O assédio da loqüacidade dos mass media e da lógica instrumental das ciências matemáticas nos situa no processo de superação da utopia de uma cultura artística-literária por um projeto industrial de uma civilização tecnológica, a partir do qual, de acordo com Gianni Vattimo em La fine della modernità, o conceito hegeliano de morte da arte se revelou profético.
Como muitos outros conceitos hegelianos, também aquele da morte da arte se revelou profético no que se refere aos desenvolvimentos efetivamente verificados na sociedade industrial avançada, senão no sentido que tinha em Hegel, mas antes, como constantemente ensinou Adorno, num sentido estranhamente pervertido. Não é porventura verdadeiro que a universalização do domínio da informação pode ser interpretada como uma realização pervertida do triunfo do espírito absoluto? (VATTIMO, 1987 : 59).
Não se trata de considerar a esfera dos meios de comunicação de massa como o espírito absoluto hegeliano, “talvez seja uma caricatura”, mas de situar a morte da arte como um acontecimento que constitui a constelação histórico-ontológica em que nos movemos e, portanto, nos destina e faz questão. “Esta constelação é um entrelaçamento de acontecimentos histórico-culturais e de palavras que lhe pertencem, os descrevem e co-determinam” (VATTIMO, 1987 : 60). Neste sentido, Vattimo propõe três aspectos para a morte da arte.
Em primeiro lugar, a morte da arte “como profecia-utopia de uma sociedade em que a arte já não existe como fenômeno específico, abolida e hegelianamente superada numa estetização geral da existência” (VATTIMO, 1987 : 60). Trata-se não apenas de uma utopia teórica, mas da prática artístico-literária que, a partir das vanguardas históricas dos primórdios deste século, propugna pela explosão da estética para fora das fronteiras institucionais fixadas pela tradição, de modo que, conforme afirma Ernesto Grassi em Arte como antiarte:
A arte não pode mais, portanto, ser considerada como a expressão da genialidade de poucos, ou como um luxo; pelo contrário, deve ser reconhecida como um dos aspectos precípuos da existência humana e deve ser considerada nesta função. O problema da criação artística e de sua interpretação se apresenta, sem dúvida, cada vez mais ao juízo de muitos e parece destinada a penetrar cada vez mais em todos os campos da existência humana, desde o projeto industrial até a planificação urbanística. (GRASSI, 1975 : 19)
No entanto, poderíamos objetar que o signo crítico e revolucionário que norteou a negação da arte e da linguagem verbal pelas vanguardas históricas acabou se transformando, em suas manifestações epigônicas, na doutrina do funcionalismo e no postulado estilístico da forma racional. A morte da arte como anúncio do advento de uma outra dimensão espiritual, capaz de fundar uma ordem baseada na racionalidade técnico-científica, na democracia e na libertação do homem das tarefas mais árduas da sobrevivência, resultou não apenas na glorificação das funções demiúrgicas e messiânicas da máquina e na elevação do objeto técnico à condição de objeto artístico. As formas epigônicas das vanguardas anunciam o advento de um modelo organizativo baseado em princípios formais, abstratos, mecanicistas e matemáticos, ao qual devem-se adaptar tanto o corpo humano e a imaginação quanto o pensamento e as relações sociais 2 .
Por outro lado, como a assinalar a perversão do projeto utópico de explosão do estético proposto pelas vanguardas, devemos considerar o impacto da tecnologia, o segundo aspecto da morte da arte.
A saída da arte dos seus limites institucionais não aparece, exclusivamente, nem sequer principalmente, ligada, nesta perspectiva, à utopia da reintegração, metafísica ou revolucionária, da existência; mas ao advento de novas tecnologias que, de fato, permitem e determinam uma forma de generalização da esteticidade. (VATTIMO, 1987 : 62)
Neste sentido, na tentativa de construir uma teoria crítica das vanguardas históricas e atuais, Eduardo Subirats refere-se à subordinação de todas as manifestações da existência humana ao modelo funcional da economia racionalizada. Trata-se de constituir uma linguagem estilística congruente com a racionalidade técnico-científica e integrada às exigências da produção, ou seja, privilegiar aquelas formas de conhecimento de base lógica que encontram validade e justificativa na autonomia e no absoluto. Ao ser transformado em doutrina, o funcionalismo tende a abolir as diferenças entre objeto estético e objeto técnico através da sujeição do primeiro ao postulado estilístico de uma forma racional.
