Com «Pedro e Inês:
dolce stil nuovo», Edições
Sempre-em-Pé[1],
2011, dá-nos Nuno Dempster a prova cabal de que a actualização do mito se
mantém. Seiscentos e cinquenta anos depois __ mais concretamente 656, dado
que Inês morreu, nos arredores de Coimbra, a 7 de Janeiro de 1355 __ o
poeta sentiu-se tocado pela permanência e atractividade da história e
criou um belo livro para a celebrar e actualizar. É da permanência destes
interesses que a lenda se constrói, e é com estas concretizações que a
cultura do País avança.
Nuno Dempster, na verdade, actualiza a história dos
dois amantes, imagina-os em circunstâncias actuais, observa o que se passa
nos lugares em que amaram, analisa o conhecimento que deles ficou nas
gerações que vieram depois. Ele próprio, por vezes, se imagina em Nova
Iorque __ mas vive numa cidade de província, creio que na Beira Alta, num
prédio de cinco andares. É pela paisagem observada da sua janela,
suburbana como a classifica, que ele compara o que seria o tempo de Inês.
Coloca-se nesses recuados séculos e imagina que, com a idade que eles
tinham, a actividade sexual deveria ser predominante __ e é essa
constância que leva jovens de tudo o resto ignorantes a pedirem aos seus
parceiros: «Ama-me, como Pedro amou Inês!» ( E, pelo menos num caso, isso
levou ao sacrifício do hímen no banco traseiro de um automóvel, tamanha
era a mútua pressa. )
Ele lamenta, por outro lado, a descaracterização de
Alcobaça, o modo __ quase sacrílego __ como um ruído de feira ofende o que
deveria ser o silêncio, majestoso e eloquente, daquelas naves. Bem bastam
os clarões das máquinas fotográficas dos turistas! E até prevê __
provavelmente com uma certeza muito elevada __ que os filhos desses
feirantes, ou dos que por ali lhes animam o negócio, daqui a uns anos nem
sequer saberão o que os nomes de Pedro e Inês quererão dizer… O pior é que
eles não sabem o que perderão com essa ignorância __ e assim essa praga
pouco os incomoda.
A história de Pedro e Inês permanece, pois, como
válido motivo de poesia. A lenda construiu o mito e cabe-nos, a nós,
perpetuá-lo e actualizá-lo __ ou não fosse o mito o nada que é tudo, nas
insuperáveis palavras de Fernando Pessoa. Mas Nuno Dempster sabe
perfeitamente que a história de ambos só comoveu os seus contemporâneos __
e a seguir, por obra de Camões, todos os outros __ porque Inês morreu
jovem. Levam cedo os que os deuses amam, é sabido de há muito. Se Inês
tivesse vivido mais tempo, e envelhecido ao lado de Pedro e dos três
filhos de ambos, ainda que o amor se conservasse, a sua história deixaria
de ter o encanto que a caracteriza. Nuno Dempster imagina como seria, com
Pedro a dizer-lhe que o paço era largo se a sua presença a incomodava.
Mais prosaicamente seria a resposta à reivindicação de Inês de que fosse
ressonar para outro lado.
Creio que terei referido, mais ou menos, o universo
de referências em que se enquadra esta obra de Nuno Dempster. Poderia
ainda acrescentar-lhe a perfeita actualização tecnológica, pois o poeta
até conversas na Internet sobre o tema foi investigar. Verdadeiro,
fantástico, imortal são os três adjectivos que, no comentário sobre esse
amor, ele aí pôde isolar. E os «seus» protagonistas andam de mota, têm
óculos de sol. Talvez para compensar a real imaginação de pôr Pedro e Inês
a amarem-se ao luar, na orla da praia, em noites de lua cheia. A
informação fornecida pela história, em particular o papel de Afonso IV,
não é escondida. Mas os três matadores são omitidos.
Cumpre falar agora um pouco da poesia propriamente
dita. Nuno Dempster escreveu 55 poemas, sem título, em verso
decassilábico, de estrofe única com extensão variável. Ele prescindiu da
rima mas o carácter encantatório da leitura é bem real, aquela toada
envolve-nos e agrada-nos. É, claramente, um livro. E é uma obra dinâmica,
indo à frente e voltando atrás, às vezes comentando o que ele próprio
anteriormente escrevera. Não faltam as citações mais clássicas de Camões,
mas também de Daniel Filipe, Jorge de Sena ou D. Dinis __ que era, aliás,
avô paterno de Pedro. ( A
primeira e a última em epígrafe, Sena no próprio corpo do poema. ) E a
própria unidade da obra é bem consubstanciada no título: paráfrase , e
decerto homenagem, ao Dante que criou uma língua nova __ e não estava
assim muito longe dos factos ocorridos, isto é, não morreu muito antes. E
o dolce stil nuovo seria,
certamente, adequado para os cantar __ é o que talvez Nuno Dempster
pretenda significar, sendo que neste caso ele levou a teoria à prática. E
que bela realização ele nos deu com este livro!
De pleno direito passa assim Nuno Dempster a
integrar a digna e louvável legião dos que cantaram o mito de Inês __ pode
a Universidade actualizar os seus canhenhos. Lê-lo é um prazer, e dar a
lê-lo uma gostosa obrigação. Vejam só: «Pedro e Inês são um brilho que
adolesce / um fulgor que obsidia a consciência / dos corpos juvenis…»;
«Pedro e Inês estão vivos e caminham / pelas ruas urbanas, são a imagem /
que salva da tristeza quem não vive / como eles se entregaram:
doidamente.»; «Apartados da corte, imaginamos / que iam olhando as águas
do Mondego / a fluir, abstraídos, no interregno / de si mesmos…»; «Esperam
a eternidade frente a frente, / na abadia, nos seus túmulos de pedra / …»;
«… Inês sorri, / oferecendo os longos dedos vivos / a quem por ela vai
passando, súbdito. / Que todos nos sintamos confortados!»
Nenhuma destas citações faz parte dos dez poemas de
que particularmente gostei e que na íntegra bem gostaria de transcrever.
Ao menos um, claro. Seja o da página 40, por ser o mais curto:
Do terraço mais alto da cidade,
Vou vendo o movimento e penso em como
A vida se tornou repetitiva
No fluir isolado carro a carro
E no trânsito unido sem destino.
Separados por séculos de nada,
Semelhante ao que as ruas vão deixando
Como um rasto até à última curva,
De vez em quando Pedro e Inês cintilam
E salvam da igualdade humana e pobre
Um ou outro clarão inesperado.
Gostaram, queriam mais? É natural. Mas têm bom
remédio: é comprar o livrinho e por um pouco se comoverem com a história
de Inês, a que depois de morta foi rainha. Vale bem a pena, Nuno Dempster
esteve à altura da grandeza do mito que desafiou.
Cristino Cortes
26/11/2011
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Cristino Cortes nasceu em Fiães ( 1953
), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia,
reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu,
quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou
10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do
Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância,
em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e
Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão
aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido
em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda
edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por
ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em
2008, por ter sido o último. Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo
de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais
e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros.
Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias.
Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem
tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas
ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio,
tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram
apresentações públicas em diversos locais do País.
Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra
tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de
livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia. |