EÇA DE QUEIRÓS
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Agora queria ver lenços da Índia. E o caixeiro foi buscar um pequenino pacote daqueles lenços, acamados e apertados numa tira de papel dourado. Macário, que tinha visto naquela visita uma revelação de amor, quase uma declaração, esteve todo o dia entregue às impaciências amargas da paixão. Andava distraído, abstrato, pueril, não deu atenção à escrituração, jantou calado, sem escutar o tio Francisco que exaltava as almôndegas, mal reparou no seu ordenado que lhe foi pago em pintos às três horas, e não entendeu bem as recomendações do tio e a preocupação dos caixeiros sobre o desaparecimento dum pacote de lenços da Índia. É o costume de deixar entrar pobres no armazém - tinha dito no seu laconismo majestoso o tio Francisco. - São 12$000 réis de lenços. Lance à minha conta. Macário, no entanto, ruminava secretamente uma carta, mas sucedeu que ao outro dia, estando ele à varanda, a mãe, a de cabelos pretos, veio encostar-se ao peitoril da janela, e neste momento passava na rua um rapaz amigo de Macário, que, vendo aquela senhora, afirmou-se e tirou-lhe, com uma cortesia toda risonha, o seu chapéu de palha. Macário ficou radioso: logo nessa noite procurou o seu amigo, e abruptamente, sem meia-tinta: Quem é aquela mulher que tu hoje cumprimentaste defronte do armazém? É a Vilaça. Bela mulher. E a filha? A filha? Sim, uma loura, clara, com um leque chinês. Ah! Sim. É filha. É o que eu dizia... Sim, e então? É bonita. É bonita. É gente de bem, hem? Sim, gente de bem. Está bom. Tu conhece-las muito? Conheço-as. Muito não. Encontrava-as dantes em casa de D. Cláudia. Bem, ouve lá. E Macário, contando a história do seu coração acordado e exigente e falando do amor com as exaltações de então, pediu-lhe, como a glória da sua vida, que achasse um meio de o encaixar lá. Não era difícil. As Vilaças costumavam ir aos sábados à casa de um tabelião muito rico na rua dos Calafates: eram assembléias simples e pacatas, onde se cantavam motetes ao cravo, se glosavam motes e havia jogos de prendas do tempo da senhora D. Maria I, e às 9 horas a criada servia a orchata. Bem. Logo no primeiro sábado, Macário, de casaca azul, calças de ganga com presilhas de trama de metal, gravata de cetim roxo, curvava-se diante da esposa do tabelião, a sr.ª D. Maria da Graça, pessoa seca e aguçada, com um vestido bordado, um nariz adunco, uma enorme luneta de tartaruga, a pluma de marabout nos seus cabelos grisalhos. A um canto da sala já lá estava, entre um frufru de vestidos enormes, a menina Vilaça, a loura, vestida de branco, simples, fresca, com o seu ar de gravura colorida. A mãe Vilaça, a soberba mulher pálida, cochichava com um desembargador de figura apopléctica. O tabelião era um homem letrado, latinista e amigo das musas; escrevia num jornal de então, a Alcofa das Damas: porque era sobretudo galante, e ele mesmo se intitulava, numa ode pitoresca, moço escudeiro de Vênus. Assim, as suas reuniões eram ocupadas pelas belas-artes - e nessa noite, um poeta do tempo devia vir ler um poemeto intitulado Elmira ou a vingança do veneziano!... Começavam então a aparecer as primeiras audácias românticas. As revoluções da Grécia principiavam a atrair os espíritos romanescos e saídos da mitologia para os países maravilhosos do Oriente. Por toda a parte se falava no paxá de Janina. E a poesia apossava-se vorazmente deste mundo novo e virginal de minaretes, serralhos, sultanas cor de âmbar, piratas do Arquipélago, e salas rendilhadas, cheias de perfume do aloés onde paxás decrépitos acariciam leões. - De sorte que a curiosidade era grande - e, quando o poeta apareceu com os cabelos compridos, o nariz adunco e fatal, o pescoço entalado na alta gola do seu fraque à Restauração e um canudo de lata na mão - o sr. Macário é que não experimentou sensação alguma, porque lá estava todo absorvido, falando com a menina Vilaça. E dizia-lhe meigamente: |