Segundo E. Tylor a cultura pode definir-se como " um conjunto complexo que inclui os conhecimentos , as crenças, a arte, a lei, a moral, os costumes e todas as outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade". Esta concepção , apesar de ter sido conceptualizada em 1913, ainda hoje é considerada bastante envolvente e abranjente.
Deste modo, uma cultura é simultaneamente global, partilhada, transmissível e evolutiva. Global porque nos surge como englobalizando um conjunto de comportamentos distintivos, desde o modo como falamos, ao modo como escrevemos, amamos ou vestimos. Partilhada porque repartida por um todo homogéneo de pessoas que se enquadram nessa mesma cultura. Transmissível porque naturalmente passada de gerações a gerações através da família, da cultura literária ou de índole erudita, popular e dos costumes. Evolutiva porque uma cultura não pára: desde a inovação tecnológica a que ela se encontra ligada, até ao progresso das ideias e ao desenvolvimento dos meios de comunicação.
Em resumo, a cultura surge no quadro onde se inscrevem as interacções dos indivíduos que a compõem.
Segundo António José Saraiva, grande estudioso da cultura portuguesa, uma cultura nacional apresenta uma certa identidade e uma certa permanência no tempo. Existem, segundo ele, parâmetros da cultura e aspectos da personalidade cultural.
Falemos primeiramente dos parâmetros. O mito da cruzada e o contra mito da decadência. O mito da cruzada surge durante a Idade Média e Renascimento e inscreve-se na na guerra santa entre Mouros e Cristãos e que
culmina com o mito do sebastianismo ,a morte adiada de D. Sebastião. Ao nível popular este mito exprimiu-se nas trovas de Bandarra, unificação de um mundo sob um só rei.
Antero de Quental e a geração de 70 exprimiriam o contra-mito da decadência, na continuação de um vazio deixado pelo desaparecido mito da Cruzada. Portugal, país decadente, cuja época áurea se situou na Idade Média, período de poesia trovadoresca e de cortes democráticas.
O contra-mito da decadência avassalou o século XIX e só atravessou um período de menor apogeu durante o salazarismo, retomando-se o tom patriótico e enaltecedor do Império Português, grandiloquente e megalómano.
Outro dos parâmetros definidos por A. J. Saraiva é o de topo/base e o de dentro/fora. Topo/base ou o grupo dominante que em cada fase conseguiu impôr um padrão ou modelo social às classes dominadas. Três épocas se entreabriram. A época dos cavaleiros, durante a fase de conquista do território; a época dos clérigos, doutrinários e doutrinadores, até ao século XVIII e a época dos mercadores, do século XVIII até à sociedade de consumo dos nossos dias.
Quanto ao parâmetro dentro/fora, uma cultura só tem identidade quando se sente diferenciada em relação a um exterior. Ora, Portugal nasceu dentro da Espanha. Daí o antagonismo que sempre envolveu estas nações, confirmado por uma história secular. Ao nível das grandes identidades sentidas pela cultura portuguesa, destaca-se o francesismo dos séculos XVIII, XIX até meados do século XX, e os valores americanos e da cultura anglo-saxónica a partir dos anos 60.
Enquadremos agora os aspectos de uma personalidade cultural portuguesa.
1º aspecto: A língua comum. Foi dentro de uma área linguística galaico-
portuguesa que se desenvolveu o Estado português. Daí que língua e estado coincidam , o que não acontece com a maior parte dos países europeus( veja-se o exemplo da Espanha).
Portugal, apesar de diferenças geográficas, não apresenta culturas regionais distintas entre si.
2º O sentimento de isolamento ou complexo de ilhéu. A este sentimento associa-se o facto de se encarar o estrangeiro como um a ultima delícia terrena , ou um local de perdição. Não há meio termo. Encurralados entre o mar e Castela, os portugueses durante séculos só pensaram transpôr os mares para atingir os brasis , ou então transpôr os Pirinéus para chegar a França, à Europa. Ainda hoje vivem fascinados com o mito de uma Europa rica e hiper-culta.
3º A saudade. " O sentimento chamado saudade caracteriza-se pela sua duplicidade contraditória: é uma dor da ausência e um comprazimento da presença pela memória". É uma espécie de estar em dois tempos e em dois sítios; entre o amor ausente ou perdido e uma saudade de um futuro que há-de vir. A saudade nota-se no fado, canção nacional por excelência, vocacionada para cantar os grandes amores perdidos ou por conquistar, os sonhos, os infortúnios, as ausências.
4º O amor. O amor paixão que se compraz nas contrariedades do destino e nas ausências tem profundas ligações ao fado e à saudade. Basta observar a nossa literatura, desde a poesia trovadoresca, aos desencontrados amores camilianos ou aos incestuosos amores queirosianos, para nos apercebermos
do sentido de incompletude desse amor paixão, tema obsessivo por excelência da cultura erudita ou popular.
5º A obliquidade. O predomínio dos sistemas ternários sobre os sistemas binários, na medida em que a forma de tratamento entre as pessoas passa por um você , oblíquo e pouco directo.
6º O Culto da Dor e o Culto da Virgem. O culto mariano em Portugal tem origens bem remotas, e o milagre de Fátima veio acentuar na nossa cultura esses elementos religiosos. O nome de Maria nas pessoas do sexo feminino tornou-se obsessivo até há bem poucos anos. A Dor e a Virgem estão associadas porque remetem para um imaginário onde se espera sempre do Além uma solicitude em relação aos problemas terrenos. A tristeza bem portuguesa, tem sido acarinhada por poetas e escritores, embora com conotações políticas nem sempre transparentes. Onde começa a Dor, e onde acaba o recurso a essa medianeira junto de Deus: a Virgem Maria? Com repercussões ainda na nossa época, o culto mariano é uma realidade com que um Portugal da Comunidade Europeia ainda se confronta.
7º A "brandura dos nossos costumes". Seremos nós um povo tão brando como é assinalado por tantos dos nossos estudiosos da cultura e da personalidade dos portugueses? Ou não haverá uma violência , mais ao nível do quotidiano , que transparece quase anonimamente nas mulheres que são espancadas ou violadas ou em actos do inconsciente colectivo? Contudo, não podemos afirmar que haja um comportamento de violência colectivo se nos reportarmos a outros povos.
Após enumerarmos as questões que se poderão colocar como consistindo a personalidade cultural portuguesa, poderemos dizer como Eduardo Lourenço, no seu interessante livro O Labirinto da Saudade que o necessário é o fazer-se uma autêntica psicanálise do nosso comportamento global. Entre a brandura e a dor, passando pela saudade, algo nos distingue enquanto povo, algo forja no português uma maneira diferente de estar, ser e pensar. Basta ler a nossa literatura, os nossos provérbios ou a nossa pintura. Uma cultura múltipla num modo de ser diferente.
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