Arquivos e documentos, como dizem os franceses, «ça va de soi»! Essa constatação é tão mais importante quanto sabemos que arquivos e documentos são os fundamentos do saber histórico, mas, também, da memória da nação e da construção do Estado. A consciência de que a história faz-se por meio de documentos teve, ao longo do tempo, várias representações. No século XIX, fundou-se o primado dos arquivos no trabalho do historiador, primado inicialmente teorizado por Charles Seignobos e Charles-Victor Langlois. Na mesma época, construía-se, na França, a profissão universitária do historiador – que veio a ser copiada no resto do mundo –, enquanto os últimos retoques eram dados na organização institucional dos arquivos. A história apresentava-se então como uma reunião de factos cuidadosamente exumados pelo paciente trabalho dos investigadores.
O surgimento da chamada Escola dos Annales, logo depois da Primeira Guerra Mundial, levou à crítica do intrusivo monopólio dos documentos. «O texto, dizia Lucien Febvre, numa aula inaugural, em 1933, no Collège de France, sem dúvida; mas todos os textos, e não somente textos». O conhecido historiador não propunha a eliminação absoluta dos arquivos sobre os quais, ontem como hoje, se funda o conhecimento da disciplina, mas sim alargar a colecta, renovando o repertório documental. A partir dos anos 30, a noção de fonte para conhecimento do passado passou a incorporar as literaturas erudita e popular, os jornais, além da música, do cinema, da fotografia, etc. Punha-se fim ao método simplista que deduzia ou extraía, mecanicamente, factos de fontes. A reflexão epistemológica dos investigadores colocou em evidência o questionamento do passado, questionamento indissociável, sublinhe-se, da busca de novas fontes documentais e de novas maneiras de usar os arquivos.
A bela pesquisa realizada por Paulo de Assunção e José Eduardo Franco vem ao encontro desse novo questionamento. Ela é a prova da competência e erudição dos que usaram velhos testemunhos para novas interrogações. O trabalho aqui apresentado demonstra que os historiadores foram capazes de resgatar um importante documento, o último Regimento do Santo Ofício português, datado de 1774, permitindo doravante aos seus pares trocar a acumulação pela variação de escalas de observação, extraindo da exploração deste fundo documental, ou de documentos restritos a ele afectos, matéria para reconstituir e compreender toda uma sociedade.
As Metamorfoses de um Polvo motivam o leitor por meio de várias perguntas que aí são respondidas. Como se deu o estabelecimento da Inquisição Moderna em Portugal? Quais as justificações da sua criação e existência? Qual o alcance de seus tentáculos? Quais as diferenças e semelhanças entre os regimentos de 1640 e 1774? Como funcionou o controlo sobre a «limpeza da raça»? Como pano de fundo, instala a grande questão que não apenas atravessou a era Moderna, mas que continua a interpelar-nos: como se fabrica a intolerância e o ódio religioso ou racial, intolerância que fez com que os inquisidores enviassem centenas de pessoas para a fogueira, sob pretexto do amor e da compaixão? Sabemos que o tecido simbólico que cobriu, por tanto tempo, o temido Tribunal provocou mudanças nas estruturas mentais, económicas e sociais, atingindo rincões longínquos do império. O texto em questão convida o leitor a observar o documento como espaço social e cultural em grande parte desconhecido, evoluindo com os tempos de ruptura, tensão e mutação pelos quais passou. Exploradores destes tempos e espaços, ambos os autores colocam a sua inteligência histórica ao serviço de uma reflexão geral sobre o passado. No mundo inédito que reconstroem, por meio do documento, mundo onde ombreia a turbulência sem fim de variados episódios, mundo de violência institucional e política, mundo de meandros jurídicos, a história convida não apenas à interpretação do Outro e do seu passado, mas de nós mesmos, hoje.
Para além da contribuição inédita e magnífica sobre a história do mundo luso-americano, este livro é, certamente, uma homenagem aos pesquisadores que, na maior parte das vezes anónimos, se dedicam ao ofício de observar restos, marcas e fragmentos do passado, conscientes dos limites da documentação para uma conversa com os mortos – como a denominou Robert Darnton.
Mary Del Priore
(Historiadora, Professora da PUCRio e Coordenadora Geral do Arquivo Nacional da Casa Civil da Presidência da República do Brasil)
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