Não sendo historiador de profissão nem especialista da obra do Padre Fernando Oliveira, só o estudo da cultura portuguesa, o reconhecimento do inegável estímulo contido na edição da presente obra e a fraterna estima intelectual que nutro por José Eduardo Franco me podem creditar como apresentador desta obra. Ao aceitar com muito gosto o desafio estou, antes de mais, a render testemunho pela qualidade científica e novidade presentes neste estudo, mas bem lembrado de Aveiro, a minha pátria profissional, e terra onde Fernando Oliveira terá sido gerado, a fazer fé em leitura que se pretende correcta dos documentos.
Registe-se, antes de mais, o prazer intelectual, a riqueza de informação e a deslumbrante viagem pela cultura portuguesa que nos proporciona a leitura atenta deste trabalho.
Comecemos pela capa. Dá-nos uma informação - A Primeira História de Portugal - que carece de ser completada pelo que, a seguir ao título, podemos ler na página de rosto: "Estudo e edição crítica da História de Portugal e do Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal de Fernando Oliveira". Destes elementos transcritos e anotados é dito que vêm em anexo.
Fernando Oliveira é autor de duas obras dadas à estampa ainda em vida: Grammatica da Lingoagem Portuguesa, publicada em Lisboa, no ano de 1536, e Arte da Guerra do Mar , publicada em Coimbra, no ano de 1555. Deixou, além disso, preciosos textos manuscritos relacionados com assuntos náuticos, designadamente o texto latino da Ars Nautica (1570) cujo manuscrito pertence à holandesa biblioteca da Universidade de Leiden, e o Livro da Fabrica das Naus , de cerca de 1580, editado pela primeira vez por Henrique Lopes de Mendonça, em 1898.
Este Fernando Oliveira apresenta-se como nativo de Aveiro, tanto no Processo Inquisitorial transcrito por Lopes de Mendonça, como na Ars Nautica , onde declara: "Aveiro é o lugar onde me geraram meus pais, da Ordem de Cavalaria, de costumes modestos e de fortuna vulgar; mas o recém-nascido soltou os primeiros vagidos na Gestosa; a Igreja matriz de Columba [ Couto do Mosteiro ] deu-lhe o baptismo da fé; Fernando de Oliveira foi-me posto como nome; como oliveira produtiva dou frutos dignos ao navegante."
Vários indicadores concorrem para a identificação deste padre Fernando Oliveira com o "lic.º Fernando Oliveira, capelão dos reis de Portugal de seu tempo", segundo se lê no incipit da História de Portugal , o qual figura como autor de alguns manuscritos existentes no fundo português da Biblioteca Nacional de Paris, nomeadamente os que têm os títulos de História de Portugal e Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal . Sabe-se acerca deles, que são provenientes da biblioteca do Cardeal Mazarino e que foram incorporados na Biblioteca Real de França, em 1668. Pouca atenção mereceram até ao século XIX e continuaram inéditos até á publicação agora preparada por José Eduardo Franco. É a primeira edição integral dos dois textos, uma edição subordinada ao propósito de tornar acessível ao leitor actual escritos do século XVI, procedendo a uma transcrição rigorosa, assente em critérios claros e esclarecedores, tanto em relação à escrita como à semântica textual.
Os dois trabalhos historiográficos estão entre si tematicamente articulados e foram elaborados muito tardiamente, quando o seu autor já era um ancião com mais de setenta anos. Talvez isso explique que tenham ficado obras inacabadas. O Livro da Antiguidade parece anterior à História de Portugal da qual apresenta o esboço, uma espécie de primeira versão ou tentativa. Eduardo Franco chega mesmo a designá-lo como "obra-rascunho" (1). Quanto aos quatro livros da História de Portugal , remontam aos tempos diluvianos e prolongam-se apenas até D. Sancho, filho de D. Afonso Henriques, interrompendo-se aí inesperadamente a narrativa.
Os dados reunidos por Fernando Oliveira, no plano estrito da informação histórica, rigorosa e original, podem considerar-se modestos. Mas o modo como foram trabalhados para fundamentarem o ideal de uma identidade portuguesa cuja autonomia e independência se impõem como imperativo do querer do povo e de uma vocação divina, fazem da obra de Fernando Oliveira uma expressão notável da mais nobre e politicamente funcional historiografia portuguesa.
Sem tempo nem espaço para acompanhar os seis suculentos capítulos introdutórios, onde se discutem questões tão diversas como a unidade e variedade da obra de Fernando Oliveira, a tipologia e hierarquia das fontes utilizadas, a posição em face da crise sucessória de 1580, ou a ideografia de Portugal, tarefa que fica para repasto intelectual de leitores aplicados, deter-nos-emos, por momentos, no conceito de história aqui praticado, na exaltação da identidade nacional com a sua demarcação em relação a Castela, e ainda em algumas curiosidades etimológicas.
