Pensar o cinema nas duas cenas finisseculares que a sua história compreende significa contrapor as teorias e práticas que propugnam pela natureza essencialmente realista do filme e aquelas que o consideram um discurso feito de imagens, um fato de linguagem, algo construído, fabricado, manipulável e calculável, um artifício que transtorna os modos tradicionais de representação e percepção.
O cinema prisioneiro do jogo realista-naturalista se submete ao modelo da técnica e da ciência, corroborando o projeto da Metafísica na medida em que se estabelece sob uma epoché na qual se realiza o agenciamento da realidade pela razão, pelo antropocentrismo e pelo logocentrismo. Inúmeras analogias podem ser estabelecidas entre as máquinas de visão (fotografia, cinema, videografia, holografia, infografia etc.) e o modelo positivista, segundo o qual toda atividade humana deve obediência à disciplina férrea da ciência, incluindo as criações artísticas e literárias. A própria gênese do aparato fotográfico no século XIX já revelava os vínculos de identidade e, ressalte-se, de servidão utilitária entre os mecanismos de reprodução mecânica da realidade e o projeto da razão na sua "mania pela Natureza".
À concepção do filme como suporte técnico para a fixação da realidade visível e tangível, condenando-o à "monografia das coisas" na sua vocação documental, vem somar-se outra: a do cinema de ficção como uma arte essencialmente realista, uma arte ilustrativa do mundo e da ciência. Portanto, ainda não estamos diante de uma arte que se poderia denominar "moderna", embora engendrada no prefácio da modernidade. Para transformar o cinema em arte moderna seria necessário romper não apenas com os paradigmas da arte imitativa, mas principalmente com toda uma concepção de mundo baseada tanto na evidência e na universalidade da ordem mecânica da Natureza e da sociedade quanto na naturalidade do cultural.
Compreende-se, pois, o paradoxo de uma arte que, mesmo se pretendendo realista, acaba por se configurar como uma alienação do real, conforme demonstraria o complexo ideológico-industrial construído em torno do what's your dream? hollywoodiano. A constituição do cinema como máquina semiótica exigiria a superação dos limites do aparato tecnológico para ser o transtorno do efeito de realidade, consoante as funções e finalidades inscritas no aparelho pela ciência positiva. Neste sentido, recorrendo a uma assertiva de Bertolt Brecht, Walter Benjamin atribui à fotografia e ao cinema a tarefa do desmascaramento ou da construção:
...menos que nunca a simples reprodução da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. (...) A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As relações humanas, reificadas - numa fábrica, por exemplo -, não mais se manifestam. É preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado (1).
Os primórdios do cinema, seja como registro documentário da realidade seja como construção da fantasia, já anunciam o transtorno do realismo e a crítica das antigas concepções de arte. Desde que seja possível compreender o cinema primitivo a partir de sua inserção na cena finissecular, caracterizada pela sangria das três feridas narcísicas do homem ocidental e pela agudização da questão da linguagem, torna-se evidente o seu papel no questionamento dos valores e conceitos da estética tradicional - mesmo considerando, conforme já salientamos, os débitos dos primeiros realizadores em relação ao modelo realista-naturalista.
Nas scenes of the world e nas féeries , quando o cinema ainda atraía menos como espetáculo do que como inovação técnica, como cinematógrafo, a utilização que se confere à nova tecnologia já prenuncia o transtorno da miragem naturalista. Os vínculos de identidade com a encenação da ciência e com a magia persistirão, principalmente na indústria cinematográfica - embora progressivamente questionados ou abalados por cineastas e teóricos.
Assim, se nos dispomos à aventura do avessismo, mesmo nos filmes primitivos encontramos os fundamentos que permitem pensar o cinema para além do logro realista. Não se pretende, por exemplo, considerar o industrial e inventor Louis Lumière um artista moderno. Mas não se pode negar que os documentários primitivos, no mais das vezes rodados por operadores anônimos, encerram a busca da "beleza passageira e fugaz da vida presente", o caráter daquilo que Charles Baudelaire denominaria Modernidade (2). Logo, o flâneur cinematográfico participa de um fenômeno que comporta tanto o aprofundamento da percepção, em conformidade com o ritmo, a velocidade e o movimento das metrópoles modernas, quanto a destruição do universo concentracionário da sociedade urbano-industrial.
A ambigüidade das relações entre o homem moderno e o ambiente das grandes cidades produz angústia e ansiedade. Talvez por isso, os filmes primitivos elegeram como temas recorrentes a dinamização de objetos e a heroicização de todos os tipos de máquina - locomotivas, bondes, automóveis etc. Nem mesmo o antropomorfismo que por vezes informa a metamorfose de objetos e máquinas em atores nos permite desconsiderar o cinema como partícipe da aventura do avessismo e do desvio que caracteriza as práticas contrárias ao projeto realista-naturalista.
