No âmbito da literatura, a crise da representação se exacerba com o efeito nivelador do meio técnico, por meio do qual as obras tendem à indiferença, a estereótipos formais ou temáticos. A substituição do suporte simbólico pelo suporte técnico, operada pela comunicação de massa, subentende a afirmação de um princípio de reprodutibilidade radical, disssuasiva e subliminar, de forma que a obra literária converte-se em objeto de consumo. E, como qualquer objeto inserido no ciclo inelutável de produção e consumo, sujeita-se ao movimento da cultura contemporânea, cujo desenvolvimento se dá em torno da reciclagem, incluindo a obsolescência programada e as oscilações da moda, o retorno do mesmo ao mesmo – Narciso condenado ao consumo de espelhos.
Convertida em combinatória lúdico-técnica por força da lógica do modelo simulado, a obra literária não escapa ao que Baudrillard denomina “semiurgia da arte contemporânea” (BAUDRILLARD, 1981a : 109-21), ou seja, o advento do valor-signo como mais-valia que se acrescenta à obra como garantia de autenticidade: a assinatura. Quando a sofisticação das técnicas de reprodução dessacraliza e ameaça a obra singular com o fantasma de seu duplo – a falsificação –, a assinatura assume o valor mítico de “legenda” (BAUDRILLARD, 1981a : 112). Assim, ao escritor se impõe o modelo da produção em série, da qual o termo final já não é a representação de um mundo, mas o próprio sujeito criador que, por estar sempre ausente, deve “produzir, infatigavelmente, a prova de si próprio” (BAUDRILLARD, 1981a : 113). A produção de tal prova implica condenar o escritor ao estilo e à assinatura, elementos que atestam a autenticidade do autor consigo mesmo e a obra como objeto deste sujeito. “Atualmente, só o artista se pode copiar a si próprio. Em certo sentido, ele está condenado a fazê-lo e a assumir, se for lógico, o caráter serial da criação” (BAUDRILLARD, 1981a : 115).
Seja através da tautologia formal do roman-feuilleton novecentista nos best-sellers ou da reciclagem dos elementos experimentais das vanguardas históricas com a supressão do signo crítico, a tendência à serialidade na produção literária contemporânea encontra sua gênese nos primórdios das técnicas de reprodução, conforme podemos inferir das palavras de Paul Virilio em Guerra e cinema:
Desde a Renascença, quando a invenção da imprensa desencadeia na Europa a revolução da leitura silenciosa, a paramnésia da narrativa onírica, freqüentemente religiosa..., não mais passa pela reunião e pela troca da palavra, mas pela produção industrial, pela estandardização. Depois de algumas décadas, milhões de livros seriam editados, prefaciando a futura difusão da fotografia, do cinema e, hoje em dia, da eletrônica. (...) Existem numerosas afinidades entre o instante da escrita e o instantâneo fotográfico, cada um se inscreve menos no tempo que passa do que no tempo de exposição. Com a impressão, já se estabelece uma nova interface técnica em que o meio de comunicação retém o imediato e desacelera-o para fixá-lo em um tempo de exposição que escapa à duração diária e ao calendário social, aprofundando a separação entre o instrumento de transmissão e nossa capacidade de assumir a existência presente. (VIRILIO, 1993a : 66-7)
A possibilidade de conversão da obra literária em meio de massa anuncia a sua submissão ao código e à obrigação de significar, à dimensão serial e à redundância, à substituição da fruição pelo fascínio e do estético pelo extático. Mas não apenas a narrativa será afetada pelas exigências da reprodução técnica. De acordo com Lewis Mumford em A cultura das cidades, a generalização do uso de veículos de tração animal no século XVI determinou profundas mudanças no traçado urbano e arquitetônico das cidades barrocas, com recorrência à disposição regular de edifícios, com fachadas simétricas e cornijas uniformes 5 .
