A literatura, quanto mais faca de gume afiado, mais
penetra fundo os desvãos da mente. Nesse caso, nos desloca, nos tira do
eixo de comodismo, de alienação, de satisfação garantida, e nos obriga a
reorientar nossos sentidos. Essa é a literatura que faz com que o ser
ultrapasse os limites impostos pelas convenções sociais e desfralde a
bandeira da liberdade. É ela que expõe tanto as gangrenas da alma quanto
as mazelas sociais. É movimento de dentro pra fora, e vice-versa. É
choque. É desconforto. É clarão que ilumina e cega ao mesmo tempo.
É nesse patamar de potencialidade literária que se
situa a narrativa de Mariel Reis. Refiro-me ao seu Vida cachorra, livro
de contos publicado pela Usina das Letras, em 2010. O volume é composto
de 12 contos relativamente curtos, alguns, inclusive, podem ser
classificados como minicontos. Cito, como exemplo, Ao modo de Dalton
Trevisan, uma verdadeira cápsula de erotismo e agilidade narrativa. São
histórias pontuadas pela violência, pelo sexo explícito, pelo grotesco e
pela miséria. São petardos narrativos que nos atingem em cheio e nos
deixam incomodados. A recepção do leitor nunca será, com certeza,
tranquila, neutra, pois, no universo em que transitam os personagens de
Mariel Reis, a vida já tocou o seu limite.
Há uma variedade de temas em Vida cachorra, mas, em
quase todas as histórias, a violência está presente. Podemos encontrá-la
nas suas mais variadas formas: a violência doméstica, a violência
urbana, a violência do fetiche sexual, a violência do Estado contra os
menos favorecidos, a violência que emerge com a vingança. Desses
ingredientes, a combinação mais explosiva no livro de Mariel Reis se dá
entre violência e sexo. No conto Absolvição, por exemplo, o fato de o
protagonista ter transado com a enteada menor de idade provoca a ira e a
vingança da esposa. Esta, numa explosão de fúria, esfaqueia o marido e a
filha, para ser, em seguida, espancada por ele. É de dentro da prisão
que o protagonista conta a sua história ou a sua tragédia familiar. E é
aqui que entra a verve irônica e corrosiva de Mariel. Para espanto do
leitor, depois de toda a tragédia, de todo o “barraco”, tudo se resolve
num ajuste que foge aos padrões de composição familiar da nossa
hipócrita sociedade: a bigamia.
Falando assim, posso dar a entender que os
personagens de Mariel Reis, em Vida cachorra, são, por natureza,
violentos. Que eles, por uma propensão natural, buscam a prática da
violência. Na verdade, eles são levados a praticar a violência. É o que
acontece, por exemplo, com o protagonista do conto Amor filial: ele está
em busca da regeneração, da ressocialização, de desfazer os erros
cometidos, mas, ao se ver prejudicado pelos desatinos do irmão com
problemas mentais, é levado a agir com extrema violência. “era meu
irmão. eu não queria matá-lo. não foi minha culpa. minha mãe é doente da
cabeça como o doutor pode ver, não bate bem”, ele confessa ao delegado.
Há ainda aqueles que aceitam a violência como parte da sua rotina, como
é o caso de Sueli, protagonista do conto homônimo. Ela apanha do gigolô
e aceita isso com naturalidade, sem esboçar nenhuma reação. “às vezes
ele me bate. não é toda noite, não. só quando não trago dinheiro”, conta
ela resignada.
Em alguns contos, há um interlocutor a quem o
personagem narra sua trágica história. Não ouvimos a voz desse
interlocutor. Lembra-nos, de certo modo, Riobaldo narrando sua vida
aventurosa e repleta de violência a um interlocutor que apenas o escuta.
Um senhor da cidade. Aqui o protagonista, em busca de justificativa e
explicação para o seu ato violento, dirige-se a um doutor. Esse doutor
ora é o delegado, significando o aprisionamento do personagem, ora é o
advogado, de quem o preso espera uma resposta positiva à sua ânsia de
liberdade. É através desse monólogo que adentramos a vida do
protagonista. É a partir dessa narração desesperada que podemos formar
um juízo de valor a respeito do ato praticado por ele e aderir ou não à
sua causa.
A opção de Mariel por uma narrativa despida de
adornos estilísticos, sem floreios verbais, acentua ainda mais o caráter
brutal da existência dos seus personagens. Assim como o universo que ele
se propõe retratar, a sua narrativa é dura, seca, cortante. É uma
narrativa feita a estocadas. Para isso, o autor faz uso de frases
curtas, dispensando o emprego da maiúscula e, na maioria das vezes, de
travessão na transcrição da fala dos personagens. Esses recursos tornam
a narrativa mais fluente e direta. Nota-se, claramente, a intenção do
autor de expor o assunto sem maquiagem. Para um leitor desavisado ou
acostumado com narrativas leves, quase sempre na superfície da vida,
esse estilo direto, sem meias palavras, pode assustar ou não agradar.
Uma coisa, no entanto, esse leitor deve perceber: a consciência do autor
de Vida cachorra de que linguagem e realidade se fundem num todo
indissociável.
O fato é que não se sai ileso da leitura desse livro
de contos de Mariel Reis. Vida cachorra é um soco direto na consciência
do leitor. Caso o leitor tenha nervos para avançar na leitura dos
contos, coragem suficiente para mergulhar nesse mundo de vidas
fragmentadas e experimentar a pulsação da vida nos seus extremos,
chegará, sem dúvida, à seguinte conclusão: queiramos ou não, a
existência desses personagens que tocam o mais baixo degrau da vida, que
experimentam as agruras e os desatinos da vida em sociedade ou em
família, passa a povoar a nossa mente. Sairemos à rua, a partir de
então, com o olhar mais aguçado para captar a estranha pulsação que
permeia a tênue tranquilidade que nos cerca. E, não sem assombro,
constatamos, a partir de agora, que a fronteira entre céu e inferno
praticamente não existe.
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