Danyel Guerra nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, Brasil. Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto é autor dos livros Tomás Gonzaga-Em Busca da Musa Clio (2004), Amor, Città Aperta (2008), O Céu Sobre Berlin (2009), Excitações Klimtorianas (2012), O Apojo das Ninfas (2014), Oito e demy (2015) e Fernando de Barros-O Português do Cinemoda (2016)

Mamãe, eu quero  Carne...val

“Daí a ociosidade que devora os dias, pois os excessos no amor
exigem descanso e refeições reparadoras. Daí, esse ódio pelo
trabalho que obriga essas pessoas a procurarem meios rápidos
de arranjar dinheiro.”
Honoré de Balzac

Pourquoi filmez-vous? Convidado a participar num painel do diário francês Libération, Joaquim Pedro de Andrade enunciou algumas das motivações que o levaram a trocar a Física pelo Cinema. P’ra começo de conversa, ele garantiu que pegava numa câmera, antes de mais, “para chatear os imbecis.” Quase no final, lançando mão do megafone, conclamou. “E para insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro d’água no escuro do cinema.” 

Indícios do acinte certeiro e da provocação afiada com que respondeu ao Lib podem ser percebidos e detetados no percurso de sua filmografia, inaugurada em 1959 com um par de curtas, perfis biográficos do poeta Manuel Bandeira, seu padrinho de crisma, (O Poeta do Castelo) e do sociólogo Gilberto Freyre (O Mestre de Apipucos). Na tela do Cinema Novo (CN) brasileiro é de sua lavra uma das carreiras que mais se deixou impregnar por uma tripla constância. A de ser politicamente consequente, esteticamente impressiva e eticamente procedente. Um percurso (quase) sem mácu…la, fatalmente interrompido aos 56 anos, quando preparava uma adaptação antropofágica de Casa Grande & Senzala (1933), a magna obra de Freyre.

Nesse tripé de conceitos se apoia, firme como um rochedo, o estranho Macunaíma (1969), uma abordagem prenhe de alusões subliminares ao Brasil da época da ditadura militar, veiculada sob a forma de alegoria fabulatória e burlesca. Em Macunaíma, ele não economiza munição e alveja, chateia, com destra precisão, os imbecis de todas as idades, latitudes e nacionalidades.

Esta avaliação não significa menosprezo pela qualidade da obra subsequente, culminada em O Homem do Pau Brasil (1981), biopic de Oswald de Andrade, o exacerbado pródomo do Modernismo tupiniquim*, que ele representa como um ser androginamente intelectual, num assomo de delírio fantasista. Ou precedente, polarizada na longa de estreia, o documentário Garrincha, Alegria do Povo (1963), que alguma crítica saudou, talvez apressadamente, como um lídimo exemplar de Cinéma Verité.

Capetalismo canibal

O ano de 1969 data um tempo cruel tanto para o Brasil como para o CN. Ditadura militar em definitivo aquartelada no Palácio do Planalto, os cinemanovistas tomam consciência de que passaram a ser cabras marcados para morrer.  Entra-se numa época de carência e frugalidade, em que o arbítrio pulveriza o que resta de Democracia, Liberdade e Estado de Direito. Apesar desses pesares, esse ano testemunha a estreia do crucial Macunaíma.

Nesta absurda manobra de diversão momesca, o realizador carioca se expressa sob a capa dos códigos da parábola antropológica, tentando driblar, como um Garrincha dos ecrãs, a tesoura da Censura. Numa farsa mais que burlesca, Andrade, tal como o frenético Macunaíma (Grande Otelo/Paulo José), monta um entremez onde vira o Brasil pelo avesso. Na terceira longa-metragem, ele atinge, sem mancha de incoerência, o zênite de uma obra inscrita no epicentro de uma interpretação polissêmica do conceito de Antropofagia. 

Através desta (re)visão paródica da novela-rapsódia do modernista Mário de Andrade, Joaquim Pedro codifica uma mensagem perspicaz. No Brasil dos anos 60/70, o Capitalismo aprofunda o ímpeto de sua voragem canibalesca. Tanto assim que se justifica a troca do primeiro “i” por um “e”, por se ter tornado uma emanação do capeta.

Porém, os selvagens não são os descendentes dos nativos das eras pré-cabralinas, que ainda (sobre)vivem numa Pindorama paleolítica. Nem os miseráveis nordestinos coagidos a viajar para as grandes cidades amontoados, feito gado, em paus de arara*, como visionamos numa sequência evocando a tradição neorrealista. Não! Os canibais hodiernos são capetalistas insaciáveis como Wenceslau Pietro Pietra (Jardel Filho), “o gigante comedor de gente”, acintoso a ponto de preparar, na sua piscina, uma pantagruélica feijoada, em clima de grande bacanal, onde a carne seca/carne de sol é substituída por carne humana.