Na caminhada, o olhar corteja a variedade, mas em ritmo mais acelerado, o movimento exige repetição das unidades que se hão de ver: somente assim é que a parte individual, à medida que se desloca velozmente, pode ser recuperada e reconstituída. O que seria monotonia, para uma posição fixa ou mesmo numa procissão, torna-se um correspondente necessário ao ritmo de andar dos cavalos rápidos. (MUMFORD, 1961 : 106)
Por mais inusitada que tal aproximação possa parecer, ela nos permite introduzir aqui uma questão que, em conformidade com o pensamento de Virilio, é fundamental para a compreensão da crise da narrativa: a produção industrial de velocidade. Neste sentido, já em Velocidade e política, o autor francês recorre a uma assertiva de Joseph Paul Goebbels – “A propaganda deve ser feita diretamente pela palavra e pela imagem, não pelo escrito” – para analisar o papel desempenhado pela velocidade na instauração da “ditadura do movimento” pelas revoluções modernas. E a conversão das massas em produtoras de velocidade exige métodos que privilegiam estímulos grosseiros e repertório sígnico reduzido, com preponderância dos meios icônicos em detrimento dos simbólicos, pois “o tempo de leitura implica o de reflexão, uma desaceleração que destrói a eficiência dinâmica da massa” (VIRILIO, 1996 : 21).
Mesmo considerando que “toda sociedade é fundada numa relação de velocidade” (VIRILIO, 1984 : 49), não podemos olvidar que a “lógica da corrida” das revoluções modernas, ainda empenhadas no assalto do espaço territorial, será transfigurada pelo evolucionismo tecnológico ocidental, pelo progresso dromológico, de forma que a velocidade começa a se desterritorializar, afirmando-se como idéia pura e sem conteúdo. Substituindo a velocidade metabólica, a velocidade tecnológica se converte em valor supremo, tornando necessário o investimento contínuo nas próteses de deslocamento e nas máquinas de visão. A energia cinética de corpos automotivos cada vez mais sofisticados e, principalmente, a transferência do olhar por meio dos dispositivos eletrônicos anunciam o abandono da terra e seus obstáculos em nome de uma contração do mundo que suprime todas as distâncias.
A proximidade do mundo será tal que a “automobilidade” não será mais necessária. (...) Quando a mobilidade física igualar as performances da mobilidade eletrônica, estaremos diante de uma inaudita situação de permutabilidade de lugares. Com efeito, este é o projeto atual. (...) Tecnologia é o que permite essa ubiqüidade, e agora podemos começar a pensar nisso. Proximidade, interface única entre todos os corpos, todos os lugares, todos os pontos do mundo – essa é a tendência. E eu levo essa tendência aos extremos. Não se trata de ficção científica. (VIRILIO, 1984 : 64)
A ficção científica anuncia-se como princípio de realidade. Somos, a um só tempo, o objeto e os donatários do olho ubiqüitário do Big Brother de 1984 (George Orwell, 1949) 6 . A tecnologia é um enigma que nos desafia e, como o computador HAL 9000 de 2001: uma odisséia no espaço (2001: a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, parece ocultar o plano de vôo do Ocidente. E, se ainda não realizamos as viagens imaginadas por H. G. Wells em The time machine (1895), a instantaneidade da ação à distância, o continuum de imagens em tempo real, já nos permitem suprimir a geografia e as distâncias de tempo. “O espaço não está mais na geografia – mas na eletrônica. A unidade está nos terminais” (VIRILIO, 1984 : 109). A produção industrial da velocidade acaba por determinar o desaparecimento da localização estratégica, constituindo-se o não-lugar, o inferno das imagens que estão presentes apenas porque desaparecem rapidamente.
Neste sentido, as imagens fáticas dos meios audiovisuais ilustram as considerações de Baudrillard acerca da simulação como “segundo batismo das coisas”, como produção de realidade, como fim da cena da representação para que se instaure um estado de semiurgia generalizada. Se “simular é fingir ter aquilo que não se tem” (BAUDRILLARD, 1981b : 12), resta-nos questionar o papel das máquinas de visão na elisão do real, pois que, por meio da decomposição e da fragmentação deste, as imagens técnicas empenham-se na geração de um real sem origem nem realidade. Num contexto de visibilidade e transparência absoluta, a especularidade da representação ameaça dissolver-se, uma vez que, como simulacro de simulação, a imagem de alta definição absorve o real e o assume, fazendo coincidir em si a realidade e a sua representação.