Trata-se de alvejar de morte o caráter antropocêntrico do modelo positivista e de questionar o homem como medida do acontecimento do mundo, de alargar o universo das coisas percebidas e de abrir o inconsciente visual. Trata-se de convergir para o filme realidades e discursos proscritos pela tradição, de forma que o centro implode sob o fluxo incessante de "imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia" (3). Trata-se, enfim, de compreender os documentários primitivos na perspectiva da vertigem que domina a percepção dos espectadores, do mundo que se constitui na espiral do artifício das imagens, do jogo com as realidades que estão à margem, da proliferação das "sombras elétricas" a engendrar a suspeita de toda referencialidade.
Todos os indícios de um transtorno do realismo pela vis cinematográfica, que podemos desvelar nas vues de Lumière, se tornam ainda mais agudos nos filmes fantásticos de Georges Méliès. Neste caso, pensar no avesso do modelo realista-naturalista significa apreender no cinema os paradoxos da arte na cena finissecular. O paradoxo é o reino de ação e a matéria das féeries de Méliès. Objetos imaginários e metamorfoses físicas são forjados pela justaposição e simultaneidade do não-simultâneo e do incompatível. Viagens impossíveis resultam da fusão entre ciência e magia. A apresentação disjuntiva do tempo e do espaço engendra a espacialização do tempo e a dinamização do espaço. A incorporação da matriz teatral desconcerta o comprometimento do cinema com a imitação do real, na medida em que introduz no filme a ostentação, o simulacro e o artifício da representação dramática.
Seja no registro documentário do fugidio e do transitório, seja através da mostragem das ferramentas e das estratégias da ilusão cênica, o filme primitivo transtorna o projeto naturalista pela exposição pública dos paradoxos da representação. Quando "a fantasmagoria foi extraída da natureza" (4), definha o gosto pelo Verdadeiro e podemos habitar os "paraísos artificiais". Quando o cálculo do artifício e das monstruosidades enseja a negação do efeito de realidade, podemos exercitar a rainha das faculdades - a imaginação - contra o credo realista-naturalista. Quando o cinema se afirma como arte, não o faz sem incorporar os paradoxos da modernidade.
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No fim do século XX, ao dom de iludir do cinema acrescentam-se os recursos das novas tecnologias eletrônicas e digitais (chromakey, pintura eletrônica etc.). Tornou-se impossível falar de cinema sem referir-se aos recursos, processos e suportes videográficos e infográficos. Mais do que um simples canal de difusão do cinema, o vídeo coloca em questão o próprio caráter mimético-figurativo da imagem técnica. Através das múltiplas possibilidades de manipulação das imagens eletrônicas entram em colapso a ilusão especular, o efeito de duplicação do real, o modo de representação fotográfica tradicional. Tanto as imagens granulosas e saturadas do vídeo quanto o aspecto híbrido, embricado e metamórfico das figuras numéricas desafiam a linearidade e a natureza essencialmente realista que se atribuiu ao cinema.
À acoplagem do cinema com o vídeo, cujas primeiras experiências remontam aos anos 60, acrescente-se a tecnologia digital e numérica. E assim já não falamos apenas de trucagens e efeitos especiais, nem da proliferação de recursos eletrônicos de pós-produção, nem do cinema em stricto sensu , mas da "formação de uma verdadeira enciclopédia audiovisual da cultura contemporânea, enciclopédia digital" (5). Tomando por objeto as imagens analógicas (fotografia, cinema, vídeo), as máquinas de tratamento digital radicalizam o transtorno do estatuto realista-naturalista do registro fotoquímico e eletrônico, na medida em que afirmam a imagem sem matéria e anunciam a possibilidade do fim da câmera e do objeto de referência.
O emprego das caixas pretas digitais (ADO, Ampex Digital Optics) nas ilhas de edição para realizar numerosos efeitos visuais, bem como dos programas de computação gráfica (CAD, Computer Aided Design) na criação e visualização de objetos ou modelos, para além de disseminar e popularizar um novo vocabulário - pixel , frame , imagem digital, imagem de síntese, virtual ou numérica, light pen (caneta ótica), telecinagem, cinevídeo, wire frame (estrutura de arame), modelagem etc. -, implica em oferecer à tecnologia analógica do cinema recursos, processos e suportes outros, capazes de materializar todos (ou quase todos) os produtos da imaginação. "A produção de imagens", afirma Ivana Bentes, "deixa de ser um efeito de duplicação e representação" (6) para se transformar na digitalização e processamento em memórias de máquinas numéricas de toda imagerie analógica tradicional - e, por fim, na produção de imagens libertas da referência ao real preexistente.
