O que se pode esperar de uma obra literária é que ela provoque, no
mínimo, o estranhamento no leitor, arrancando-o do automatismo da vida
ordinária. O leitor que se aventurar na leitura de ‘Notas de Pensamentos
Incomuns’, de Anderson Fonseca (Editora Multifoco, 2011), será, com
certeza, tocado por esse estranhamento. O livro é composto de minicontos,
sem título, e quase sempre narrados em primeira pessoa, ou fragmentos
que se articulam como se fizessem parte de uma única história, mas que,
ao mesmo tempo, mantêm uma independência em relação ao todo. E esse já é
um dado do estranhamento que o livro provoca, pois, ao final, sabemos
tratar-se de uma obra cuja tessitura só se completa com a junção de
todos esses fragmentos aparentemente autônomos.
E o estranhamento se aprofunda com a presença dos seres minúsculos,
bizarros, fantásticos, que povoam o universo ficcional criado por
Anderson Fonseca. Tamagotchi, Delírios, Gloeb, Jhungols, Flopers,
Dabie-Dabie e Móbile são alguns dos estranhos personagens com os quais o
leitor irá se deparar durante a leitura de ‘Notas de pensamentos
incomuns’.
Alguns desses seres minúsculos habitam a cabeça (e às vezes dela
brotam) ou outras partes do corpo de um quase sempre atormentado
narrador-personagem. É o caso de Apple, um “bichano muito interessante,
redondo, peludo, amarelo e saboroso” que um dia escapa da cabeça do
narrador-personagem: “E para que eu não me esqueça do propósito
inevitável da vida, evoluir, Apple agarra-se a certas partes do meu
corpo iconoclastas da evolução humana: uma hora está numa das pernas,
outra na nuca para que me lembre da coluna vertebral, e noutra sobre a
cabeça” (pág. 51). Às vezes esse processo de coabitação é mais radical,
e o ser intruso penetra o corpo do narrador-personagem ou interfere na
sua capacidade de articular o pensamento. Imagine uma mosca que pousa
certo dia na mão do sujeito e, depois de algum tempo, já se encontra
morando embaixo da sua pele. Ou seja, ele se torna o seu hospedeiro.
Noutro miniconto, uma bactéria começa a interferir nos pensamentos do
narrador-personagem. Diz ele: “Faz um tempo que meus pensamentos estão
sob a regência de uma bactéria” (pág.85). E para que o leitor não ache
que isso seja inverossímil, improvável, o narrador-personagem cita como
argumento de apoio a matéria publicada na Scientific American
confirmando a existência de uma bactéria capaz de “alterar o estado
cognitivo do ser humano”. Mas nem precisava usar esse argumento, pois,
desde o início, o leitor terá notado que a narrativa de Anderson
Fonseca, nesse ‘Notas de pensamentos incomuns’, dá-se fora dos limites
do realismo. O que se vê aí é a mais viva manifestação do fantástico e
do absurdo.
E é nesse sentido, dessa forte presença do fantástico e do absurdo, que
podemos falar das influências que permeiam essa obra de Anderson
Fonseca. É visível o diálogo dessas suas narrativas curtas com a obra de
Jorge Luís Borges (estão lá os espelhos que simulam outras realidades ou
imagens, os corredores formando labirintos, o espírito de fábula), a de
Julio Cortázar (o seres minúsculos e fabulosos lembrando cronópios,
famas e esperanças), a de Kafka (a metamorfose, a sujeição do personagem
a uma realidade que escapa à sua vontade) e, também, o universo mágico
da obra de Escher. Esse, aliás, é citado literalmente numa das
narrativas: “É embaraçoso viver numa casa desenhada por Escher, e muito
mais embaraçoso saber que ela existe numa folha de papel...” (pág. 73).
De tudo isso surge um texto de feições próprias, mas que mantém suas
raízes fincadas na tradição que subverte o real.
Mais que qualquer outro mecanismo de forjar realidades, é a imaginação
que prevalece nesses textos ficcionais de Anderson Fonseca. É da
imaginação do narrador-personagem, do seu pensamento incomum,
atormentado, que brotam todas essas notas e todos esses seres e
universos perturbadores. E, aqui, o leitor irá se deparar com outro
elemento que destoa do normal: o narrador-personagem e o autor
fundem-se, aparentemente, numa só pessoa. O autor Anderson Fonseca, à
maneira de Borges, se coloca na narrativa. (E os limites entre realidade
e fantasia quase que se dissolvem.) Todo esse universo de perturbações e
estranhamentos situa-se na sua mente. E diante da sugestão do médico
para extirpá-lo (a cura mataria a capacidade criativa do autor), ele
escolhe permanecer coabitando com os seres que, muitas das vezes, sugam
a sua energia e a sua paz de espírito: “Vendo hoje o meu estado, tenho
vontade de esmurrá-lo, lançá-lo para longe dos meus olhos; (...) me
apeguei de tal modo a essa pequena criatura inocente, que sacrificá-la
seria o mesmo que me destruir”, diz ele sobre Gloeb (pág. 18). Criador
e criatura estão, nesse caso, unidos de maneira indissociável. Criar é,
de certa maneira, deixar-se habitar pela existência do ser criado. E o
leitor que se aventurou por esses estranhos mundos criados por Anderson
Fonseca não escapará ileso: os minúsculos seres que pululam na mente do
autor, ou do narrador-personagem, passam a habitar também agora a sua
imaginação. |