia nada, todos estavam irmanados pelo silêncio -a polícia, a justiça, os padres, os ricos, os pobres. Os padres violentavam pequenas meninas, que eles repassavam para outros; policiais ficavam com filhas de famílias honradas, com o consentimento dos pais, e elas eram espancadas e obrigadas a servirem aos oficiais noites e noites seguidas. Os ricos promoviam orgias mortais. Os pobres humilhavam as prostitutas, que ficavam na rodoviária. As mulheres eram um grande não, um grande silêncio.

Não fora difícil. Aceitara o convite- como quem não quer nada, como quem não sabe de nada- para uma orgia. Vestira um vestido negro, mas de um tecido fino, quase transparente; mas exigira a presença de todos os importantes, iria satisfazê-los de uma maneira especial. Chegara sorrindo ao lugar combinado, todos lhe esperavam, com olhares embrutecidos e mãos cobiçosas. Disseram-lhe que bebesse, ela recusou. Disseram-lhe que iam colocar-lhe algemas, ela disse que tinha seu próprio par de algemas, como se fosse uma profissional; eles sorriram satisfeitos entre si, como velhos abutres. Ela tirou a mochila das costas, como se fosse pegar as algemas. Pôs a mochila sobre uma mesa de canto, quase todos já estavam nus, com olhares e corpos grotescos. Ela tirou a adaga iemenita e a espada de gladiador e começou a dançar: eles sorriam, nem nada entenderem, passavam as mãos em seu corpo macio quando ela se aproximava; ela dançava, dançava como se pisasse em nuvens, e num átimo, ela atingiu dois ou três com estocadas vigorosas no pulmão, sem que eles tivessem chance de pelos menos dizerem amém, e os outros se assustaram, alguns tentaram fugir, outros lhe atacar, mas ela era uma felina de garras afiadas, e sua adaga iemenita fazia estragos; os corpos se acumulavam no chão, eles não entendiam que uma mulher pudesse fazer aquilo, e ela dançava a morte em todas as direções, talvez pudesse até destruir o mundo dançando. Dois ou três policiais correram para pegar seus revólveres em coldres sobre uma cadeira, mas ela os atingiu no pescoço com a espada. Ainda pegou a faca de pedra e com ela atingiu o coração dos dois padres que estavam ali, fazendo um furo por onde o sangue jorrava. Depois, alguns homens cercaram o prefeito, mas ela os matara um por um, até decapitar o prefeito. Ainda matou os vigilantes do motel, cúmplices de tudo. Quando terminou estava cansada. O cabelo e o vestido, sujos de sangue. Pegou a mochila, passou no hotel, onde ainda matou o recepcionista e o porteiro, que queriam telefonar para a polícia, pegou o resto de suas coisas e foi embora. A lua nova escurecia a noite.

O peixe tinha gosto bom, sim. O sol a aquecia, dourava-lhe o corpo nu. Sorria ao lembrar do azedo das pitangas, que sempre a fazia rir quando as chupava. Libélulas passavam céleres, cheias de compromissos matrimoniais, pois era primavera. Lavara o vestido negro, tirando todo o sangue. Achara algumas flores no caminho e pusera no cabelo, mas não podia ficar andando nua por aí. Abriu uma outra bolsa que trazia na mão: nela havia um vestido branco. Vestiu.

Que idade teria? Teria família? Teria nome? O rio corria sem pressa, com sua canção d'água. Muitos passarinhos cantavam porque o dia andava alto. Apagou o fogo. O peixe dera sede. Bebeu água. O que fazia ou fizera com aquelas armas ? Olhou-se nas águas do rio, seu cabelo parecia mais claro, parecia ter tomado o sol para si. Lembrou-se de um palhaço. Qual era seu próprio nome? De onde viera?

Ela era bela e o dia estava claro, feliz. Lembrou-se da voz do palhaço, tão séria. O que ela fazia ali perto daquele rio? Lembrou-se da voz do palhaço, do som de cornetas, do tarol...'respeitável público...' Sim, ela tinha nome. Olhou o sol. Talvez ela só seguisse o sol. Pisou outra vez a estrada de terra, ia em direção ao nascente. Ela tinha nome. Logo depois cairia uma chuva leve, a lhe molhar o corpo, refrescar os sentidos. Ela tinha nome,

Ela era a Dama de Espadas.

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