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Fernando Fiorese..

A LITERATURA NA CENA FINISSECULAR

A crise da representação
 

De tudo o que anteriormente ficou dito, a restrição dos recursos da palavra na construção da imagem do mundo e a sua decadência face ao uso desmedido por parte da cultura e da comunicação de massa nos conduz à crise da representação, na medida da supressão radical da dimensão simbólica e da assunção da lei do valor e da ordem dos simulacros como formas de elisão do real. A própria concepção platônica do simulacro como a representação que, distinta da cópia fiel, sacrifica “as proporções exatas para substituí-las, em suas figuras, pelas proporções que dão ilusões” (PLATÃO, 1993 : 153), nos remete a um efeito de perspectiva capaz de, absorvendo a distorção do olhar, oferecer ao observador a ilusão perfeita do objeto real.

— Mas que nome daremos ao que parece copiar o belo para espectadores desfavoravelmente colocados, e que perderia esta pretendida fidelidade de cópia para os olhares capazes de alcançar, plenamente, proporções tão vastas? O que assim simula a cópia, mas que de forma alguma o é, não seria um simulacro? (PLATÃO, 1983 : 153)

Neste sentido, a ordem da representação na cultura ocidental, por repousar na suposta equivalência entre o signo e o real, difere em essência da ordem da simulação que, enquanto forma mais radical dentre os simulacros, parte da negação do signo como valor e de qualquer referência à realidade. A instauração da ordem da simulação implica, portanto, na supressão contínua da alteridade ainda presente na ordem da representação, na qual alguma coisa substitui outra, permanecendo a dialética de ausência e presença do referente. Na simulação, não há mais referência a qualquer realidade, pois simular significa fingir uma presença ausente.

O pensamento de Jean Baudrillard 4 nos propõe compreender a cultura ocidental a partir do advento da era dos simulacros e da simulação. Dentro da espiral de simulacros, o período compreendido entre o Renascimento e a Revolução Industrial corresponderia à fase inicial do processo gradativo de abstração das formas de representação: a ordem da contrafação ou simulacro naturalista. Em sendo construídos a partir da lei natural do valor, os simulacros naturalistas instituem os signos em função do prestígio social, de forma a torná-los flexíveis e sujeitos à troca indiscriminada entre uma e outra classe. Para tanto, necessário investir nos princípios de arbitrariedade e de abstração do signo que, além da ordem das reciprocidades e da relação dual, se transforma em esquema formal, “denominador comum”.

O arbitrário do signo começa quando, ao invés de ligar duas pessoas por uma reciprocidade intransponível, ele reenvia, enquanto significante, a um universo desencantado do significado, denominador comum do mundo real, com relação ao qual ninguém mais tem compromisso. (BAUDRILLARD, 1976 : 78)

A evocação de uma presença ausente significa neste momento o questionamento do estatuto da representação, o primeiro passo no sentido da interdição do acesso à condição original do signo, a posteriori transformado em puro signo. No entanto, a ordem da contrafação constitui apenas uma primeira redução ao nível do signo, necessária ao projeto de centralização política e de hegemonia do código. Através da racionalidade produtivista do capital, pretende-se instaurar o processo de dominação técnica e de submissão operacional da natureza, com a qual o homem estabelece uma relação de confronto.

A ordem da produção, ou simulacro produtivista, corresponde historicamente à era industrial, na qual a natureza se torna o conceito de uma essência dominada. Desta forma, articulada como fator de produção e modelo de finalidade, a natureza é submetida a um processo de abstração que, fundado no direito de posse, utiliza a técnica e a ciência para transformá-la num paradigma operacional capaz de se impor às relações homem-mundo. Neste sentido, as reflexões de Jürgen Habermas, no ensaio “Técnica e ciência enquanto ‘ideologia’”, demonstram-se fundamentais ao entendimento da penetração dos padrões de ação instrumental nos mais diversos domínios (HABERMAS, 1983 : 313-43).

