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Francisco José Craveiro de
Carvalho |
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Poemas de Rafael Courtoisie
Traduções de Francisco José Craveiro de Carvalho |
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Estes poemas foram extraídos do livro
Parranda de Rafael Courtoisie. A este livro foi atribuídi o
XIV Premio Casa de América de Poesía
Americana.
Rafael Courtoisie, Montevideo, 1958, é autor de uma vasta obra, não
apenas poética.
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O velho sábio
Sou o pai do filho pródigo.
Avistei-o ao longe:
Era ele.
Voltava.
A cabeça um pouco
inclinada. Um tanto
curvado.
Mais anos, mais rugas
em cima.
- É ele – gritou a mãe.
Detive-a.
- É o meu irmão – gritou o Pedro, o mais velho.
- Está igual, um pouco mais fraco
talvez – lamentou a avó.
Esperei que atravessasse
a cerca.
Inclinou-se um pouco mais
para cumprimentar.
O sol forte
lá no alto.
- O deserto é todo teu – disse-lhe
e expulsei-o da quinta
a pontapé.
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Orgulho
Essa esfera imensa invisível
em ferro que carregamos
ao mergulharmos e nadar
sobre as costas do dia.
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Dicionário
Cemitério de vozes, lixeira
de todas as palavras
onde cada novo
vocábulo se inclui:
sepulta-se.
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Magarefe
A mulher da minha voz vive na sombra.
Parte a voar
sobre o silêncio onde crescem
pasto azul e árvores de pedra
pormenores agudos, tons cinzentos
da matéria viva dos factos.
A mulher da minha voz é o reflexo
da lua estrangulada num poço.
Não diz o que sabe
nem sabe o que diz
cala e consente, procura entre as aves uma
de que não sabe o nome: degola-a.
E depena-a.
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Blues antropófago
A maçã está viva.
A faca desnuda-a.
Sob a pele outra
maçã em breve surge
luminosa, uma palavra
de carne branca principia
a desfazer-se na boca.
A faca morta
não sabe o que faz.
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Medellín
Negar uma uva é
negar o vinho
o tonel, a garrafa, o copo
a língua, o tubo
digestivo, as danças
da alegria, a beira
da festa, as bodas
de Caná, o pranto
da recordação, o esquecimento.
Em cada uva nasce a noite outra vez
e dentro da noite chora
o vinho e canta
como Gardel no avião
em chamas.
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Bem-aventuranças
Felizes os invertebrados
que se dobram sem quebrar
rastejam por galerias estreitas
e por curvas, ultrapassam os caminhos
tortuosos de Deus, abraçam o silêncio
desdentado. Bem-aventuradas
as medusas, namoradas ágeis
viúvas da água
o orangotango
pouco sensível
e ainda o homo
sapiens
porque esse já não sente.
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Mau refúgio
A roupa despe o corpo
da sua vergonha
Rouba firmeza
aos membros
esconde o sexo.
A humidade
já não brilha, amanhecer
era a sua razão
e sob o mar de tela
encobre a vida
o sol da tristeza.
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São João em Patmos*
A palavra “catástrofe” é em si mesma uma catástrofe
uma hecatombe, uma tragédia, um
tsunami, uma onda de merda
tão grande como a sombra do poder.
Na palavra “catástrofe” sobrevivem
pequenas alegrias, os pés minúsculos
daqueles de que a esperança se serve
para fugir do granizo de escuridão
que não pára de cair sobre a Terra.
Na palavra “catástrofe” esconde-se
um medo e no centro
desse globo de medo
uma criança
efémera leva uma bola
na mão
esquerda.
A bola não pensa
está perfurada.
Trespassa-a um cravo, uma coroa
de espinhos como a cabeça
de Cristo, sem olhos
nem boca.
*Título de uma
pintura de Velásquez, entre outras sobre o mesmo tema.
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Necrológio para uma
estrela de Rock
A palavra “féretro” transporta
a maldição das esdrúxulas
para além de mostrar pura, sem estrias
nua a sua madeira
pelo lado de dentro
polida à
lambidela
por um tigre invisível.
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Hamelin
Sou um bairro
povoado por seres atarefados
mulheres que vão e vêm
carregando pães grandes, alfaces
nacos de carne morta
em sacos de plástico brancos.
Crianças carnívoras
homens que ao menor
sinal de dúvida
matariam a mãe
que os pariu
e lançariam
os ossos
num poço, numa
sarjeta sem lembrança
num esgoto onde
as ratazanas compõem e assobiam
esta canção.
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Crianças
A infância é uma merda autêntica
histórias em que alguém
nos fez acreditar.
Sofrimento.
Apenas
sofrimento.
Os dentes caem
um a um
e um rato sem escrúpulos
leva-os em troca de nada.
Vigariza-te, deixa que as tuas gengivas
nuas sangrem.
A espera enruga-se-te.
Alguém, fodido,
invisível
um carrasco abissal
estica os teus membros
puxa os teus ossos aguentando
com firmeza
até fazer-te crescer
dia após dia.
A cara enche-se-te
de uma lepra repelente, purulenta
a que os médicos chamam “ acne”.
Dás o primeiro beijo
e mordem-te os lábios.
A tua mamã
não se cansa
de sorrir.
Está sempre a sorrir
e tira fotografias
muitas fotografias
ao espanto.
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Tripas
A beleza é
feita de palavras
de tripas. Não há coração
que aguente. A emoção
não tem nada que ver.
A emoção
é branda, os grumos
de pão ázimo.
A emoção é
um beco
sem saída. Quatro
cães
ferozes abrem as goelas
babam-se, encharcam
a palavra “fé” com sangue.
A fé: as tripas
da beleza. Os cães
raivosos. O beco
sem saída leva
ao paraíso.
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Francisco José Craveiro de Carvalho (Portugal).
Licenciou-se em Matemática na Universidade de Coimbra. Doutorou-se, mais
tarde, com uma tese em Topologia e Geometria, sob a supervisão de Stewart Alexander Robertson, Southampton University, U. K.. Assume uma posição de alguma marginalidade em
relação à divulgação daquilo que escreve. Traduziu poemas de Carl
Sandburg, Jane Hirshfield, Jennifer Clement, Linda Pastan, Rita Dove...,
publicados em opúsculos discretos, que circularam entre os seus amigos. |
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