Desde a Antigüidade clássica, os verbos delectare e docere determinaram as concepções acerca da dupla função da arte e da literatura, embora possamos assinalar períodos históricos de exacerbação de sua finalidade instrutiva e normativa, como a Idade Média. Submetida a objetivos pedagógicos e morais, a empresa criadora medieva tende a transformar a obra de arte em expressão de normas de conduta capazes de servir às injunções dos poderes político e religioso.
A concepção artística do Renascimento, no entanto, parecia indicar a libertação da arte das finalidades didáticas e das limitações morais, privilegiando o delectare e forjando um conceito específico de “belo” artístico, posteriormente desconsiderado pelo movimento da Contra-Reforma devido ao resgate da doutrina medieval acerca da servidão voluntária (?) do artista e da obra com relação às verdades ideológicas e doutrinárias, anteriores e determinantes da criação.
Até o século XVIII, incluindo o Iluminismo filosófico e científico, arte e literatura são concebidas como veículos ou instrumentos úteis para expressar uma visão de mundo previamente elaborada pelos cânones da teologia ou da política. O Romantismo, cujos desdobramentos posteriores determinaram a afirmação da idéia de arte moderna, representou uma primeira resposta estética da cultura ocidental no sentido de libertar a arte do utilitarismo que ameaçava convertê-la em ornamento ou mercadoria. A revolução social burguesa e a Revolução Industrial instauraram um universo baseado nos princípios da funcionalidade e da utilidade, segundo os quais toda atividade humana deve submeter-se às exigências da produção e do consumo, inclusive a criação literária.
Neste sentido, a doutrina da art pour l’art pode ser entendida como uma estratégia de sobrevivência diante do assédio dos princípios funcionais e econômicos, de recusa da submissão da obra de arte ao estatuto de mercadoria. E ainda hoje, implícita ou explicitamente, tal doutrina participa da problematicidade que caracteriza as relações entre a empresa criadora e a sociedade de consumo, entre a literatura e a cultura de massas, mesmo se considerarmos o arrefecimento do signo crítico e subversor que norteou as vanguardas artísticas do início do século.
No entanto, não podemos olvidar que, seduzidos por concepções baseadas na formalização e repetição de modelos, amplos setores da arte abandonaram a atividade gratuita de fazer surgir novos objetos no mundo para investir na manipulação de signos que prescindem de qualquer relação direta e íntima com as coisas, consolidando a indistinção entre objeto estético e objeto técnico. A redução da obra de arte à condição de mercadoria ou ornamento, ao invés de privilegiar as potencialidades cognitivas e práticas pressupostas no conceito hegeliano de morte da arte, revela tão-somente o sentido degenerativo instaurado a partir da perversão de tal conceito pela universalização do domínio do código na sociedade de consumo.
Contudo, não são poucas as obras literárias que resistem às tentações dos paraísos geométricos que a racionalidade técnico-científica lhes oferta para transformá-las em ornamento ou mercadoria. Provavelmente, tal resistência reside no fato de o reino de ação e a matéria da literatura ser a linguagem: casa da memória e do segredo do homem histórico e plural. As palavras que o escritor acolhe para edificar a obra conservam a origem, a história e o horizonte da comunidade humana que as pronunciou e nos convocam, através da multiplicidade de sentidos que sob a palavra circulam, para a revelação e o encontro do que somos. Para além do caráter informativo dos atos discursivos e da operosidade das palavras, a literatura desafia os princípios da utilidade para ser a gratuidade que nos destina a existir aquém ou além das necessidades e do valor.
Diante da insubmissão de tais obras face à lógica do modelo, instaurada pela absolutização da ordem do valor e pela hegemonia do código, a cultura de massas determina uma condenação ainda mais radical do que aquela proposta por Platão para os poetas. Ao convocar o homem para a experiência da ambigüidade de exposição e reserva que move a linguagem, o escritor é exilado ou condenado ao silêncio. Ao acolher os símbolos que, em todos os sentidos, evocam a presença do mundo e inauguram a intimidade do outro, o leitor deve recolher-se aos subterrâneos que abrigam uma sociedade secreta, responsável pela manutenção do contato entre literatura e realidade. Assim delectare e docere podem ser restaurados, não como submissão à ordem funcional estabelecida, mas como estratégia de sobrevivência e de aprendizagem de novas formas de ver, ouvir, sentir e falar diante de um universo que continuamente escapa às nossas tentativas de representação.
O processo de construção do sujeito da racionalidade técnico-científica, principalmente a partir do século XVIII, determinou profundas mudanças nas relações entre o homem e as coisas. A mediação do aparato tecnológico e a instrumentalização da palavra favoreceram o advento de um código hegemônico capaz de alterar o sentido originário da linguagem, objetivando-a em signos dotados de valor de uso. Desde então, a questão da linguagem encontra os limites apontados por Mikel Dufrenne em Estética e filosofia:
Os dois limites (que não devem ser confundidos) para os quais a linguagem tende são a tagarelice e a lógica. Na tagarelice, a linguagem, reduzida à sua função fática, perdeu a função referencial que faz sua virtude semântica: fala-se para não se dizer nada, trocam-se palavras como coisas (ou como bens, ou como mulheres) sem trocar idéias. Na lógica, a língua é um código tão rigorosamente formalizado, cuja sintaxe é tão hipertrofiada, que a semântica tende a se reduzir à sintaxe: os enunciados, nela, são tautologias...”(DUFRENNE, 1981 : 147)
O abismo de tais limites remete tanto ao repúdio da palavra com vistas ao silêncio quanto ao afastamento de áreas da verdade, da realidade e da ação do âmbito da manifestação verbal. De acordo com George Steiner em Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra, o “sabor de misticismo” que, do ponto de vista ocidental, caracteriza o abandono da palavra em direção ao silêncio jamais abalou a primazia da “convicção de que toda verdade e realidade – com exceção de uma pequena e estranha margem situada no ponto mais alto – podem ser contidas pelas muralhas da linguagem” (STEINER, 1988 : 32). Mas tal convicção não foi suficiente para resistir ao avanço da linguagem da matemática que, no curso do século XVIII, determinou profundas mudanças na vida intelectual do Ocidente.
