Neste ano, em que o 25 de Abril perfaz 4 décadas, é-nos
oferecido um presente muito
especial: Os Rapazes dos Tanques, de Adelino Gomes e Alfredo
Cunha, livro que
doravante referirei por meio da simples fórmula “Os rapazes…”.
Foi para isto que fui convidado, para dar uma morada,
um abrigo, a este presente, de
modo a ajudar a proporcionar-lhe um acolhimento à sua medida, de acordo
com a
modéstia do meu limitado engenho.
Aproximo-me, pois, um pouco mais deste presente, que
tomo nas minhas mãos!
Mas há aqui, na possibilidade desta aproximação, na
eminência deste encontro,
qualquer coisa de extraordinário, diria mesmo, de paradoxal, pois,
trata-se de um livro
que evoca e torna actual toda uma acção extremamente marcante, factual e
objectiva,
uma espécie de luz por onde a história se tece ainda, sendo que, por outro
lado, nos põe
a falar novamente, dando a palavra a gente humilde, quase anónima, como
eu, que
cruza crenças e valores, atitudes e compromissos, sentimentos e emoções
das mais
diversas índoles, sob a forma de simples testemunhos pessoais, espontâneos
e
despretensiosos, aparentemente quase irrelevantes.
Na aproximação a este presente que solicita o nosso
acolhimento (e também o mais
caloroso agradecimento), eis aqui qualquer coisa digna de espanto: uma
luz, um signo
fundador, que visa aquilo no qual efectivamente nos viemos a tornar
quarenta anos
depois do big bang da sua explosão criadora de sentido e de vida, mas que
nos
inscreve ainda naquilo que verdadeiramente somos enquanto simples presença
de uma
humanidade faminta de justiça e liberdade.
Todavia, não há acolhimento sem uma verdadeira
experiência de caminhar para dentro
daquilo que nos chega e toca, ao encontro daquilo que amamos.
Retomo, pois, a aproximação ao coração deste presente
especial de Os rapazes…
Trata-se, primeiramente, de fazer uma opção, de
escolher um itinerário.
É verdade que podíamos falar de Os rapazes…
como autênticos companheiros de um
Aquiles que os deuses há muito chamaram para uma outra viagem que a seu
tempo
nos reclamará também, a nós, agora inteiramente ocupados ainda com os
cuidados de
uma Tróia vivida e imaginada, saudosos de um regresso a uma Itaca integra
e
inexpugnável!
Sem dúvida, poder-se-ia falar do livro com palavras de
admiração e exaltação, falar
desse momento singular em que estivemos lá, quase face a face com os
deuses, ou com
os demónios, da guerra ou da paz, ou mesmo falar disso como poetas que
desejam
cantar os feitos gloriosos da libertação da madrugada de Abril, ou a
vontade de poder e
audácia dos oprimidos, o carisma dos libertadores … a fome de liberdade
dos heróis e
dos eleitos.
No meu caso, isso levar-me-ia a falar do menino de 20
anos, que eu era então, natural
de Aljubarrota, operário, trabalhador-estudante, há quatro meses na tropa,
com o dedo
no gatilho de uma G3, na Calçada do Sacramento, a ajudar a derrubar uma
ditadura
velha de 48 anos.
Todavia, creio que desse modo talvez ficássemos
impedidos de tocar no intimo mais
profundo de Os rapazes… Porquê? Porque o livro não trata apenas
de uma evocação
nostálgica da memória, nem representa somente um simples contributo de
expansão e
revitalização de um objecto histórico.
É verdade que podíamos falar de Os rapazes…
tendo como ponto de partida esses
enunciados angulares “estivemos lá”, conhecemos o que se passou”, “estamos
particularmente habilitados a explicar o facto”. A questão é saber até que
ponto tal
abordagem não acabaria por desviar o sentido da aproximação, comprometer o
acolhimento de um presente, como aquele que assim nos é oferecido.
Quem somos nós para “explicar” algo tão denso e
enigmático como é o referencial do
nosso testemunho, que apresentamos como que impresso no nosso próprio
corpo,
onde me vejo melhor porque me vejo, e me podem ver, apropriado pelo tempo,
com
uma fotografia nas mãos abertas em velhos sinais de utopia e
contentamento?
