EÇA DE QUEIRÓS
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O tio Francisco, que fazia a barba à janela, com o lenço da Índia amarrado na cabeça, voltou-se e, pondo os óculos, fitou-o. A sua carteira lá está. Fique - e acrescentou com um gesto decisivo - solteiro. Tio Francisco, oiça-me!... Solteiro, disse eu - continuou o tio Francisco, dando o fio à navalha numa tira de sola. Não posso. Então, rua! Macário saiu, estonteado. Chegou a casa, deitou-se, chorou e adormeceu. Quando saiu, à noitinha, não tinha resolução, nem idéia. Estava como uma esponja saturada. Deixava-se ir. De repente, uma voz disse de dentro de uma loja: Eh! pst! olá! Era o amigo do chapéu de palha: abriu grandes braços pasmados. Que diacho! Desde manhã que te procuro. E contou-lhe que tinha chegado da província, tinha sabido a sua crise e trazia-lhe um desenlace. Queres? Tudo. Uma casa comercial queria um homem hábil, resoluto e duro, para ir numa comissão difícil e de grande ganho a Cabo Verde. Pronto! - disse Macário. Pronto! Amanhã. E foi logo escrever a Luísa, pedindo-lhe uma despedida, um último encontro, aquele em que os braços desolados e veementes tanto custam a desenlaçar-se. Foi. Encontrou-a toda embrulhada no seu xale, tiritando de frio. Macário chorou. Ela, com a sua passiva e loura doçura, disse-lhe: Fazes bem. Talvez ganhes. E ao outro dia Macário partiu. Conheceu as viagens trabalhosas dos mares inimigos, o enjôo monótono num beliche abafado, os duros sóis das colônias, a brutalidade tirânica dos fazendeiros ricos, o peso dos fardos humilhantes, as dilacerações da ausência, as viagens ao interior das terras negras e a melancolia das caravanas que costeiam por violentas noites, durante dias e dias, os rios tranqüilos, de onde se exala a morte. Voltou. E logo nessa noite a viu a ela, Luísa, clara, fresca, repousada, serena, encostada ao peitoril da janela, com sua ventarola chinesa. E ao outro dia, sofregamente, foi pedi-la à mãe. Macário tinha feito um ganho saliente - e a mãe Vilaça abriu-lhe uns grandes braços amigos, cheia de exclamações. O casamento decidiu-se para daí a um ano. Por quê? - disse eu a Macário. E ele explicou-me que os lucros de Cabo Verde não podiam constituir um capital definitivo: eram apenas um capital de habilitação. Trazia de Cabo Verde elementos de poderosos negócios: trabalharia, durante um ano, heroicamente, e ao fim poderia, sossegadamente, criar uma família. E trabalhou: pôs naquele trabalho a força criadora da sua paixão. Erguia-se de madrugada, comia à pressa, mal falava. À tardinha ia visitar Luísa. Depois voltava sofregamente para a fadiga, como um avaro para o seu cofre. Estava grosso, forte, duro, fero: servia-se com o mesmo ímpeto das idéias e dos músculos: vivia numa tempestade de cifras. Às vezes Luísa, de passagem, entrava no seu armazém: aquele pousar de ave fugitiva dava-lhe alegria, fé, reconforto para todo um mês cheiamente trabalhado. |