(Instigaram à
redação deste texto: Tutti Quanti, Ana Luísa Janeira, Maria Estela Guedes,
no FaceBook: http://www.facebook.com/estela.guedes.56)
Na madrugada de 25 Abril de 1974, Salgueiro
Maia, um jovem com pouco mais de 30 anos e os seus “meninos”, quase todos
com menos de 30 anos, a quem foi necessário pôr um horrível (e terrível)
capacete de metal para disfarçar a indisfarçável meninice, iniciaram
em Santarém uma viagem rumo à capital do Império, de armas na mão,
intempestivamente, como um bando de pássaros a quem foi
acometido inesperado espanto e audaz voo, com uma vontade virgem e
resoluta, do tamanho do medo e do sonho de um Portugal novo e
arrebatador. Quando o sol de Abril se empoleirava já sobre os cumes
pombalinos, abruptamente expostos naquele dia de Abril, foi então que a
espingarda dos meninos, como que a brincar aos soldadinhos de cravo e
primavera, em vez de balas, dispararam unicamente flores, muitas flores,
colhidas apressadamente por homens e mulheres indomáveis e sequiosos de
vida, muitas flores lançadas por mãos inocentes e viris de crianças que
estavam inocentemente a nascer nessa hora de mudança.
Olho para vós, meninos de Abril, e vejo nos vossos
gestos puros e cristalinos, o rosto do embalar do mundo, a renovação do
tempo perdido. Vejo no detalhe do teu movimento transparente e próximo, a
infinita melodia das águas de Abril que anunciava a boa nova da
fraternidade e da solidariedade. Mas em ti, menino brusco de caracóis
ao vento, de corpo esguio e reguila, de passos apressados e
imprevisíveis, em ti, menino desta outra escola singular de colocar
um cravo na espingarda, vejo ainda nitidamente uma dobra, um
escolho, uma pequena lágrima teimosa e fugidia que não querer senão
embriagar de saudade aquele berço de mil abris.
E dói-me o coração a olhar para todos esses meninos,
que na tua roupa esfarrapada, nos teus pés descalços, nessas tuas memórias
breves e escassas, não lembram senão vagamente uma pequenina abertura,
uma onda marginal e uma epifania transitória e indiscernível, do sal e do
mel esquadrinhados e repartidos em diferença e variação.
E agora, que também eu posso ser hoje o menino que
nunca cheguei a ver, agora que me deixo inundar por esse caudal de riso
cristalino e inocente, agora que me contemplo nessas tuas memórias
arrumadas, nessa fotografia de Abril quase com 40 anos, pendurada num
quadro que nunca passou, que nunca envelheceu, mesmo quando sou eu
olhá-lo na rua, ao pé da casa, e a sussurrar: o rapaz que ali está, sou
eu! Eu, que em criança era toda essa sensação de vertigem, de
ornamento, de festa; eu, que acordara cedo de mais para uma coisa que
podia ter sido excepcional, que podia ter sido ainda bem melhor do que
aquilo que efectivamente foi, sinto-me nesse topos como se o quadro não
tivesse sido ainda criado, como se ele não passasse de uma potência
anónima daquele futuro-saudade de mim a acontecer, devir de todos os
meninos que ainda estão à espera de nascer.
Obrigado Diogo, obrigado Salgueiro Maia, obrigado
meninos de capacete terrível em vós dado e posto aí para apagar os sinais
de uma infância que esconde e dissolve a memória da Revolução por marés
nunca dantes navegadas. Pudera eu ser esse menino do recomeço, de um
espaço virtual e pródigo em acontecimentos e forças, e(ternamente)
ancorado nesse fascínio de sensação e ubiquidade da
infância da vida.
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