Talvez pudéssemos falar de Os rapazes… sob a forma de
uma espécie de suplemento
de alma a que a tragédia quase apocalíptica do tempo presente poderia
ainda conferir
uma nova dimensão de sentido pedagógico e terapêutico, enquanto
diagnóstico e
remédio de tempos abismais e sombrios, como são aqueles em que estamos
mergulhados.
Desse modo, a aproximação a Os rapazes… talvez
nos pudesse permitir o confronto
crítico com o estranho labirinto da nossa própria democracia, como apelo e
voz de um
imaginário de carácter profético e sebastiânico, dirigido aos heróis
míticos que esperam
um dia dançar nas asas de um deus salvador da pátria!
Contudo, não creio que Os rapazes… alguma vez quisessem
apontar para o começo
da história ou para a origem da verdadeira democracia. Os que falam, e
aquilo que é
falado, tem mais a ver com o domínio da alteridade, não se compraz apenas
com jogos
dialécticos do real e do ideal. A sua notoriedade não é, nunca foi, sinal
ou expressão
de um magistério excepcional, de uma lição exemplar de fazer ou elucidar a
história
ou a democracia. Simplesmente, nós somos alguns daqueles que estiveram lá
e que
ainda não esgotaram em si mesmos o espanto e a perplexidade desse estar,
de algo que
veio a tornar-se acontecimento, que ainda está a tornar-se acontecimento.
Por isso, Os rapazes… acolhem, sobretudo, uma
espécie de revelação na contigência
dos factos e das pessoas. Em primeiro lugar, há a presença singular do
rosto e do
discurso; o que há para dizer e mostrar para além disso, outras coisas,
muitas outras
coisas, pouco ou nada significaria fora deste laço de subjectividade que
faz e actualiza
o acontecimento. Dir-se-ia que o acontecimento do 25 de Abril não poderia
ser descrito
e narrável fora do inédito que o forjou e configurou e que continuará a
requer a
imagem do discurso e da fotografia, a paixão e o desafio desmedido e
úbrico do
protagonista que o viveu e que o continuará a viver, ou a dar a viver,
sendo certo que
toda a experimentação radical sempre se iniciará com uma experiência
vivida e
narrada, na primeira pessoa, em discurso directo.
Que presente é este, então, que tanto suscita o cuidado
da aproximação como o risco da
representação?
Não se trata de um ficheiro de memórias do passado,
aquilo que seria uma espécie de
armazém de representações, um tesouro monumental e cronológico de palavras
ou de
imagens, resgatadas ao um tempo que devoraria e apagaria inapelavelmente
as suas
próprias criações. Por isso, Os rapazes… são um livro do acontecimento do
25 de Abril
e não apenas desta ou daquela “operação”, deste ou daquele “episódio”. Um
acontecimento vivo, caótico e imprevisivel, com o qual, aqueles que falam
e aqueles
que escutam, se espantam e “entusiasmam” na medida em que tal atitude
remete para
um deus que baila desassossegadamente nos seus corações, como sugere o
étimo da
própria palavra “entusiasmo”.
Nesta dimensão de “acontecimento” há, pois, um paradoxo
que o livro não quer
somente implicar, mas que ele impele a todo o custo no sentido de
comprometer
aproximação é mistério, como algo forçosamente incerto e fragmentário.
Neste sentido, a verdade, por que é disso que todos
falam, revela-se e esconde-se numa
espécie de jogo de sombras e clarividências (jogos de verdade,
efectivamente), como se
aquilo que produz o acontecimento fosse de tal maneira visível e
invisível, descritível e
indescritível, ainda que eminentemente actual e narrável.
De certa maneira, falar do acontecimento do 25 de
Abril, tal como é suscitado pelo
livro de Adelino Gomes e de Alfredo Cunha, consiste em propor para tal
factualidade
uma espécie de processo de libertação daquilo que 40 anos de democracia e
de
educação acabou por transformar em objecto de condicionamento, segundo uma
lógica
de força, de constrangimento e esgotamento, dispositivos que são
amplamente
conhecidos como recursos da abordagem de grande parte da história que se
faz entre
nós.
