O relatório (1), concluído em 10 de Fevereiro de 1924, contém
o fundamento de todas as intervenções futuras de Norton de
Matos. Não se trata de um projecto de salvaguarda do sistema
em vigor mas uma proposta de reforço de um poder que hipostasiava o Estado para defesa do indivíduo, cujos interesses se
plasmavam nos do Estado. Era uma solução plausível para evitar
a desagregação da sociedade portuguesa e a situação de calamitosa
miséria que se vivia em Portugal. Seria uma forma poética de
negar uma situação de facto para poder afirmar um pensamento
autêntico e fazer viver qualquer coisa - uma sociedade - que não
existia senão como possibilidade e ao alcance de ser real. Na
verdade, a partir de uma «prestação de contas» administrativa, estritamente burocrática, determinante para si e para a República
Portuguesa, defendia o papel do indivíduo, da famíia, da propriedade familiar, da tradição portuguesa e africana numa sociedade plausível, onde as desigualdades materiais seriam superadas
e necessidade elementares podiam ser satisfeitas a contento desde
que devidamente regulamentadas e corrigidas com Justiça. O seu
projecto implica total confiança no Estado, o reconhecimento da
colectividade como factor de integração e meio de defesa fundamental, mesmo sem que fiquem claramente referidas as instituições para defesa do interesse comum. O Estado é o lugar de
defesa do interesse comum e do interesse específico, face a
quaisquer contingências. A soberania absoluta do Estado assegura
o justo equilíbrio da sociedade civil. Há pois subjacente ao seu
projecto uma lógica explícita. Trata-se de uma lógica crítica que
revela um estilo de pensamento que transcende o próprio modelo,
que vai mais além dos códigos compreensíveis e ao nível dos
seus interlocutores. Norton de Matos não inventa noções nem
aplica metáforas, serve-se de conceitos definidos e aplicados. Ele é um homem prático que procura dar vida a uma concepção
das coisas que vai encabeçar toda a vida.
O relatório transfere para a sociedade, por via da legislação
produzida, uma noção de «ordem e progresso» que quer significar
mais do que os conceitos do positivismo. Sem estabelecer uma
doutrina, pressupõe a existência de um pensamento de um grupo
dirigente, quiçá uma elite, produto de uma época revolucionária
assumida com as contradições próprias, onde as definições eram
violentamente postas em causa, enuncia teoricamente a «construção» ou o «edifício» de Norton de Matos. Contraditoriamente
marca também o fim da sua actividade política nas colónias e o
início de um itinerário de reflexões a que vai servir de fundamento,
com ajustamentos de pormenor relacionados com as leituras a
que procede entretanto.
Durante meio século a sua prática administrativa foi sistematicamente posta em causa, combatida em teoria e, curiosamente, convertida a favor da Ditadura e do Estado Novo, em
defesa da «pátria una e indivisível» consagrada pela constituição
de 1933 e que só teria fim em 1975.
A noção de Império Colonial Português atinge proporções
fantásticas. Desde a menção criteriosa e indesmentível a cidades
que não existiam, contudo, marcadas com grossos círculos nos
mapas coloridos, até à encenação que envolveu uma cenografia
feérica surpreendente à beira do Tejo em 1940 e uma catarata de
lições por insignes académicos que exibiram provas históricas
igualmente indesmentíveis e criteriosas, que enchem dezenas de
grossos volumes, quando a Europa se debatia nos estertores do
holocausto e na 2.8 Grande Guerra (1939-1945), toma-se ainda
hoje muito difícil ser claro e sereno sobre o que significa o
fabrico dos factos históricos. Em relação a essa realidade existe
uma «filosofia» portuguesa tão mística como a fantasia política
produzida nesse período, onde se toma difícil distinguir o que é
«poesia» e o que é teoria ou doutrina original.
A história portuguesa de 1926 a 1975 passou por essa ficção
que reduziu a nada o ideário republicano, positivista ou socialista,
que atravessava a Europa e teve sequelas que ainda hoje persistem.
A Maçonaria foi a alma da República Portuguesa. Todavia,
tanto Sidónio Pais, que instaurou uma ditadura contra a República,
como Óscar Fragoso Carmona, primeiro Presidente instalado pelo
Estado Novo, eram pedreiros-livres, tal como muitos homens
que, por razões diversas, colaboraram na apropriação e na
destruição da obra republicana em geral e, nas colónias, na obra
de Norton de Matos em particular.
Norton de Matos foi eleito Grão Mestre da Maçonaria Portuguesa em Dezembro de 1929 e reeleito em 1931. Nas circunstâncias sociais que se viviam, estar à frente da Maçonaria, como
escreve A. H. de Oliveira Marques «significava ser o inimigo
número um do regime. Durante cinco anos atribulados, Norton
de Matos aguentou o cargo, sendo o responsável máximo pela
criação das estruturas que transformaram a Maçonaria, de
instituição quase pública e operando à luz do dia, em associação
secreta e clandestina, capaz de resistir aos quarenta anos de
"Estado Novo" e de lhe sobreviver.
Todas as obras de Norton de Matos decorrem necessariamente de um vasto domínio do pensamento e acção ditado pelos
princípios republicanos e maçónicos.
O corpo ideológico inscrito e veiculado no ordenamento
jurídico, nas conferências e relatórios que elaborou ou proferiu
e a actividade administrativa concreta, visível e invisível, em
Angola. Há uma componente efectiva que passa pela instalação
da Maçonaria, com Lojas, Triângulos e suas extensões «profanas»
nas mais minúsculas e remotas povoações do litoral e do interior
angolano que serviram de veículo a um ideal capaz de sustentar
a coesão do tecido social tão débil como era o da colónia.
As verbas atribuídas a Angola pela Fazenda Pública e as
subvenções orçamentadas eram pagas a contra-gosto e com a
irregularidade consequente. As obstruções postas pelos fretes
elevadíssimos do transporte marítimo e as dilações do Banco
Nacional Ultramarino nos pagamentos criavam forte decepção
no território. Havia sectores coloniais que apoiavam Norton de Matos
que pretendiam ir até à ruptura com a Metrópole, ao corte de
relações comerciais. À cabeça desta tendência surgem os membros
da Loja Maçónica Independência Nacional de Benguela que
acusava Norton de Matos de transigir demasiado com Lisboa, de
ser mais um delegado político do poder central do que um Governador Geral. [...]
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