A perversão em sentido degenerativo do conceito de morte da arte, seja pelo enfraquecimento das vanguardas, seja pela exasperação dos princípios funcionais e racionalistas, conduziu ao primeiro processo de formalização: a abstração. E quando o real é abstratizado pelo pensamento formal e pela linguagem da matemática, as coisas investem-se de autonomia e anonimato, despossuídas enfim dos componentes expressivos e do sentido doados pela experiência humana. Por isso, nas palavras de Subirats em Da vanguarda ao pós-moderno:
O homem moderno converteu-se no náufrago de um mundo civilizado repleto de objetos esvaídos, carentes de sentido humano. A cultura deixa hoje o indivíduo desamparado, porque não é capaz de oferecer símbolos que o formem, quer dizer, que permitam sua realização como indivíduo. (SUBIRATS, 1986 : 78)
Para o ensaísta espanhol, a estetização geral corresponde à desvalorização das formas da cultura e à perda progressiva da dimensão individual interior, tanto na produção quanto na fruição da obra de arte. Submetida às exigências de uma “estética cartesiana plenamente identificada com as exigências industriais de racionalização técnica e econômica da forma e da cultura” (SUBIRATS, 1986 : 82), bem como a uma concepção funcionalista do objeto estético e à visão positivista da história como progresso técnico, a arte se demite da possibilidade de simbolizar uma realidade transcendente.
Em congruência com as premissas da reprodutibilidade e da proliferação de signos organizados num sistema diferencial, a estetização generalizada subtrai da obra a idealidade capaz de encarnar na interioridade criadora e se revelar na exterioridade do objeto criado, pois tal idealidade se torna presença disseminada em todos os setores da vida cotidiana pela capacidade de simulação do aparato tecnológico. Todos os nossos sentidos devem se submeter às condições objetivas e à mediação deste deus abstrato e absoluto: a técnica.
As mudanças que a experiência estética sofre diante da reprodutibilidade técnica da obra de arte representam “a passagem do significado utópico-revolucionário da morte da arte ao seu significado tecnológico, que se converte numa teoria da cultura de massa” (VATTIMO, 1987 : 63). Assim, a morte da arte não deve ser entendida apenas como a possibilidade de reintegração revolucionária da existência, mas também os mass media, em consonância com o processo de estetização geral da vida, participam da constelação histórico-ontológica em que nos movemos na medida em que assumiram na vida de cada um uma relevância que não encontra parâmetros em qualquer período histórico. Neste ponto, conforme adverte Vattimo, “identificar a esfera dos media com o estético pode suscitar algumas objeções” (VATTIMO, 1987 : 63), mas se considerarmos que, além de distribuir informações, cultura e entretenimento (sempre de acordo com critérios gerais de “beleza”, atração formal dos produtos), os meios de comunicação “produzem consenso, instauração e intensificação de uma linguagem social comum” (VATTIMO, 1987 : 63), a identificação entre os media e o estético não se torna tão difícil.
Não são os meios para a massa, a serviço da massa; são os meios da massa, no sentido em que a constituem como tal, como esfera pública do consenso, dos gostos e do sentir comum. Ora, esta função que se costuma chamar, acentuando-a negativamente, de organização do consenso, é uma função requintadamente estética, ao menos em um dos sentidos principais que este termo assume desde A crítica do juízo kantiana, na qual o prazer estético não se define tanto como o que o sujeito experimenta em relação ao objeto, mas como aquele prazer que deriva de constatar a própria pertença a um grupo – em Kant, a própria humanidade como ideal – juntamente com a capacidade de apreciar o belo. (VATTIMO, 1987 : 63-4).
Em resumo, podemos afirmar que os dois primeiros significados da morte da arte – utópico-revolucionário e tecnológico – encerram dois sentidos. No primeiro caso, o fim da arte representa a reconciliação entre a esfera estética e o resto da experiência, preservando-se o sentido forte e utópico de uma existência resgatada e reintegrada. Por outro lado, ao considerarmos a distribuição de produtos estéticos pelos mass media como estratégia de organização do consenso, a noção de morte da arte revela o seu sentido débil e real: a generalização da esteticidade como extensão do domínio dos meios de comunicação de massa.