Abandonando as condições materiais da experiência e a característica de representação taquigráfica de proposições verbais, a matemática se torna moderna e adquire extrema autonomia, seja no desenvolvimento de uma linguagem articulada e complexa seja na construção de métodos e processos próprios.
Muitos dos espaços, relações e ocorrências de que trata a matemática avançada não têm correlação necessária com dados dos sentidos; são “realidades” existentes no interior de sistemas axiomáticos fechados. Só se pode falar sobre eles de maneira significativa e normativa na linguagem da matemática. E tal linguagem, para além de um plano bastante rudimentar, não é e não pode ser verbal.” (STEINER, 1988 : 33)
A cisão entre os domínios da experiência e da percepção da realidade, entre as linguagens verbais e a linguagem da matemática, conduziu muitas das tradicionais disciplinas humanísticas ao que Steiner denomina “falácia da forma imitativa” (STEINER, 1988 : 36). Na medida em que o desenvolvimento de recursos algébricos e estatísticos se tornou um critério básico para a passagem de um ramo de pesquisa da pré-ciência à ciência, não foram poucos os historiadores, economistas e cientistas sociais que se empenharam na adoção dos processos e métodos da matemática.
“Conhecer cientificamente”, assinala Arcângelo R. Buzzi em Introdução ao pensar, “consiste em conhecer formalizando, matematizando o real” (BUZZI, 1988 : 118); mas não podemos olvidar que o acolhimento do modelo formal-operativo das ciências exatas resulta, ao menos no âmbito das ciências hermenêuticas, do profundo mal-estar advindo das exigências e triunfos da matemática. O culto da predição, do exato e do positivo são defesas contra o caráter provisório e estético das atividades humanísticas e correspondem a uma traição da verdadeira natureza da hermenêutica, qual seja, desvelar na palavra o sentido, a significação e o valor da ação humana.
Exacerbadas pelas formas de reprodução mediática das linguagens verbais e pela progressiva intraduzibilidade da linguagem da matemática, as ameaças da tagarelice e da lógica conduzem a arte e a literatura a um questionamento radical das formas de expressão verbal, em conformidade com a restrição do alcance comunicativo da palavra e com o declínio dos recursos da língua. A ampliação do abismo entre ciência e arte, ao estender-se para o âmbito da linguagem, determina a redução do valor simbólico da palavra: inesgotabilidade, renovação sem fim e permanência do significado. Manipulada pela ciência, a linguagem tende a se converter num instrumento exemplar de abstração do qualitativo e do plural, eliminando a alteridade e restringindo as possibilidades de convivência com o concreto.
No ensaio “Linguagem poética e linguagem científica”, Jean Starobinski afirma que, no processo decisivo de separação entre ciência e arte, foi necessário
... fazer abstração das qualidades ou recebê-las apenas provisoriamente, para reduzi-las em quantidades, em informações numeráveis etc. As qualidades da antiga filosofia (e principalmente o aristotelismo) são suplantadas por mecanismos. (STAROBINSKI, 1984 : 45)
A palavra que, de posse dos seus valores simbólicos, fora imagem e som, torna-se ferramenta adeqüada ao processo de mecanização da representação do mundo e do homem. Starobinski aponta duas respostas a esse processo (STAROBINSKI, 1984 : 46-7). A primeira delas, de emulação e de imitação, consiste no esforço de ampliação para outros campos de métodos utilizados nas ciências exatas e em certos setores das ciências naturais. Neste caso, nos defrontamos com tentativas de explicações mecanicistas sem a devida adeqüação dos recursos experimentais, bem como com a imposição no campo das artes de generalizações racionalistas, de forma a transformar a expressão em explicação.
A outra resposta, de resistência e oposição, significa a negação da imagem do mundo forjada pela ciência 1 . Neste caso, Steiner adverte que apenas o desconhecimento das ciências exatas e a indolência imaginativa justificam a atitude de determinados humanistas que insistem em habitar uma “ficção animada”, pois “todos os indícios sugerem que as formas da realidade são matemáticas, que o cálculo diferencial e integral é o alfabeto da percepção” (STEINER, 1988 : 35).
“O perigo ameaça”, adverte Martin Heidegger, “que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem” (HEIDEGGER, 1969 : 71). De fato, a distância estabelecida entre experiência e percepção anuncia a impossibilidade da linguagem nos abrir a realidade, pois estar entre coisas deveria significar procura e convivência. Em cada palavra buscamos a vizinhança e o diálogo com o outro. No entanto, o discurso erístico assalta a linguagem e aliena toda e qualquer expressão dialógica, investindo na nulidade da significação e na univocidade da palavra. |