P: Embaixador Dário Castro Alves: o que o motivou
a realizar esse trabalho de tradução para o português da obra Eugênio
Onegin, de Pushkin?
R: Na minha formação pesa um certo substrato de cultura russa, que se
acentuou com minha permanência na Embaixada brasileira em Moscou, de
1962 a 1965. Era então minha mulher Dinah Silveira de Queiroz, escritora
profissional, que mantinha um amplo relacionamento com escritores e
artistas soviéticos de então. Ela achou que eu devia aprofundar minha
sensibilidade pela vida e literatura da Rússia, procurando conhecer
melhor as expressões literárias russas.
P: E porque Pushkin?
R: Porque notávamos que era um escritor clássico,
que todos, sem exceção, todos na Rússia veneram, conhecem e sabem algo
dele, exaltam sua personalidade. A presença de Pushkin na formação
cultural do povo russo é ainda maior que Shakespeare na Inglaterra, ou
que Camões em Portugal.
P: E porque Eugênio Onegin?
R: Essa é uma obra sem igual. Um personagem literário de fortíssima
presença, tanto no povo de sua época como na posteridade. Tem um lugar
cimeiro na minha cultura pessoal, é a obra mais conhecida de Pushkin e
ainda não havia recebido uma tradução em português, embora houvesse em
dezenas de outras línguas. Fixou-se em mim a idéia “pushkiniana” ainda
na década dos 60. Dinah insistia muito para que eu me convertesse num
escritor, ao que eu reagia dizendo ser, antes de tudo e sobretudo, um
funcionário diplomático. Quando Dinah, gravemente doente, se preparava
já para deixar esse mundo, comecei a aplicar suas idéias e seus
pensamentos, e comecei a me preparar para escrever. Minha segunda
mulher, Rina, foi também de imensa ajuda no meu esforço de me tornar um
homem de letras, um escritor.
P: Pushkin é sua estréia na área literária?
R: Não. Minha estréia se deve a Eça de Queiroz. Notava eu que muitos e
muitos brasileiros que passavam por Lisboa, onde eu servia como
Embaixador, sabendo que eu tinha interesses em Eça de Queiroz me vinham
perguntar onde se deram tais e tais cenas, presentes nos grandes
romances de Eça – Os Maias, O Primo Basílio, A tragédia da Rua das
Flores, A Capital e outros. Perguntavam tudo, minuciosamente. Dinah
então me assinalou que seria um tema interessante, considerando que Eça
era uma personalidade viva na sensibilidade brasileira. Eça era Lisboa,
e ninguém a decantou mais fortemente como escritor do que ele. Além do
mais havia o lado propriamente brasileiro. O Brasil estava atrás de toda
a vida lisboeta. Raspando-se um pouco as velhas paredes de Lisboa, se dá
no Brasil. Isso é um fato.
P: O senhor escreveu então uma trilogia?
R: O primeiro foi Era Lisboa e chovia, um roteiro cultural, histórico,
literário e sentimental construído a partir da obra de Eça de Queiroz.
Modéstia à parte, trata-se de um livro não superado quanto ao tema. A
longínqua explicação para o título vem de Alfredo Valadão, eciano
fanático, que adorava explicar o sentido profundo, profundíssimo, de
porque Eça escolhera falar de Lisboa. E naquele trecho de A capital, em
que o grande autor registra a fase altamente irônica de que “era Lisboa
e chovia”, queria dizer o seguinte: Fradique vinha de Paris,
granfinérrima cidade das luzes, e chegava à suja estação de Santa
Apolônia, em Lisboa, em lúgubre madrugada. Surge então a frase que ficou
famosa, em que dizia “além de ser Lisboa, ainda chovia”. Era, pois, o
fim...
P: E os outros dois volumes?
R: Era Porto e entardecia, listando todas as bebidas mencionadas por
Eça, do absinto à zurrapa. E por fim Era Tormes e amanhecia, um completo
dicionário gastronômico cultural, com o nascimento literário de Eça de
Queiroz na região do D´Ouro.
P: E de Eça a Pushkin...
R: Exatamente. O amor pelos melhores padrões de escritores fez essa
transição. Pushkin era o maior na literatura russa, como, em outros
planos, era o maior da escritura portuguesa o nosso Eça.
P: Quais as dificuldades na tradução desse romance em verso?
R: Enormes. A intimidade com certas frases, certos conceitos, me
escapava. Mas pedi socorro a grandes amigos russos, cultores de Pushkin,
sobre o significado de determinadas expressões, a essência das palavras.
Alguns consultores foram, em primeiríssimo lugar, Olga Ovtcharenko, do
Instituto Gorki, e Marina Kosarik, da cátedra Camões na Universidade
Lomonosov, de Moscou, além de tantos outros. Bons dicionários e boas
combinações de instrumentos de pesquisa também colaboraram. Pelejei
muito, mas acho que consegui algo, graças também aos três anos que
passei em Moscou, que me trouxeram o interesse vivo em temas como a
descrição da natureza física, abundante em Pushkin, a complexidade da
alma russa, o estilo de vida do povo russo. Dinah dizia sempre que os
regimes ficavam “na periferia do ser humano”. Todas as reações e maneira
de ser do cidadão russo que conhecemos estavam, por exemplo, em Tchekov.
Pouco importava se esse russo era do fim do século XIX ou se era russo
dos tempos da administração por regime comunista.
P: Quanto tempo o senhor ocupou nesse trabalho?
R: Levei nove anos. Não posso dizer que todos maciçamente dedicados a
Pushkin, mas era uma preocupação constante, um quase pesadelo. Para os
travesseiros levava sempre notinhas, para fechar as rimas que faltavam.
Com o tempo fui “matando” alguns truques e mistérios na produção, que é
mais viável do que se pensa, mas com muito afinco, trabalho e
consciência.
P: Qual sua expectativa para o livro?
R: O brasileiro do trópico entenderá perfeitamente o Pushkin de Onegin.
Não tenho dúvidas disso. Os estudiosos e interessados na cultura russa,
no Brasil, vão conhecer uma Rússia cheia de complexidade. Em muitas
cenas os personagens vão e voltam, empacam, seguem à frente, raciocina,
deixam um rastro de inquietação e indefinições. Por exemplo, as
inquietações existenciais sentidas por Onegin após matar em duelo o
amigo Vladimir Lenski, seu então futuro cunhado. Uma curiosidade: a
morte de Lenski como que antecipa o verdadeiro duelo mortal contra
D´Antès, no qual Pushkin iria perder a própria vida. |