As perspectivas anunciadas por esse hibridismo da indústria do audiovisual são múltiplas e encontram-se em aberto. Contudo, não se trata de decretar a morte do cinema, mas de acrescentar aos muitos cinemas um outro (talvez alguns outros): um cinema eletrônico, um cinema híbrido, de sínteses (cinema + vídeo, cinema + informática), um expanded cinema ("cinema expandido"), na feliz expressão de Gene Youngblood citada por Arlindo Machado (7). Seja qual for o adjetivo que se lhe possa atribuir, experimentamos um cinema empenhado no questionamento da sua história, da sua linguagem e do seu estatuto técnico e estético. Os modos cinematográficos tradicionais de produção, representação e narração há muito entraram em crise, seja pela elevação dos custos de produção, pela diáspora do público ou pela desconstrução crítica da ilusão especular e indicial da imagem fílmica (8).
Mas também não devemos minimizar o papel das tecnologias eletrônicas e infográficas na agudização da crise do cinema, na medida em que trouxeram para o âmbito da produção audiovisual novos paradigmas perceptivos, estéticos, plásticos e técnicos, os quais estão a exigir do cinema o vigor e a potência de reinventar-se para enfrentar os desafios do novo milênio. Nesta fase experimental, o cinema eletrônico não está livre dos excessos, dos maneirismos, dos retrocessos, do virtuosismo e do virtualismo vazios. Mas como ocorreu na passagem do cinema mudo ao sonoro, não poucos realizadores (Akira Kurosawa, Francis Ford Coppola, Wim Wenders, Peter Greenaway, dentre outros) já demonstram os caminhos plurais do acolhimento das novas tecnologias, produzindo filmes que respondem às novas configurações da percepção e da sensibilidade na era do virtual. Sem jamais esquecerem que "o cinema não pode ser apenas virtual, mas também (ou sobretudo) virtuoso" (9). Nas palavras de Arlindo Machado em Pré-cinemas & pós-cinemas :
Devemos, portanto, considerar o cinema não como um modo de expressão fossilizado, paralisado na configuração que lhe deram Lumière, Griffith e seus contemporâneos, mas como um sistema dinâmico, que reage às contingências de sua história e se transforma em conformidade com os novos desafios que lhe lança a sociedade. Como tal, ele vive hoje um dos momentos de maior vitalidade de sua história, momento esse que podemos caracterizar como o de sua radical reinvenção. A transformação por que passa hoje o cinema afeta todos os aspectos de sua manifestação, da elaboração da imagem aos modos de produção e distribuição, da semiose à economia (10).
As fraturas e torções operadas no cinema pela acoplagem com o vídeo e a infografia talvez nos permitam retomar caminhos que foram obliterados pela precoce hegemonia de determinados modos de narrativa, de representação do tempo e do espaço, de produção, de montagem, de interpretação, de sintaxe e de semântica fílmicas. Tais tecnologias abalam os paradigmas tranquilizadores da ordem cinematográfica, radicalizando o desmonte do écran platonique : não mais a sedução especular do espectador, mas a afirmação da consciência de linguagem, do filme como artifício, como discurso produzido e controlado. Mais do que o remake, o cybercinema aponta para o refake , trocadilho criado por Sérgio Augusto para "definir um filme falsificado ou adulterado por uma, digamos, prótese visual" (11).
Aos que criticam o estatuto fake do cinema digital, podemos apenas dizer que - ao menos nas obras em que tal característica se realiza em sentido amplo, no que ela significa em termos de interatividade, potencialidade e complexidade - este vem exacerbar em muito o enfrentamento dos paradoxos engendrados no âmbito do cinema moderno. À estética realista-naturalista, ao perspectivismo do olho-câmera e à impressão de realidade, o pós-cinema contrapõe o paroxismo do artifício, as metamorfoses das imagens numéricas, o avesso da cena da representação. E este novo mundo das imagens eletrônicas e digitais está a exigir outros modos de percepção, outras sensibilidades, outros imaginários, outras estéticas - decerto um outro artigo, capaz de pensar o filme como falsificação, como adulteração. Para além da ilusão naturalista, o cinema como artifício.
