“E
quem vem de outro sonho feliz de cidade/Aprende depressa a chamar-te de
realidade” (Sampa – Caetano Veloso)
Uma cidade, vista do vigésimo quarto andar do hotel, é apenas uma
maquete animada por mãos infantis ou insanas. Paisagem cinza de prédios
e casas que coabitam o mesmo espaço de silêncio e solidão. Seres
minúsculos que se movem em todas as direções, ágeis, quase uma mancha
colorida que desliza no asfalto ou na calçada sob a ação de um joystick.
É só isso e nada mais. Mas tudo muda de tamanho, alma e ritmo quando
você desce para a rua e, partindo do cruzamento da Mário Prates com a
Martins Fontes, passa em frente à Biblioteca Mário de Andrade, na Rua da
Consolação, segue a orientação de um dos guardas que vigia o ir e vir
dos transeuntes – Segue o fluxo, diz ele – que descem para a Estação
Anhangabaú ou seguem no rumo da Praça Ramos de Azevedo, uma enchente de
pessoas inundando as calçadas, e, depois de se extasiar com a
arquitetura de estilo eclético do Teatro Municipal e quase vislumbrar
ali a sombra dos participantes da Semana de Arte Moderna de 22 por entre
os mendigos que transformam as escadarias do Teatro em cama ou banco,
você se embrenha no universo amplo e barulhento do Viaduto do Chá,
desviando-se de ciganas que caçam crédulos desesperados em pleno
passeio, cartomantes e mães de santo à espera de clientes junto à mureta
de proteção, de costas para a 9 de Julho, surdas aos ecos da Revolução
Constitucionalista de 1932, entregadores de panfletos de propaganda,
vendedores de chips da TIM, da Claro e da VIVO aos berros, e ao sair do
outro lado, ileso, em frente ao cruzamento do Viaduto do Chá com a Rua
Líbero Badaró, adentra sem cerimônia alguma a Praça do Patriarca, aqui
ainda não há a concentração maciça de gente que você verá logo em
seguida, em ruas de calçamento sem meio-fio, um pouco mais abaixo da
Praça da Sé, onde você se encontra, neste momento, tentando entender a
beleza da arquitetura externa da Catedral da Sé (logo, logo você ficará
sabendo através do Google que se trata de um estilo eclético, mas
predominando o neogótico, “inspirado nas grandes catedrais medievais
europeias”, e que antes dela, da magnífica catedral que a lente da sua
câmera digital enquadra tentando abarcar o todo, houve ali, naquele
espaço, mais duas igrejas, sendo uma delas em estilo barroco), sim,
tentando entender essa beleza arquitetônica em meio à pregação alucinada
de evangélicos que tentam converter mendigos, drogados, passantes,
malandros, trabalhadores, turistas... bem ali, em frente ao monumento
católico, e depois de visitar o interior da Catedral, de se encantar
com a grandiosidade das colunas góticas, feixes de colunas que se alçam
até a abóbada de ogivas!, a pompa do altar-mor em mármore carrara, com o
colorido dos vitrais, os nichos abrigando santos de toda ordem, a
cúpula renascentista e o órgão de tubos ( o maior órgão de tubos do
Brasil!), você descamba para os lados do Pateo do Collegio, onde tudo
começou, onde os jesuítas, mais precisamente o Pe. Manuel da Nóbrega e o
noviço José de Anchieta, começaram a catequização dos indígenas por
estas bandas, enfiando-lhes na mente primitiva o latim clássico, o In
nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti, Amen, e para provar o que
se diz tem logo ali uma estátua de José de Anchieta convertendo a filha
do cacique Tibiriçá e, no interior da Igreja José de Anchieta, duas
relíquias: um manto e um fêmur do jesuíta, mandados para Portugal por
ordem do Marquês de Pombal e depois devolvidos ao Brasil, mas então você
já não está mais aí, almoçou e tomou um cappuccino no Café do Pateo e,
quase por descuido, caiu na Rua Barão de Paranapiacaba, mais conhecida
como Rua do Ouro, em meio à sanha dos vendedores de joias, – Aliança de
ouro mais barata é aqui!, é o que você ouve enquanto tenta avançar em
meio ao emaranhado de mãos que lhe estendem cartões de joalherias, ah,
que sorte, você exclamará daqui a pouquinho ao se deparar com um sebo de
livros, CD’s e DVD’s na Rua Benjamim Constant (e pensar que você tomou