A “racionalização” progressiva da sociedade está ligada à institucionalização do progresso científico e técnico. Na medida em que a técnica e a ciência penetram os setores institucionais da sociedade, transformando por esse meio as próprias instituições, as antigas legitimações se desmontam. Secularização e “desenfeitiçamento” das imagens do mundo que orientam o agir, e de toda a tradição cultural, são a contrapartida de uma “racionalidade” crescente do agir cultural. (HABERMAS, 1983 : 313)

A alteração das relações entre o homem e a natureza determina a subordinação desta última às funções do agir instrumental e da escolha racional. O trabalho substitui a interação, de forma a integrar o homo fabricatus aos dispositivos técnicos e, ainda segundo Habermas, reestruturar a sociedade de acordo com o agir racional-com-respeito-a-fins e o comportamento adaptativo, então projetados sobre o plano dos sistemas sociais. Neste sentido, ao substituir as funções do organismo humano, a técnica possibilita a secularização do trabalho. E, conforme assinala Mircea Eliade em Ferreiros e alquimistas:

... é no trabalho definitivamente secularizado, no trabalho em estado puro, medido em horas e em unidades de energia gastas, que o homem experimenta e sente mais implacavelmente a duração temporal, a sua lentidão e o seu peso. (ELIADE, 1979 : 141)

Assumindo o papel do tempo através do aparato técnico de produção, o homem se condena “a identificar-se com ele, a fazer a sua obra mesmo quando não sentisse mais desejo de executá-la” (ELIADE, 1979 : 141). Desta forma, a experiência da temporalidade se traduz “pela consciência trágica da inutilidade de toda e qualquer existência humana” (ELIADE, 1979 : 141), principalmente se considerarmos a dogmatização da irreversibilidade e da vacuidade do tempo. Portanto, retomando Baudrillard, podemos afirmar que, na ordem do simulacro produtivista, a natureza está submetida aos princípios de produção e de significação, sendo os produtos do trabalho transformados em signos da operacionalidade da natureza e da naturalidade da produção. E “é ao nível mesmo da produção que a mercadoria significa, que ela representa o princípio da produção e de operacionalidade da natureza” (BAUDRILLARD, 1973 : 42), pois é necessário que o simulacro produtivista reduza a natureza a um paradigma operacional capaz de estruturar todas a relações do homem com as coisas.

Na ordem da produção, o objeto carece de unicidade e singularidade, pois, dessacralizado e produzido em série a partir de um ponto zero, dissolve-se qualquer referência original, estabelecendo novas relações com os seus produtores. “Na série os objetos tornam-se simulacros indefinidos uns dos outros e, juntamente com os objetos, os homens que os produzem” (BAUDRILLARD, 1976 : 85). A pretensa objetividade do mundo erigido a partir da racionalização técnica e industrial corresponde à universalização de um modelo arbitrário advindo da generalização da economia política na forma da lei estrutural do valor.

Por fim, enquanto ordem do simulacro característica da era pós-industrial, a simulação corresponde à forma mais exacerbada dentro do processo de dessignificação instaurado pelos simulacros naturalistas. A partir do código, considerado como sistema de signos absoluto e generalizado, a simulação opera a inversão das relações entre o real e sua representação, estabelecendo simples oposições binárias que permitem a objetivação do discurso e o controle dos objetos. Em relação ao discurso, pode-se afirmar que a simulação, reduzindo o signo ao puro jogo dos significantes, anula a relação entre significante e significado necessária ao processo de significação. Assim, diferentemente da ordem da produção, o controle das relações do homem com as coisas não mais advém do agir racional-com-respeito-a-fins, pois a hegemonia do código inaugura o monopólio da palavra como característica básica da dominação contemporânea. Da mesma forma, enquanto técnica de controle do objeto, o processo de simulação opera uma completa inversão, de forma que o real se torne efeito ou reflexo de modelos gerativos.

