A primeira vez que me aproximei de Gilberto Freyre, pensei que «Casa-Grande e Senzala» era um livro indecente. A freira, que revistava nossos pertences à volta das saídas semanais, confiscou o livro, achado na estante dos meus pais. A obra não fazia parte do Índex, mas sua leitura levaria certamente ao pecado. Seria devolvido à hora da próxima saída do internato, em Petrópolis.
No ônibus de volta, fui procurando as passagens picantes, acabei dormindo. Em casa, devolvi o livro à estante e esqueci o sociólogo.
Estava escrito nos traços do meu destino que não ficaria longe, para sempre, do Mestre de Apipucos. Quando entrei pra Escola de Sociologia e Política da PUC-Rio, ele era um autor completamente démodé. Mas, mesmo assim, sua tentativa de contar a história íntima de todo o brasileiro me seduzia, embora, por certo, concordando com os colegas que diziam que se tratava do brasileiro da elite nordestina. De alguma forma, lendo Freyre, tinha laivos de compreensão sobre as mulheres da minha família.
Alguns anos depois, na França, quando me envolvi com um francês e percebi que teria ao menos um filho com ele, comprei-lhe o presente régio : um gordo exemplar de « Maîtres et Esclaves », a tradução francesa do « Casa-Grande» (1). Serviu pra ele entender alguns dos meus pormenores e, quando nosso filho nasceu, ele já estava advertido : eu era uma mulher com muito coração e pouco siso.
Os anos passaram e fui fazer Mestrado no Instituto Social de Medicina da UERJ. Pensava fazer um trabalho centrado na a epidemia de HIV/AIDS. Mas, desta vez, Gilberto Freyre me esperava na esquina. Sem ele, não seria possível me aproximar das narrativas sobre a sexualidade do brasileiro. A quem estiver interessado no assunto aproveito, sem pudor algum, para sugerir meu livro « Erotismo à Brasileira : o excesso sexual na obra de Gilberto Freyre », editado pela Garamond no Rio, em 2001 .
Aqui o assunto é a predileção pelos pés. O amigo Paulo Sergio Duarte observou que era uma obsessão dos modernos, olhe-se os Portinaris e Tarsila do Amaral. Nada entendo de pintura, volto aos eróticos pés do Gilberto. Afinal, foi com os pés que os primeiros europeus e os próprios jesuítas atolaram na carne . (CG&S: 93)
Logo o açúcar exige a escravidão. Os escravos seriam as mãos e pés do senhor de engenho , diz Gilberto Freyre, citando Antonil. (CG&S:428). Os pés pequenos dos senhores de engenho contrastam com suas enormes pirocas , como diz o Mestre de Apipucos.(CG&S:429). Ao contrário da crença popular, o autor sustenta que os negros, seriam, às vezes, gigantes enormes com atributos sexuais de menino pequeno.
Entre as mulheres, senhoras e escravas, o autor pontua as diferenças, creditando-as às imposições do sexo dominante, que se serve do oprimido, e lembrando os pés enfaixados das chinesas:
Os pés da brasileira de casa-grande e de sobrado foram também deformados pela preocupação do pé pequeno, bem diferente do de negro e da negra, em geral grande, largo, abrutalhado (S&M :98) (2).
E ainda, talvez, por sugerirem algo erótico, os pés das senhoras de Pernambuco eram escondidos como uma parte íntima e como que sexual do corpo e só aos poucos foram sendo mostrados(...) mas as pernas não(...) só a pontinha dos pés. (S&M:333)
Quem lembra que escravos não calçam sapatos ? Os pés expressam valor. Em outro trecho comenta a deferência que os pés recebem, no interior de Minas Gerais, em casas de gente de cor , onde era praxe o dono da casa l a var os pés das visitas (S&M:225).
Gilberto Freyre comenta que a ostentação de cabeleira e de pé bem tratado e bem calçado foi refinamento mais de raça branca ou de classe alta , que de belo sexo (S&M:100).Pondera, igualmente, que uma coisa era luxar na rua, outra era a vida esparramada em casa, como notaram diversos viajantes, que não reconheciam nos cabeções caseiros as senhoras que viam na missa.
O formidável contraste nos senhores de engenho: a cavalo, grandes fidalgos de estribo de prata, mas em casa uns franciscanos, descalços, (..)Quanto às grandes damas coloniais, (...) um luxo de tetéias na igreja, mas na intimidade, chinelo sem meias. (CG& S: 39).
As diferenças regionais são ressaltadas através dos calçados e demais adereços do vestuário. As escravas do Maranhão andavam sem camisa, usando apenas saias de chita, enquanto as mucamas da Bahia ou de Pernambuco teriam sapatinhos ou chinelas (...) que usavam com seus vestidos finos , (...) jóias caras , (...) lenços, (...) xales. (S&M:285)
Seguindo a narrativa de Gilberto Freyre, com todas as ambivalências que marcam seus textos, pode-se observar como pés e calçados pontuam as diferenças sociais. Os tamancos eram o tipo predominante de caçado urbano entre comerciantes médios portugueses e brasileiros e entre operários, marítimos, negros e pardos livres . (S&M:382)Já os calçados Clark, com solas de borracha, distinguiam os ingleses, habitantes abastados da cidade, enquanto as sandálias eram destinadas aos pobres e os matutos do início do século XIX".( S&M:382 )
Os mulatos têm sua trajetória de ascensão social ressaltada em « Sobrados e Mocambos". Entre os encantos dos mulatos, que integram a burguesia mais nova da cidade do Rio de Janeiro e estudaram na Europa estão a mão pequena e o pé bonito (S&M :100).
Os pés mais nervosos da mulata sugerem sexo, o convite é expresso através dos olhos, do sorriso e dos dedos das mãos, mais sábios que o das brancas e negras nos cafunés e nos afrodisíacos agrados aos sinhôs-moços . (S&M:602)
Pés ligeiros, pequenos sugerem luta. Gilberto Freyre refere-se à criação de uma verdadeira aristocracia guerreira, constituída por negros de ganho e carregadores de fardo no porto de Recife ou do Rio de Janeiro, que impedidos de usar armas de fogo, atributo exclusivo dos senhores brancos se dedicaram à arte da capoeira. Usavam chinelas orientalmente enfeitadas , eram pés de dançarinos que enfrentavam os europeus de pés grandes e bem calçados , como na modinha:
"Marinheiro, pé de chumbo,
Calcanhar de frigideira,
Quem te deu a ousadia ,
De casar com brasileira ." (Citado por GF em S&M:511)
Quem conta um conto, acrescenta um ponto. Será? Quanta sensualidade nos pés ágeis da morena, virgem, empregada da casa dos pais do futuro sociólogo pernambucano, a senhora dona Francisca e o Juiz de Direito Dr Alfredo Freyre. A jovem, uma noite, se esgueirou no quarto do patrãozinho e lá conduziu o ato para um coito anal. Sua virgindade estava destinada a um soldado. Os detalhes saborosos estão em «Tempo Morto e outros tempos» (3), que observa, entre outras delícias, as preferências pelo sexo oral dos anglo-saxões.
Gilberto Freyre e o idioma dos pés! Gilberto das mil facetas e invenções, de quem me confesso apaixonada. Falo tão sério, que recentemente alguém perguntou: ele não é muito velho pra você? Gilberto Freyre morreu em 18 de julho de 1987.
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