O carácter singular da obra histórica de Fernando Oliveira aparece no título História de Portugal , pelo qual optou o autor, depois de hesitações de que os manuscritos guardam vestígios. É, desse modo, a primeira História de Portugal, porque nenhum outro texto adoptou antes esse nome. Mas é a primeira História de Portugal, sobretudo, porque rompe com a tradição da escrita cronística, e institui uma cultura nacional de defesa ideológica da especificidade portuguesa, em que se procura no passado o registo e documento do que aconteceu e, mais ainda, a razão e o argumento para o que deve continuar a ser a nação portuguesa, livre, soberana, independente.
História providencialista que, colocando Deus na origem da nação, inscreve a respectiva história sob o signo do poder e protecção do Criador que a governa com desvelo e lhe garante permanência até à consumação dos tempos.
História mítica , em que os dados mais frágeis do ponto de vista probatório servem para tecer narrativas gloriosas em que um povo escasso consegue atravessar a noite dos milénios, igual a si mesmo, livre e autónomo.
História apologética e polémica que faz da rememoração do passado um campo de batalha e do historiador um soldado que se bate pela causa da perenidade de Portugal independente, numa época em que se havia instalado a crise dinástica provocada pelo desaparecimento de D. Sebastião, sem descendência.
Estamos em presença de uma concepção de história em que, através da narrativa de acontecimentos mais ou menos remotos, se discutem as questões mais candentes da época em que o autor está a viver. E Fernando Oliveira não se inibe diante de partidos contrários, assumindo com frontalidade e clareza o combate pelo futuro do reino independente de Portugal.
Esta obra enquadra-se plenamente na transição entre a historiografia humanístico-renascentista e a corrente apologético-autonomista, de promissor futuro em Portugal, como se pode ver em A Literatura Autonomista sob os Filipes de Hernani Cidade. Se o conhecimento das figuras ilustres e dos acontecimentos assinaláveis do passado deve servir de lição moral e de modelo para o presente é porque se acredita que a verdade mais genuína de um povo reside na sua antiguidade e desta se espera que sirva de fundamento inabalável e de garantia permanente para aguentar as contrariedades e imprevistos dos homens e dos tempos.
Tudo converge no sentido de se dever atribuir à situação dramática provocada pela crise de sucessão dinástica de 1580 o contexto próprio para o desencadeamento da reflexão sobre a História de Portugal. É na hora crepuscular, em que o futuro nacional se afigura mais incerto do que nunca, que Fernando Oliveira se entrega à meditação sobre o antiquíssimo e glorioso passado da nação portuguesa. E se o perigo de o reino de Portugal cair sob o domínio de Espanha se afigura iminente, toda a argumentação histórica vai consistir em mostrar que uma situação assim contraria a natureza do reino, os factos antiquíssimos da história e o próprio desígnio de Deus, garante supremo da existência perene de Portugal. Temos, pois, uma visão épica e profética em que o passado está repleto de lições sobre o futuro. Por exemplo, D. Afonso Henriques em vez de aparecer com o título de primeiro rei, vem apresentado como restaurador do reino.
É neste contexto que adquire todo o relevo o profundo anticastelhanismo do nosso autor. Havendo a Reconquista Cristã do território peninsular sido obra de colaboração de povos vários: asturianos, leoneses, portugueses e castelhanos, foi logo objecto de apropriação por parte de castelhanos que, de modo interesseiro e tirânico, quiseram impor o seu domínio sobre os outros. A colaboração deles não é generosa e terá sido cúmplice com as incursões muçulmanas em território português. Nada de bom há a esperar de tais vizinhos que Fernando Oliveira compara à ervilhaca.
O autor esteve do lado certo da história política: recusou a dominação filipina e garantiu profeticamente que era fundada a sua fé na restauração da autonomia e independência de Portugal.
Há apontamentos curiosos que, no decorrer da leitura, nos vão surpreendendo e divertindo. Um deles prolonga a desafeição já referida pelos nossos vizinhos castelhanos. Depois de referir que Plínio que fala de Bardúlia, nome antigo dado ao espaço territorial ocupado por Castela, Fernando Oliveira chama "bárdulos" a homens precipitados e irreflectidos e "bardularia" ao comportamento feito de aldrabice e mentira.
Outra curiosidade é, por exemplo, a explicação náutica dos termos "rumo" e "arrumar". Essa divagação etimológica encontra-se no Livro da Fábrica das Naus, onde se lê que rumo "significa espaço em que se pode alojar um tonel. E daí parece que tomou nome: porque aquilo que nas casas em terra chamamos alojar, chamam os marinheiros nos navios arrumar." (2).
São algumas amostras apenas do muito valor e interesse da obra agora editada. Com ela, os autores e editor enriqueceram o conhecimento colectivo da memória nacional e trouxeram para mais perto de nós a lição do carácter exemplar presente na arte de ser português que o Padre Fernando Oliveira cultivou. Luís Machado de Abreu
(Universidade de Aveiro) |