Uma frase de José Esteves Pereira, registada há mais de 20 anos no Jornal
de Letras[1] ficou a partir de então presente em todas as minhas
reflexões, pairando sobre o que tenho vindo a tentar aprender e a procurar
aprofundar.
A frase é esta: “A história das ideias é a história possível.”
No caso do Marquês de Pombal, em certos momentos cruciais,
parece-nos que a aplicação metodológica de uma História das Ideias esbarra
no muro da oposição de uma história impossível, barreira onde batemos de
frente nas contradições, nas fórmulas inesperadas de que se revestem as
fontes, na ausência de documentos e no excesso de outros, na visão nunca
comum e sempre possível de gerar polémica, visão quase sempre gerada por
comprometimentos ideológicos e arredados do factual, do analítico, do
interpretativo, do relacional e do objectivo.
A história, afinal, é a visão do historiador. É a consagração do
momento em que o historiador quer ser a própria História. E por isso, quem
labora na detecção dos detalhes, deve revestir-se de muitos cuidados.
Quem já me conhece do que costumo escrever ou do que me apetece
falar sobre esta época, sabe que tenho mais dúvidas que cuidados. Sabe,
por exemplo, que eu procuro um dos maiores enigmas de Pombal, a sua
essência ignorada: o Pombal súbdito, governado, executante, numa linha de
ideias que me surgiu na primeira leitura de João Ameal e da sua História
de Portugal, quando diz que «É hábito dos historiadores confundirem o
reinado de D. José I com o governo do Marquês de Pombal. Cronologicamente,
está certo. (…) Mas não se perca de vista que no ponto de partida, se
encontra, antes de nada, a vontade de D. José I – da qual o ministro é
executante inflexível.[2]”
Já que estou em maré de citações, recordo-me de Sorel, aquele que
Lenine acusou de ter uma “cabeça confusa”, mas com o qual aprendeu muito.
E recordo-me de Sorel quando diz que “um mito puro suporta também as
derrotas”[3].
Creio que a frase se aplica em excelente ajuste a Sebastião José de
Carvalho e Melo, mito puro que transcendeu a sua própria cronologia
suportando e sobrevivendo até aos nossos dias, sobre as arremetidas
detractoras e as derrotas infligidas pelas mesmas. E em ultima análise, se
Pombal personificava o mito, era espontâneo gerador de ódios e
incompatibilidades, já que Portugal é o próprio mito germinal, uma ideia
não distante de alguns antigos pensadores, a começar com Fernando de
Oliveira na primeira História de Portugal conhecida, onde atesta que
Portugal era um reino excelente, especial e protegido pelos céus[4].
Aliás, para aqueles como eu que procuram uma nova definição para o
conceito de Elite, aplicável numa perspectiva cultural, mesmo emergente da
clássica definição política, o estudo comparado da acção prática de Pombal
e a teorização de Sorel, parece-me muito apetecível.
“Na política, o que mais importa são as elites, as minorias. Só sob
a sua chefia desenvolvem os restantes as suas virtudes”[5].
Pombal não era um chefe de governo, era o Governo. Não era um
governante, era a essência activa do governar; não era a elite do seu
tempo: era um mito puro, supra elite, eternizado pela sua prática de
longos anos ao serviço do Reino e sobretudo pela herança que os seus
biógrafos, entre o séc.XVIII e o nosso, guindaram para a plataforma do
Eterno e do imagético, mesmo quando as imagens são metáforas ou garatujas
e esboços menos precisos.
Aproximamo-nos então do título desta reflexão: “Marquês de Pombal
bem e mal amado”, procurando entender a razão de uma tal passagem, de uma
tal mudança de humores, aliás mudança corriqueira na história das paixões,
pois, quantas vezes? , o ente que se julgava amado passa a odiado, por
falência da mesma paixão escoada pela ampulheta dos desígnios e do tempo
que a desiludiu.
Mas, ao procurar respostas, as dúvidas assaltaram-nos. O objecto
deste estudo é, quase, diria eu, responder à pergunta formulada por
Eduardo Lourenço: com que lâmpada exploraríamos o coração do Sol?
