Quando Gabriela
Llansol surgiu no horizonte das narrativas, sobretudo após os anos 90,
houve uma redescoberta de uma escrita híbrida que não era poesia e todo
ela era uma prosa-outra.
Há já muitos
anos que leio Isabel Mendes Ferreira: curiosamente, tive um maior contacto
com as suas narrativas também a partir dos anos 90.
É poesia ou
prosa? É o hibridismo entre plasticidades, narrativas diferenciadas.
Não se pode
dizer que é uma narratividade fácil.
É um topos que variadamente recorre à grande
cultura clássica e se caracteriza por longos traços underscore que dão uma
imagem poética a cada texto.
O filósofo Wittgenstein, no Tractatus
logico-philosophicus evidencia o saber das frases curtas e acutilantes.
Agora, imaginemos Wittgenstein num apocalipse da palavra que se
desdobra em textos de 10, 15 linhas.
Por exemplo, no escrito 111:”a excelência é apenas
a vitória de uma possibilidade”.
Se Llansol transporia as fronteiras desta frase,
enveredando por um texto diarístico, mas também ele filosófico; Isabel
Mendes Ferreira leva a possibilidade da excelência ao extremo e
reconduz-nos a uma reflexão mais densa.
As palavras nestes textos poético narrativos,
deflagram por todos os lados dos vocabulários que conhecemos e dos que não
conhecemos.
Veja-se o início do texto 117: “a cria mata o
destino matando à distância todas as distâncias.” E o início do texto 118:
“sei bem que já não há ascensão possível. Nem arcanjos disponíveis para um
outro génesis”.
O imaginário do eu poético narrador é vasto e
interliga-se numa comunicação pouco convencional entre o raciocínio e o
absurdo.
Por vezes, as palavras explodem como uma torrente
de água, com tanto poder, que esmaga qualquer hipotética linguagem
imaginária. Veja-se o pensamento 171: “para iluminar basta eclodir. Espaço
supremo de vocábulos íntimos. Ser antes do método o homogéneo. E dar um
passo.”
A eclosão das palavras é de uma irreverência que
não nos deixa pistas.
Mas, voltemos a Llansol e porque é que aqui a
evoquei: Eduardo Prado Coelho, já falecido, foi dos primeiros pensadores a
descobrir Llansol. Também João Barrento. Rapidamente a Academia dos
saberes exultou a prosa poética de Llansol e hoje, todos os críticos, se
curvam perante a sua vasta obra.
A ideia que eu tenho, é que a Academia, ainda não
descobriu Isabel Mendes Ferreira, na pujança da sua narrativa arrítmica,
“ressurgente”, assombradamente racional em relação a todas as finitudes.
Porque tudo se trata de finitude, do devastamento,
da morte, de tardes que se alongam pelas noites, de um desmascarar de
vocábulos proibitivos. 214:”lá fora aguardam-me abutres e serpentes. Anéis
dos impasses imaginários. A 31 de Maio veste-se Inês para morrer. Já
suficientemente morta”.
E, mais uma vez, o recurso aos clássicos: Mallarmé,
Holderlin, a bíblia, etc.
Texto 247:”a verdade é o quê? Um balde de plástico,
uma sonda, uma nuvem, uma asa, um vidro, uma escarpa?”
Texto 168: “porque toda a instância é um pouco de
Fausto e outro tanto de Rimbaud”.
E aqui encontramos outro topos do itinerário de
ideias da poetisa. Fausto é a desconstrução; Rimbaud é a marginalidade à
qual se rende o sujeito poético.
Se há palavras que ISM refere é a de pétala e a de
fim. A pétala, é a sugestão de efemeridade do tempo. O fim, esse, é
ignominioso na crueldade de deixar imensas dúvidas.
Vejamos um dos tópicos mais filosóficos da autora:
143:”enfim_________fim. Teixeira de Pascoais. o mais lírico panteísta
barroco do iberismo. cartesiano de não ser imaginário imaginando.”
Refere-nos também os autores S. João da Cruz e
Plínio.
Apesar da tónica barroca da poesia de Pascoais,
esta escrita está bem longe dos universos barrocos ou góticos.
Quando a viagem imaginária se estabelece, amorosa,
em torno de um eu, não há qualquer concessão à facilidade do beijo vácuo
ou de memórias entristecidas: 190.”sem destino dizes que deliro. respondo
que te respiro. (…) é tempo de matar a morte nas escarpas que rasgam a
montanha. e te são sombra.”
Tal como Ulisses, nas suas imensas viagens, IMF,
percorre um vocabulário riquíssimo e espraia-se nele, saltitando com as
palavras, nunca esquecendo o classicismo na referência a Plotino, Homero,
Platão ou Flaubert.
IMF percorre o caminho mais difícil da escrita: a
narrativa sólida, poética, vangloriada por uma parafernália de vocábulos
imensos.
O título, o tempo é renda, remete-nos para as
entrelinhas e os interstícios desta magia que é o quotidiano do tempo, tal
como um metrónomo híper-vigilante.
Rendas, porque: “a dita casta e generosa Lucrécia é
apenas artifício.” (231)
Não foram os Românticos que mais se debateram com o
Eu, o Tempo e a Finitude? IMF, neste o tempo é renda, todo ele filosófico
e intocável, continua estas grandes interrogações de Holderlin a Mallarmé.
Toda a atitude da escrita é política. Política, não
na acepção de um manifesto ou de opções partidárias. Política, porque
reafirmante com a palavra escrita. 149:”possessiva ideologia que só
permanece código na instância do segredo de não te ser outra vez a
salvação.”
A narrativa poética de IMF é mais interrogativa do
que a da consagradíssima Gabriela Llansol. Não que Llansol não seja um
génio, infelizmente desconhecida fora dos meios académicos. Mas, IMF é uma
outra postura dentro do quadro da narrativa poética que a Academia deveria
ler e comentar.
É arriscado falar simultaneamente de um Nome
consagrado, Llansol e de um outro Nome que ainda vai ser reconhecido. Mas,
é assim que se descobrem os ilustres. Os próprios românticos, em Portugal,
foram se descobrindo uns aos outros, até porque havia tertúlias em quase
todos os cafés.
A era da internet, desfragmenta tudo. Para se
conhecer algo tem de estar na internet. Cada vez se compram menos livros.
Cada vez os poetas se autocontemplam satisfeitos com o que elaboram e se
lêem a si próprios.
Mas, IMF, já não faz poesia. Faz narrativa poética,
o que é muito diferente.
Lanço um desafio: mesmo que não queiram comprar o
livro o tempo é renda, leiam-na nas redes sociais, onde publica
regularmente as suas narrativas poéticas.
Há lugar para todos. Viva Pessoa. Viva Luiz
Pacheco. Viva Natália. Viva Herberto. Viva Llansol. Viva IMF.
Cecília Barreira / FCSH / UNL/2014
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