Em Os rapazes dos tanques... como que é dada
oportunidade a uma orgia de festa e
volúpia que só um acontecimento atravessado pela tensão das diferenças de
opinião
poderia proporcionar, uma vez que todo o acontecimento é perspectiva.
Pergunto-me até que ponto esta “imagem” (fotos,
discursos) não vai no sentido de uma
nova estética do acontecimento, quero dizer, falamos daquilo que vemos
aqui a dar-se,
a surgir, a advir, como caos belo e criador, pois, em relação ao
acontecimento, a
verdade é que temos apenas que esperar que a historicidade o faça
(produzir) e o
disponibilize para nós (conhecimento, acção, etc.).
Ainda nesta perspectiva de acontecimento, a que chamei
o presente que nos é
gentilmente oferecido pelos nossos autores, gostaria de evocar uma última
linha de
aproximação e convergência, propondo chamar a Os rapazes… um
livro de crise.
Não só porque os testemunhos que vemos e lemos nele
atestam fontes marcadas e
erodidas sob o signo da temporalidade, de vidas cruzadas e tecidas em
torno desse
cuidado particularmente fascinante e corrosivo que só uma simbólica como a
do 25 de
Abril poderia dar, atendendo ao modo como será possível ver aí não só o
fundo
reparador da função de veracidade, como também o poder restaurador e
fabulador dos
mitos.
De certo modo, trata-se de um livro no qual é patente a
crise do 25 de Abril, a
incapacidade deste signo “operar” democraticamente como um mecanismo
político de
emancipação e redenção.
E é mais uma vez a força do acontecimento que poderá
indicar o sentido desta crise.
Pergunto-me então: acerca do acontecimento, a decisão
“crítica” da sua actualidade
reside no destino do seguinte enunciado: é ou não é, vida ou morte?
A crise é, pois, o próprio ponto de vista, aquilo que é
dito e mostrado, na crueza e
dramaticidade da sua mostração, como não repetição (quase como um
“monstro”).
Dir-se-á, em síntese: A crise é uma oportunidade, o
ponto de viragem para uma saída.
A modalidade do tempo que lhe corresponde é o Kairos: o
momento oportuno para a
acção (Pigeaud, 2009).
Enfim, querendo-me um pouco mais esclarecido, ou não,
nós, alguns daqueles que
ajudaram a tecer o acontecimento com armas e flores, agora, na posse deste
presente,
interrogar-se-ão sobre aquilo que é preciso fazer com ele.
Pelo meu lado, atrever-me-ia a sugerir que deve haver
lugar, a partir de livros como
este, para um renovado exercício de aproximação, capaz, só por si, de nos
convocar
para a extraordinária aventura do acontecimento do 25 de Abril, naquilo
que será o
poder de um acontecimento de transformação que apenas um presente como
aquele
que estamos preparados para receber tornará inteiramente e merecido e
talvez bem
aplicado.
Por isso, este livro é também um convite a não nos
deixarmos encerrar na trama da
história feita enviesadamente, ancorada num beco sem saída.
Voltava pois ao começo da minha intervenção para
terminar com a força do
acontecimento que assim nos chega e fortalece, a todos nós, a todos
aqueles que
querem lutar por uma sociedade mais justa e solidária, na qual os homens e
as
mulheres possam encontrar o sentido do seu próprio caminho, por mais
difícil que ele
pareça, saudando todos os camaradas, que naquela madrugada, a caminho de
Lisboa,
ainda sem saberem que deles a primavera faria germinar um abril de cravos,
saudar
daqui todos aqueles “rapazes” que procuravam naquela caminhada avigorar a
alma de
coragem e de medo, num momento em que foi absolutamente decisivo seguir em
frente, justamente porque então a coragem foi maior que o medo!
Eis, pois, o verdadeiro espaço de evocação de Os
rapazes dos tanques, isto é do
“acontecimento” do 25 de Abril: Carpe diem. Obrigado Adelino Gomes e
Alfredo
Cunha! Os Tanques seguramente já foram transformados em sucata, ou em
peças de
museu! Mas, ao contrário disso, estes “rapazes”, que ditam os enunciados
do livro, é
bem possível que tenham permanecido meninos que, na infância da nossa
actualidade, estão, como muitos outros, ansiosos de uma nova caminhada!
Leiria, 25 de Março de
2014 Amílcar Coelho
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