Não por acaso, Baudrillard e Virilio 7 recorrem ao mesmo filme – O estudante de Praga (Der Student von Prag, 1913), de Paul Wegener – em suas reflexões acerca da questão da imagem. Em ambos os casos, considera-se a obra como premonitória, seja da alienação social concreta da imagem, da fatalidade da técnica ou da crise da representação (BAUDRILLARD : 1981c : 234-8), seja do advento de uma estética do desaparecimento, do domínio da atualidade pela virtualidade (com a conseqüente subversão da noção de realidade) ou do “produtivo tráfico de aparências” (VIRILIO, 1993a : 54). De acordo com Baudrillard, ao vender para o feiticeiro Scapinelli sua imagem no espelho, o estudante Baldwin submete-se a um processo de alienação que tem como princípio o transtorno da reciprocidade entre o mundo e o indivíduo.
A imagem especular representa aqui simbolicamente o sentido dos nossos atos, que formam em redor de nós um mundo à nossa imagem. A transparência da nossa relação ao mundo exprime-se bastante bem pela relação inalterável do indivíduo ao respectivo reflexo no espelho: a fidelidade de semelhante reflexo testifica, de certa maneira, a reciprocidade real entre o mundo e nós. Simbolicamente portanto, no caso de a imagem nos vir a faltar, é sinal de que o mundo se torna opaco e os nossos atos nos fogem – encontrando-nos então nós sem perspectiva sobre nós mesmos. Sem esta caução, deixa de haver identidade possível: torno-me outro em relação a mim próprio, estou alienado. (BAUDRILLARD, 1981c : 234-5).
Já para Virilio, o metafilme interessa na medida em que denuncia como a produção desenfreada de imagens através da fotografia e do cinema acaba por colocar em crise os modos de aquisição e restituição do mundo exterior.
Ao lado da ordem sensível e bem visível já se instala o caos de uma ordem insensível, novas imagens espectrais e delirantes que, depois de terem sido roubadas, retocadas e invocadas, podem ser capturadas, vendidas, transformando-se em objeto atraente de um produtivo tráfico de aparências, além de poderem ser projetadas no espaço e no tempo. (VIRILIO, 1993a : 54)
Neste sentido, a produção industrial de velocidade encontra nas telecomunicações à distância os materiais de transferência adeqüados à constituição de uma nova lógica da imagem 8 , que remete a uma visão resultante da própria velocidade. A profusão de imagens de alta resolução, conforme já assinalamos, instaura um não-lugar. Na verdade, como fenômenos da velocidade, as tecnologias de transporte e de comunicação realizam a “cine-sensação do mundo” propugnada por Dziga Vertov na “Resolução do Conselho dos Três em 10-4- 1923” (VERTOV, 1983 : 253), mas num sentido pervertido que determina o domínio do atual pelo virtual, da cena pela obscenidade, da coisa pela imagem, da representação pela apresentação instantânea, do espaço real pelo tempo real. Por meio dos vetores da velocidade cinemática, instaura-se a visibilidade total e a transparência absoluta, subvertendo a própria noção de realidade, principalmente no que concerne ao espaço, enfim convertido em circuito fechado.
Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, este confinamento brusco faz com que tudo, absolutamente tudo retorne a este “lugar”, a esta localização sem localização... o esgotamento do relevo natural e das distâncias de tempo achata toda localização e posição. Assim como os acontecimentos retransmitidos ao vivo, os locais tornam-se intercambiáveis à vontade.
A instantaneidade da ubiqüidade resulta na atopia de uma interface única. Depois das distâncias de espaço e de tempo, a distância-velocidade abole a noção de dimensão física. (VIRILIO, 1993b : 13).
Tal atopia implica no esquecimento do mundo “exterior”, na aniquilação dos lugares e da aparência, de modo a engendrar um universo audiovisual e tele-topoló-gico, uma realidade sensível co-produzida com base na excessiva exatidão na definição da forma-imagem. Para se tornar representação da velocidade, o mundo é investido de imagens instáveis, fulgurações ininterruptas, cujas referências estão em vias de desaparecimento. O olho ubiqüitário das telas-teia não mais participa do sentido de redução característico de toda representação: “... aqui a redução é recusada, a recepção coletiva simultânea é a de um olho ubiqüitário capaz de ver tudo ao mesmo tempo” (VIRILIO, 1993b : 55).
