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CECÍLIA BARREIRA
(UNL)
ALMADA NEGREIROS E A "REVISTA PORTUGUESA" (2)
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II. Um Olhar Arrasadoramente Sombrio sobre Portugal  
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Propositadamente irreverentes, elitistas, acomodados a uma verve crítica impiedosa, os articulistas da Revista Portuguesa transportam uma carga de má-consciência que os coloca acima de qualquer suspeita ou filiação em escolas. Portugal, país dividido pelos partidos, pelas claques - vendilhões de templos inesgotáveis, vacilando na corrupção -, pelos mass-media: este o quadro que nos é apresentado. Modernistas mas, também, tradicionalistas. Conservadores, nunca.

Olhar sombrio, perfidamente irónico. Nas artes, nas ideias, na política. O anti-decadentismo perfilha-se no horizonte, não enquanto vontade de reerguer tudo de novo, mas na atitude de quem recusa o velho (fórmulas esbatidas, de tal modo gastas que nem oferecem resistência).

A Revista Portuguesa está atenta ao que de novo fervilha e pontua no panorama das artes e do espectáculo. A Arte? Fala-se muito na sua função social: arte para elevar da ignorância um povo ancestralmente imerso nela. Mas, contraditoriamente, outras opiniões existem que preferem escalpelizar a celebrizada máxima, «arte pela arte». O Belo, nadando numa esfera de intemporalidade e sagração. Mas, será que a Arte deve deixar transparecer o que há de sórdido no real, na vida mais comum dos mortais? Mesmo os que perfilham a doutrina duma arte social, pressentem, sergianamente, elites pensantes que voluntaristicamente levantem o letargo nacional. Da elite para o homem comum. É lógico que o naturalismo já passara à história... Não que o cubismo ou as moderníssimas correntes pictóricas que em França desabrochavam pudessem conduzir a um caminho de transformação. Mário Domingues aventa uma hipótese:

«A crítica moderna exige dos artistas, a libertação de todas as tutelas, de todas as escolas; a máxima sinceridade, garantia da máxima originalidade; em vez da cópia fiel da Natureza, a interpretação mais sentida dessa Natureza» (1).

Bondade/Beleza/Arte. É ainda um sentido ético de Arte/purificadora. Purificação não andará longe num sentido transcendente de salvação do homem, num acto de contrição que a este tipo de modernismo ético seria indispensável.

Espelhos. Sons. Imagens. Movimentos. Um outro mundo se perfilha: o cinema. E que revolução... Nada deterá o movimento. As personagens movem-se, mágicas, sob um pano branco, e são tão vivas que até podem transmitir sentimentos: tristeza, culpa, alegria. Uma certa lucidez, que se revela quase sempre antecipadora, permite que se encontrem asserções como esta:

«O Cinema é hoje em todo o mundo a mais fácil maneira de vulgarizar. Em pouco tempo impôs-se duma forma definitiva ao gosto das multidões, tomou de assalto a predilecção de todos e alcançou lugar proeminente nas gerais atenções» (2).

A Revista Portuguesa mostra-se sensível ao cinema/febre de multidões que ameaça subverter o mundo do espectáculo. Henrique Roldão, por exemplo, crítico e autor teatral, define o espaço próprio do cinema para o distinguir do espaço cénico. Também o modo de ser actor seria diverso. Aos planos arrastados e mortos, que o articulista impugna à escola cinematográfica francesa, contrapõe as fitas americanas, tecnicamente mais evoluídas, com um redimensionamento da acção. Que interessam os «arrobos amorosos entre flores, idílios ao luar, longas atitudes sobre móveis, poses demoradas repuxando reposteiros, um vasto rosário de coisas mortas como sediças.»? (3)

E o Teatro em Portugal? «Teatro de alçapão, de surpresas, de vaidades escondidas, de ódios, de ciúmes. (...) Teatro de ruínas, de estilhaços, de glórias passadas, de ídolos de barro, de protegidos». Esta a opinião de Augusto d'Ésaguy. Aliás, e para compor o quadro já de si pessimista, «A maior parte dos actores não admitem uma censura, julgam-se génios, quando não ultrapassam cómicos de feira!» (4)

Ibsen, Curel são frequentemente citados: não se tratava de uma pontual discordância quanto a processos cénicos. Álvaro Maia irrompe contra a revista De Teatro , cuja principal função era publicitar os espectáculos que iam decorrendo, e assume a defesa da crítica, bem como o papel do crítico em arte.

