Ficamos vigiando o homem. E era
difícil vigiar o homem.
Ficamos vigiando os porcos. E era difícil
vigiar os porcos, que tentavam romper nosso frágil bloqueio.
Ficamos vigiando a estrada. E era difícil
vigiar a estrada, com os carros que apareciam e desapareciam num piscar
de olhos na curva fechada.
Tínhamos de cuidar para que o homem não
dormisse.
Tínhamos de cuidar para que os porcos,
sedentos e famintos, não bebessem o sangue que ainda minava, empapando a
roupa em frangalhos e o capim ralo. Cuidar para que não fuçassem as
tripas do motorista, que escapavam da barriga e se derramavam para fora
de forma grotesca, num arremedo de cena, ensaio ou simulacro.
Os porcos. Que revirassem a terra
macerada, os destroços, os pedaços soltos ao redor. Mas que mantivessem
a devida distância.
Alguns deles morreram logo. Outros,
agonizantes, grunhiam alto e exasperavam o resto da manada. Mas o
homem, este raramente gemia. E era um ai dolorido, longe, como um
queixume que errasse entre as moitas rasteiras e não soubéssemos de onde
vinha.
Mantinha os olhos vazios de imagens e
nenhuma lembrança por eles passava, creio. A cabeça pendia frouxa, como
se ele fosse mais um crucificado.
Jazia prensado na lataria, metade dentro,
metade fora.
De vez em quando parecia que ia pegar no
sono e se dormisse era morte certa, então tínhamos de forçá-lo a falar.
Ele arfava, engasgava e vomitava frases que recompúnhamos e devolvíamos
a ele: não era de hoje que cortava essas estradas, estradas assassinas,
ah, o que já tinha visto, parecia que tinha nascido em boléia de
caminhão, até estranhava a cama quando chegava em casa; ia com o
ajudante, sim senhor, conversando, bom rapaz...
(E do corpo do ajudante só se via um tufo
de cabelo emplastrado.)
...iam entregar a carga e voltar no dia
seguinte; sabia não o que tinha acontecido; foi como um cavalo brabo que
desembesta de repente, curva enganosa aquela, das pior.
Temos de ficar de olho na estrada, senão
o socorro passa direto. Periga a ambulância não dar fé da carcaça do
caminhão, lá no buraco.
Temos de vigiar o sol, para que a noite
não se abata de chofre sobre nós.
Nossos braços, exaustos de segurar as
varas e tocar os bichos, pendem frouxos.
Os olhos do homem se fecham e uma espuma
escura escorre agora pelo canto da boca. Os porcos fazem um ruído
estranho, como se estivessem revoltados com a sorte dos companheiros,
sei lá se choram, quase uivam, e fuçam, irados, os corpos espalhados ao
redor.
Um cheiro de merda vai crescendo na tarde
e se misturando à brisa fresca.
Os porcos vão apertando o cerco.
Temos de vigiar a noite. E mais não
podemos fazer. |