A desrealização das formas de representação, o excesso de visibilidade e de transparência, a inelutável conversão da imaginação em imagens, a crise das dimensões e das referências participam de uma constelação de fenômenos histórico-ontológicos que questionam e destinam a literatura no inferno das imagens numéricas. Uma vez mais o número assombra a palavra com as perspectivas de um efeito de real que suplanta a realidade, da mesma forma que privilegia a informação mediatizada em detrimento da informação dos sentidos. Por que a literatura onde a velocidade ilumina até mesmo o não-visto do universo? Onde a literatura quando o fenômeno de aceleração abole nosso conhecimento das distâncias e das referências? Quando a literatura na imediatez do tempo real das transmissões diretas à distância?
Em O espaço crítico, Virilio insiste nas relações entre as crises das dimensões, das referências e da narrativa.
A questão que se coloca, portanto, não é mais a da “crise da modernidade” como declínio progressivo dos ideais comuns, protofundação do sentido da História, em benefício de narrativas mais ou menos restritas ligadas ao desenvolvimento autônomo dos indivíduos, mas antes a questão da narrativa em si, ou seja, de um discurso ou modo de representação oficial, herdeiro da Renascença e até o momento ligado à capacidade universalmente reconhecida de dizer, descrever e inscrever o real. Desta forma, a crise da noção de “narrativa” se mostra como a outra face da crise da noção de “dimensão” como narrativa geometral, discurso de mensuração de um real visivelmente oferecido a todos. (VIRILIO, 1993b : 18-9).
Os transtornos que afetam os modos habituais de representação se tornam ainda mais agudos quando a velocidade, a instantaneidade e a simultaneidade de um tempo real desvelam uma transferência desconhecida do olhar, cujo foco converte o próprio real em território ex-ótico. Caberá à literatura empenhar-se na preservação incerta da nossa capacidade de dizer, descrever e inscrever o real? A consciência de seu ser-linguagem será suficiente para resistir à voracidade do virtual? Do autoquestionamento que a crise da linguagem implica poderão advir as forças necessárias para enfrentar o enigma das novas tecnologias e o desaparecimento do real?
Nas páginas precedentes, estivemos sempre em busca da “distância amorosa”, do locus flutuante, onde a reflexão encontra analogia com a flânerie e o cálculo, com a fabulação e a geometria. De tudo o que ficou dito – e, principalmente, de como ficou dito –, resta-nos as imagens do itinerário hesitante daquele que navega sob o signo do questionamento. Círculo, espiral ou labirinto: qual forma melhor representaria esta viagem cuja destinação é o horizonte, não o cais que aqui inventamos sob o nome de conclusão?
Talvez o círculo, pela recorrência constante e repetitiva às relações entre as crises da linguagem, da representação e da narrativa, pela insistência em empregar as reflexões de alguns poucos autores, pela reiteração de algumas das questões que problematizam o estatuto da arte e da literatura na sociedade de consumo. Talvez a espiral, pois que, nestas variações sobre um reduzido número de temas, desejamos a cada movimento ter acrescentado senão novas considerações, ao menos uma palavra, uma vírgula, um olhar de distinção. Mesmo a abordagem da questão da morte da arte, com suas limitações e deficiências, nos reenvia à espiral, uma vez que com a repetição da palavra “morte” não pretendíamos nos referir a um mesmo e único fenômeno, mas assinalar como as diversas manifestações artístico-literárias da modernidade são fundamentais à inquirição do contexto contemporâneo.
Não, foi ao labirinto que nos condenamos. E conduzidos pelo fio tênue de um corpus teórico sem a perspicácia de Ariadne, insistimos em encontrar um centro, quando só havia margens, desvãos e precários horizontes. No entanto, tatear as passagens da cena finissecular nos permitiu compreender que encontrar um centro seria defrontar-se com a realização ou com a morte. Então preferimos a viagem aventurosa das margens, o risco calculado do itinerário provisório, quando todo ancoradouro está aparentemente disponível. Na distância que inaugura um outro olhar, acolhemos a questão da literatura na Baixa Modernidade procurando responder às indagações que nos assaltaram, conferindo-lhe uma abordagem que ao menos fosse o empenho de estar à margem do território ex-ótico onde a epistéme única vigora e domina. |