O filme veicula acutilantes, embora encripitados, recados ideológicos, intervindo politicamente na realidade brasileira pós- A.I. 5, golpe militar de dezembro de 68. O diretor transforma a guerreira Cy, no livro a líder das amazonas, numa intrépida guerrilheira esquerdista. E faz a caridade de metamorfosear o sapo Macunaíma num garboso príncipe encantado, sempre que fuma como um hippy, o baseado* que a cunhada Sofará (Joana Fomm) vai buscar as partes pudendas.

Consistiria, contudo, um equívoco confinar esta exagerada presepada aos limites da (r)estrita metáfora político-ideológica. Acerca de um filme transcorrendo sob a égide do picaresco, deixando escorrer cachoeiras de excesso, não soará a extemporâneo sublinhar esta reflexão: Macunaíma se insinua como um dos exemplos mais pertinentes da ideia filosófica que turbinou o CN: canibalizar, sob os auspícios da carnevalização tropicalista, o Cinema estrangeiro e “nacionalizar” o Cinema Nacional. Estamos assim perante o binômio Antropofagia/Autofagia, numa interação catártica e resgatadora com uma Cinefagia. Dialética que se sente, a nível formal, no frequente recurso a filmagem com câmera ombro/mão, assente num bipé, replicando as fórmulas do Cinema Direto, obediência bem evidente na ágil cena em que o enfant terrible sobressalta a Wall Street da capital e do capetal. 

“Ai que preguiça”

O relato das desventuras deste goliardo sem caráter, doutorado em “jeitinho brasileiro”, começa e termina ao som de uma letra ufanista, colada a uma peça de Villa-Lobos. E são contadas numa cadência de zombaria descarada, ao longo de uma narrativa tingida com as cores aberrantes de um kitsch que convoca um (mau) gosto por vezes repulsivo. Não estranha que o camarada Claude Lelouch o tenha classificado como um filme bête et méchant, quando o apresentou no Festival de Veneza de 1969.

Clima de hostilidade às cívicas etiquetas que se declara na primeira cena, em que vemos Macunaíma ser parido como se de uma defecação se tratasse,  sendo batizado pela mãe, uma nativa tapanhumas, com a bênção de um anátema: ”Macunaíma, de má sina!” E atinge o apogeu do disparate, quando ele é tentado a comer os próprios testículos.

Noutra situação instigante do filme, o (anti)”herói de nossa gente”  interpela um ogro, protestando sua fome. O caridoso corta um pedaço de carne da própria perna e oferece-a ao faminto. Como é grotesca esta estética da fome e da vontade de comer.

“Ai que preguiça!” O mestiço tricolor abomina solenemente o trabalho.
Ele é um ser humano muito frugal, não brada um lancinante “Mamãe, eu quero mamar” quando a fome o assola. O guri não quer banana, nem que seja a do Velvet Underground, servida pela Nico. Nem manga, mesmo que seja bem rosa. Ele apenas quer Carne…val. Esse crônico entorpecimento só dá tréguas quando depara com uma cunhã* disposta a “brincar”, a “comer” com ele. Frenesi superado mal encontra Cy (Dina Sfat), guerrilheira, de cio sempre aceso, com a qual ele estabelece uma relação de amor dubiamente edipiana . 

Numa abordagem epidérmica, o filme pode ser lido como um exemplo de reavaliação desalienante das chanchadas, as saturadas comédias populares dos anos 40/50. Atente-se, a propósito, na cena revisteira em que Macunaíma se traveste, com o fito de arrancar a pedra talismã de Cy das manápulas do medonho capetalista.

Em abordagem mais profunda, o “público visado” por Andrade se compõe de uma classe média intelectualizada, a quem ele dirige uma série de signos de conscientização sócio-política. Desassombro palpitante na cena, cinematicamente dinâmica, em que Macunaíma e seus irmãos se veem ensanduichados num frente a frente entre a guerrilha urbana e as forças da repressão, alusão explícita a luta armada contra a ditadura. A massa crítica de Andrade se volta igualmente contra os preconceitos raciais, em favor da desmi(s)tificação da cândida e rousseuniana vida na selva/sertão, se dirige para a denúncia de uma sociedade urbana cada vez mais hiperconsumista e competitiva, onde as pessoas viraram máquinas e foram eletrodomesticadas.

Afinal, desde a idade da pedra lascada que estamos condenados a (sobre)viver numa sociedade/civilização antropofágica em que nos comemos uns aos outros e somos comidos por nós próprios.  

Em resumo, convém comer antes de ser comido ou para não ser comido. Eis a primeira e derradeira (a)moral desta comédia nada comedida, pícara odisseia de um brasileiro devorado pelo Brasil, isto é, por ele mesmo.

*Glossário

Tupiniquim - termo da língua tupi, usado coloquialmente como sinônimo de brasileiro 

Pau de arara- caminhão, cuja caixa aberta acolhe rudes bancos de madeira. 

Baseado- charro 

Cunhã- moça, mulher jovem, na língua tupi