Em ambos os casos, temos a dissolução da diferença entre o conceito e o real, o signo e a coisa, de forma a anular a distinção entre a operação do modelo e a operação do real, o que subentende o fim da especularidade da representação a partir de operações de decomposição e fragmentação da realidade. Neste sentido, podemos afirmar que a economia política passa do modo de produção ao modo de reprodução na medida em que o real entra na era de suas técnicas de reprodução e instaura-se o fluxo ilimitado de signos. Assim, segundo Umberto Eco em Viagem na irrealidade cotidiana, “a irrealidade absoluta se oferece como presença real”, pois “a ambição é fornecer um ‘signo’ que se faça esquecer enquanto tal: o signo aspira a ser a coisa, e a abolir a diferença do remeter, a mecânica da substituição” (ECO, 1984 : 13).

A simulação contemporânea pode ser entendida, portanto, como um sistema de produção obsessiva do real na medida em que se estabelece a precessão dos simulacros, emancipando-se o signo de uma lógica equivalente de significados ainda capaz de enredar dois sujeitos num ciclo de reciprocidades para que, enquanto significante, possa ele reenviar “a um universo desencantado do significado, denominador comum do mundo real, com relação ao qual ninguém mais tem compromisso” (BAUDRILLARD, 1976 : 78). Operando a fusão entre real e imaginário, o simulacro absorve e substitui o primeiro, de forma a fazer coincidir em si mesmo o real e sua representação. “A irrealidade não é mais a do sonho ou da fantasia, de um além ou de um aquém, é a de uma alucinante semelhança do real consigo mesmo” (BAUDRILLARD, 1976 : 112). E eliminando-se qualquer referente, a duplicação do original corresponde à sua morte.

Sistema de produção obsessiva do real, a simulação encontra nas tecnologias de informação o altar do culto do ícone pelo ícone. “Eis que vem a grande Cultura da comunicação tátil, sob o signo do espaço tecno-luminoso-cinético e do teatro total espácio-dinâmico” (BAUDRILLARD, 1976 : 111). A produção incessante de imagens sem referência a qualquer realidade demonstra como a cultura contemporânea se refugia na estetização generalizada dos simulacros de simulação. Tal estetização corresponde antes à passagem do estético ao “extático”, afirmada pela ludicidade fria do universo da comunicação e pela hiper-realidade da simulação operacional. Substitui-se a estética da sedução pela anestesia do fascínio e do êxtase face a um real produzido que se faz passar por realidade na hiper-realidade.

Em As estratégias fatais, Baudrillard define a cultura do simulacro pela proximidade absoluta e instântanea das coisas, pelo fim da intimidade do sujeito, pela superexposição e transparência do mundo, pelo fim da cena e pela assunção do obsceno.

Mais visível do que o visível, eis o obsceno.

(...)

A cena é da ordem do visível. Mas já não existe cena do obsceno, já só existe a dilação da visibilidade de todas as coisas até o êxtase. O obsceno é o fim de toda a cena. (BAUDRILLARD, 1990 : 47)

Trata-se de, por meio da produção incessante de imagens, dar resposta ao desaparecimento do real, na tentativa compensatória de manufaturá-lo. Para tanto, a simulação consolida as oposições da ordem do sentido em formas extáticas. No exagero do real (o hiper-real) e do belo (o fascinante), do funcional (a hiperfuncionalidade) e do rápido (a vertigem), da finalidade (a hipertelia) e do visível (a obscenidade), a ordem do simulacro nos precipita num universo onde o exorbitante da verdade, a sobre-representação dos acontecimentos através dos media, realiza-se “para ser visto sem ser olhado, alucinado em filigrana, absorvido como o sexo absorve o voyeur: à distância. Não somos nem espectadores nem atores, mas voyeurs sem ilusão (BAUDRILLARD, 1990 : 55). Trata-se, enfim, de um excesso que é restrição, de um mais que é menos.