A explosão do estético, quando submetida ao aparato tecnológico e à razão instrumental, tende a gerar a redução da riqueza e da dignidade da linguagem, impossibilitando o restabelecimento do sentido espontaneamente vivido entre o homem e as coisas, o diálogo entre interioridade e exterioridade. À sombra dos números, a linguagem foi submetida a princípios funcionais e produtivos capazes de dissipar o sentido e a intencionalidade da fala, então reduzida a fórmula lingüística e estruturada.
Tal linguagem nos remete a um código absoluto que determina toda a experiência estética, convidando-nos a participar de um universal abstrato que foge do nosso contato. O signo tornou-se coisa; a linguagem, uma língua: “... esse sistema de elementos diferenciais” que “tende a se bastar a si mesmo, a eliminar a referência à coisa, a engendrar e realizar o sentido sem essa referência” (DUFRENNE, 1981 : 146-7). Ossário de falas, linguagem de ninguém, pois elaborada na ausência das possibilidades expressivas do sujeito, bem como do objeto e dos obstáculos da realidade, na medida em que dissolve a familiaridade do homem e do mundo, do universo concreto. Babel sitiada por monoglotas de uma língua absoluta e desprovida de qualquer sentido humano.
No entanto, não podemos olvidar a intenção de determinadas correntes da arte contemporânea de, consoante com os princípios das vanguardas históricas, renunciar ao esteticismo que as formas epigônicas freqüentemente determinaram como meta da atividade artística. Neste sentido, enquanto reação à extensão do domínio dos media através da generalização da esteticidade, Vattimo esclarece o terceiro aspecto da morte da arte:
À morte da arte por obra dos mass media, os artistas responderam freqüentemente com um comportamento que se coloca sob a categoria da morte enquanto aparece como uma espécie de suicídio de protesto: contra o Kitsch e a cultura de massa manipulada, a estetização a nível baixo, débil, da existência, a arte autêntica freqüentemente se refugiou em posições programaticamente aporéticas, renegando qualquer elemento de fruição imediata das obras – o seu aspecto “gastronômico” –, recusando a comunicação, escolhendo o puro e simples silêncio. (VATTIMO, 1987 : 64)
No ensaio “A estética do silêncio”, Susan Sontag assinala que a morte da arte como silêncio, já presente em diversas correntes das vanguardas históricas, revela o profundo e frustrante conflito que se instala na empresa criadora, determinando o questionamento dos procedimentos e do próprio direito de existir da arte. Na medida em que as vanguardas propugnaram pelo “mito do caráter absoluto da atividade do artista”, cada obra tornou-se um paradigma, suporte de um modelo racionalizável, para o qual confluiriam valores estranhos aos estéticos. A atividade artística tornou-se, então, o locus adeqüado à “representação dos dramas formais que assediam a consciência” (SONTAG, 1987 : 11).
Todavia, consciente das restrições da arte no processo de reinvenção do projeto de “espiritualidade” 3 da era contemporânea e empenhado no desejo de transcendência das condições materiais, o artista constata que a corporificação do “espírito” na concretude da obra serve apenas para a afirmação da heteronomia da arte. A materialidade do objeto criado e os instrumentos mediadores presentes na atividade artística conduzem o artista à consciência da possibilidade de submissão da empresa criadora ao mundo do consenso manipulado através dos mass media.
Praticada em um mundo provido de percepções de segunda mão e especificamente confundida pela traição das palavras, a atividade do artista é amaldiçoada com a mediação. A arte torna-se a inimiga do artista, pois nega a realização – a transcendência – que ele deseja. Portanto, a arte passa a ser considerada como algo que deve ser superado. Um novo elemento ingressa na obra de arte individual e se torna parte constitutiva dela: o apelo (tácito ou aberto) à sua própria abolição – e, em última instância, à abolição da própria arte. (SONTAG, 1987 : 12-3)
Ora, seja optando pelo silêncio permanente ou por uma linguagem enigmática e obscura, seja negando a arte como representação de uma dimensão ideal com relativa independência das relações materiais ou adotando programas de empobrecimento e redução da obra, os artistas revelam ter consciência da situação do homem contemporâneo diante da “inadeqüação e insuficiência que sua voz assume frente à onipotente objetividade das linguagens codificadas que a absorvem e submetem” (SUBIRATS, 1986 : 98-9).
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