essa rua só para escapar da lábia dos vendedores da Rua do Ouro),
satisfação plena e três exemplares raros de livros é o que você carrega
ao pegar a Rua 15 de Novembro bem na hora do almoço, agora o fluxo de
pedestres é mais intenso, quase asfixiante, mas você se desvia por entre
homens de terno que vêm da Bovespa ou da BM&F ou seguem para o Banco do
Estado ou saíram do Palácio da Justiça ou do Primeiro Tribunal de Alçada
Civil (você já fotografou todos eles, atraído pela sua arquitetura
clássica, solene, eh, você talvez não saiba, mas num desses prédios aí,
mais provável que seja no Fórum, trabalha um escritor que, nas horas
vagas, escreve contos fantásticos) para almoçar nos restaurantes da
redondeza, como este, no Largo do Café, perto duma engraxataria que
parece não pertencer a este século, e você avançou até aqui deixando
para trás mulheres que desfilam de botas logradouro acima/logradouro
abaixo (percebeu como as mulheres desta cidade gostam de usar botas,
hein?), artistas de rua que “se viram nos 30” tocando violino, fazendo
mágica, cantando repente, fumantes que se exilam em recantos de paredes
para satisfazer o vício (como fumam nesta metrópole! Parece que a
campanha do Dráuzio Varella contra o tabagismo não sortiu nenhum efeito
por aqui), tipos de feições variadas, o oriental, o negro, o branco
caucasiano, o mestiço, – como você que tudo absorve numa fome de coisas
antigas (uma fome tão mais incisiva que esta que move as pessoas rumo
aos restaurantes e às lanchonetes), formas arquitetônicas que emergem
por entre construções modernas, prédios de fachada espelhada, criando um
contraste inusitado, quase uma heresia urbana, um choque estético que o
arrebata, imagens de séculos tão díspares colidindo ali, diante dos seus
olhos de flâneur (um quase João do Rio), como esta edificação secular,
no Largo de São Bento, onde a elite educa seus filhos para manter o
Poder (essa é a regra do jogo, você já se esqueceu? Aqui era onde ficava
a aldeia do cacique Tibiriçá!), esta quase o faz perder o rumo tal a
majestade do seu interior, o tom escuro dos seus móveis, a pintura
impressionante que lhe cobre o teto, as imagens sacras que se postam
logo acima da cabeça dos fiéis (para você basta a fruição estética?), e
os que aqui estão orando, pedindo alguma graça, ou tirando um cochilo
(aproveitam-se os bancos das igrejas também para a sesta ou para aliviar
o cansaço das pernas) também o impressionam, e foi então que você se
desviou de todo esse cenário de elegância clássica e harmonia espiritual
para se misturar ao desconexo, ao frenesi, ao caminhar torto, truncado,
entre esbarrões e gritaria de pregões na 25 de Março – Camisetas de
marca por dez reais! –, mas você se livra desse fuzuê, desse ambiente
asfixiante, passa batido pelas lojas de bijuterias e bugigangas made in
China e chega, como por milagre, ao Mercado Municipal, de onde você não
sairá sem comer um pastel e sem experimentar pelo menos uma das frutas
exóticas que se oferecem irresistíveis nas bancas, e por sorte, de onde
está sentado, pode ver o boneco de Adoniran Barbosa quieto à mesa,
eternamente quieto, enquanto uma das músicas do compositor do Bexiga o
faz se mexer na cadeira, ah, depois de tudo isso, desse perambular em
êxtase, e depois de retomar o fluxo (ou contrafluxo) da 25 de Março, de
fotografar a estátua viva de um Carlitos e a de um Surfista Prateado
(eh, custa deixar umas moedas pros caras, meu?), de subir a Ladeira
Porto Geral quase pedindo para ser rebocado, e chegar enfim à Rua São
Bento, você já pode dizer que sentiu de fato o pulso, a pulsação, os
batimentos cardíacos, a respiração arfante e às vezes ritmada, os odores
e as vozes da cidade. Agora sim, parte da alma dela está gravada em sua
memória. E seus logradouros e seus habitantes e seus monumentos e suas
casas e seus apartamentos e seus arranha-céus e seus automóveis e seus
ônibus elétricos e seu metrô... passam a fazer parte da geografia mais
sensível que se desenhou no mais fundo do seu ser.
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