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Como Dioniso, duas vezes nascido, no final do século XX o cinema reencena os paradoxos de sua primeira gênese. Não se trata, no entanto, de uma simples repetição, pois no eterno retorno não é o mesmo que retorna, mas as diferenças. Em questão, ainda o embate entre a miragem naturalista e a estética artificialista. Embora pretendêssemos que, mobilizadas pela arte moderna, as forças centrífugas do devenir fou do real tivessem ferido de morte a lógica positivista da representação, ela retorna, revigorada pelo agenciamento das tecnologias eletrônicas e digitais em benefício da constituição de um modelo capaz de dar conta da complexidade e heterogeneidade do real. Sob a rubrica do simulacro e do virtual, do virtuosismo técnico e da hiper-realidade, ocultam-se os epígonos da arte imitativa, empenhados no cálculo e no exorcismo dos acontecimentos do mundo através de uma imagerie que, mais do que a simples reprodução da realidade, acaba por engendrar, com base na alta resolução e na excessiva exatidão da forma-imagem, o domínio do atual pelo virtual, da coisa pelo signo, da representação pela apresentação instantânea.
Ao contrário daqueles que, recorrendo a máquinas digitais e numéricas, se dedicam a co-produzir simplesmente um sucedâneo sensível do real, a duplicar as aparências do mundo em imagens homogeneizadas, diretores e videastas como Peter Greenaway e Zbigniew Rybczynski investem na produção de imagens que transtornam os paradigmas da arte mimética. Em A última tempestade (Prospero's books, 1991), de Greenaway, por exemplo, temos um filme-palimpsesto que contrapõe ao efeito de realidade uma poética do vago e do indecidível.
Urdido a partir da acoplagem entre os registros fotoquímicos do cinema e as imagens videográficas e sintéticas, A última tempestade opera sobre o contínuo deslocamento das funções e finalidades de personagens e sons, de cores e sinais gráficos, de figuras e palavras, comprometendo o caráter representativo convencional dos signos. Nos termos da Semiótica peirceana, os procedimentos adotados por Greenaway corresponderiam ao questionamento do caráter indicial-analógico da imagem cinematográfica, na medida em que privilegiam os quase-signos - ícones e qualissignos (12) -, saturando o código fílmico com elementos das linguagens plástica e musical, literária e teatral. Trata-se de investir no abalo da indicialidade, na iconização do simbólico, de modo a abolir a regra que determina o signo interpretante e, por conseqüência, restringe a semiose. Assim, o filme ele mesmo se torna um ícone do cinema por vir, anunciando outras possibilidades de percepção e conhecimento do objeto, como explica Charles Sanders Peirce:
... uma importante propriedade peculiar ao ícone é a de que, através de sua observação direta, outras verdades relativas a seu objeto podem ser descobertas além das que bastam para determinar sua construção. (...) Dado um signo convencional ou um outro signo de um objeto, para deduzir-se qualquer outra verdade além da que ele explicitamente significa, é necessário, em todos os casos, substituir esse signo por um ícone (13).
Neste sentido, Greenaway concebe A última tempestade como um artifício que coloca em questão os símbolos convencionados da linguagem cinematográfica. Decerto, os diretores do cinema moderno já haviam abalado os pilares da narrativa clássica, dos modos de produção, da sintaxe e semântica fílmicas, do estatuto do espectador. Em Greenaway o que está em questão é a montagem visual consecutiva, o cinema como arte seqüencial, sendo que a ruptura se dá em grande parte graças aos recursos e processos da imagem eletrônica e digital. Trata-se não apenas do redimensionamento da montagem no interior do plano, conforme elaborada por Sergei Eisenstein (com os tributos devidos às artes plásticas), mas principalmente da incrustação de uma imagem dentro de outra, de forma a romper com a centralidade ou a ordem do discurso fílmico.
Instabilidade, incompletude, desmesura, polidimensionalidade, metamorfose, complexidade, descentramento, distorção e irregularidade são apenas alguns dos termos que devemos considerar diante de uma obra que já não adere à ordem do cinema linear, nem se entrega ao caos da imagerie desenfreada e redundante. O quase-filme, o quase-signo do cinema em que se converte A última tempestade talvez explique a sua indecidibilidade entre a Renascença e o Barroco, entre a tradução literal e a transcriação da obra shakespereana, entre o épico e o dramático, entre ser cinema e ser lugar de passagem de todas as linguagens. De qualquer forma, não mais o filme-documento, mas definitivamente o filme-simulacro.
A estética artificialista do diretor inglês, além de trabalhar sobre os diversos modos de ser da imagem no âmbito da noosfera audiovisual contemporânea, acolhe a queda dos valores da ordem, da simetria e da totalidade e investe contra as noções de duplicação e representação. A recorrência à retórica metamórfica do vídeo e ao efeito de obscuridade das imagens sintéticas, bem como às poéticas do fragmento e do detalhe, afirma o filme como o locus privilegiado da convergência de linguagens, de modo que ali temos um possível de formas, o processo no qual vislumbramos a linguagem de um outro cinema nascendo.
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