Uma qualquer crítica? A crítica deveria ser desassombrada, desafiando os poderes e as pressões de qualquer quadrante ou orientação. A mutilação da escrita mergulhava na não autonomia ideológica, na reverência perante o status . A Literatura é analisada sob este ponto de vista. Proust e Dostoievsky são valorados; dos portugueses exaltam-se Pessoa, Aquilino, Raul Brandão. Também António Sardinha, e António Sérgio no Ensaio.

Conflui-se na atribuição de qualidade a duas revistas de ensaio e crítica político-filosófica de sinal aparentemente contrário: a Nação Portuguesa e a Seara Nova . Mas, note-se, quer o integralismo lusista, quer o movimento seareiro apostavam no a-partidarismo, criticavam duramente o parlamentarismo. 1923 fora o ano de surgimento da revista Homens Livres , pontual mas significativa aliança entre um e outro quadrantes. E a Revista Portuguesa reconduzia-se nesse campo vasto e inexpugnável de perplexidades e dúvidas acerca da validade do liberalismo enquanto sistema político. Monarquia ou República? Que importava? O constitucionalismo recrudescera igualmente durante a vigência da monarquia. A elite salvadora afigurava-se como a solução mais viável. Quem constituiria essa elite? Seareiros e integralistas julgavam possuir a resposta.

De um ponto de reflexão puramente subjectivo o polémico Diogo de Macedo traduz este estado de espírito:

«Detesto as democracias. Entre mim e elas apenas existe um ponto de acordo: - é que o povo admira-me e eu também» (5).

O ego transforma-se no palco a partir do qual emerge a existência.

«Para mim, o eixo da terra é a minha consciência. É apoiada neste eixo que rodopia toda a minha verdade. Tudo o que sinto, amo e admiro, tudo que vejo, oiço ou toco, anda em redor da minha sensação de beleza...» (6).

Fernando Pessoa, por seu turno, entrevistado para a Revista Portuguesa, distancia-se do narcisismo egocêntrico de Diogo de Macedo para assumir um messianismo político. Assim, no seu entender, o cosmopolitismo fundamenta um dos traços persistentes do modo de ser português. E, neste entrecho, cosmopolita é sinónimo de anti-chauvinismo, anti-nacionalismo. O português vocaciona-se para a universalidade: daí o não pertencer a nenhuma pátria ou nação, daí a disponibilidade para se integrar, para se envolver e se devolver culturalmente:

«O futuro de Portugal (...) está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras do Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo» (7).

A Revista Portuguesa , essa, procurava um rumo próprio na sua postura crítica. Ainda uma última questão persistia, teimosa: como prosseguir no «novo» sem cair na grosseira imitação de tudo o que se alcunhava de importado.

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(1) Mário Domingues, «Exposições de Arte» in Revista Portuguesa , 12 de Maio de 1923, p. 32.

(2) Henrique Roldão, «O Cinema/Breve análise da fita "O Primo Basílio"», in Revista Portuguesa, 24 de Março de 1923, p. 12.

(3) Idem, op. cit., p. 13.

(4) Augusto d'Ésaguy, «Os Teatros/O que será a Crítica da Revista Portuguesa» in Revista Portuguesa, 17 de Março de 1923, p. 21.

(5) Diogo de Macedo, «Vida artística parisiense» in Revista Portuguesa, 25 de Agosto de 1923, p. 28.

(6) Idem, op. cit., p. 26.

(7) Fernando Pessoa entrevistado pela Revista Portuguesa, 13 de Outubro de 1923, p. 21.