Não é impunemente que estou a citar Eduardo Lourenço, já que, não
só ele também gera discursos interpretativos que oscilam entre o amor e o
ódio, como toda a sua obra é Portugal vertido: uma mancha no mapa onde se
derrama a mais funda inquietação, a grande angústia que somos e do que
somos, e a génese e o desenvolvimento de alguns dos mais significativos
núcleos mitológicos nacionais. E sabendo bem, como Claude Lévi-Strauss,
que todo o mito é uma procura do tempo perdido, tudo se encaixa num puzzle
que é, afinal, este País de angústias fáceis e de mitos excepcionais;
voltemos a Pombal – e à necessidade de um discurso condensador de
diferenças irredutíveis capaz de sobrelevar o homem ao mito que gerou.
Zília Osório de Castro, no prefácio do livro
O Mito do Marquês de Pombal[6]
sintetiza muito do aqui possa dizer-se: “Palavras de louvor e de repúdio
traduzem o confronto ideológico que, na altura, dividia a sociedade
portuguesa e que ainda hoje se reflecte em escritos de diversa índole e de
modos de ver que indiciam a permanência de tensões que se julgariam
ultrapassadas e que apontam para a inserção do mito na longa duração.
Fruto de determinada mentalidade ideologicamente conotada, mantém a
perenidade dificilmente previsível.
“Chega-se assim, por esta via, a uma aparente contradição: o mito
não é história, mas situa-se na longa duração da história. Diz-se aparente
o que na realidade não é. Como acima se demonstrou, o mito não tem as
características da história, quer de sentido positivista, quer de sentido
crítico. Contudo, nem por isso deixa de ser um fenómeno histórico, não no
seu conteúdo conceptual, mas na sua emergência no tempo e no lugar.”
Onde começa o ódio a Pombal? Terá
realmente havido amor? Quem bem amado e que mal amado terá sido? É claro
que a tradição portuguesa marca a fronteira e gera ódios onde o doce amor
devia estar perpetuado.
Oiça-se o Velho do Restelo de Camões:
" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama !
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cûa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exp'rimentas!
Como parêntesis, conto uma anedota que encontrei contada no Brasil,
uma história dos tempos da corte Portuguesa na colónia, quando recolhia
dados para escrever a minha biografia de
D. Maria I, Nem todas as loucas são
piedosas, a biografia da rainha que teve a coragem de despedir o
Marquês de Pombal.
É a história da cobra que persegue um pirilampo com ganas de
matá-lo. Que o persegue por todo o enorme território brasileiro e o
encurrala a um canto do último pedaço de território de tão grande e vasto
mapa.
Vou matar-te”, diz a cobra. “Porquê? Nem da tua cadeia alimentar eu
faço parte”, geme o pobre pirilampo. “É simples”, diz a cobra. Sou
portuguesa, e não posso ver ninguém brilhar. …”
A origem dos sentimentos sentidos pelos outros em relação ao Conde
de Oeiras, pode estar desde logo na sua tenra idade. Escreveu-se que
“Sebastião José fez pela vida. Literalmente[7]. “ O argumento radica no
facto de ser ainda muito jovem – 20 anos – quando o pai morreu, vendo-se
confrontado com problemas financeiros e tendo de endurecer, à força. Seria
essa a causa? Não teria Sebastião José influências e apoios na sua
estrutura familiar que indicam outra progressão? Reunia-se na casa do tio
de Sebastião José a Academia do Ilustrados. Uma espécie de tertúlia tendo
em vista a discussão de matérias científico-filosóficas. Nesta Academia
figurava a presença assídua do 4.º Conde da Ericeira, futuro director da
Real Academia da História. Só esta frase subentende um ambiente propício a
um desenvolvimento de equilíbrio sustentado. Aos 24 anos, 1723, Sebastião
José de Carvalho e Melo casa com D. Teresa de Noronha e Bourbon Mendonça e
Almada, em circunstâncias pouco convencionais: rapta a noiva uma vez que
ele não era aceite pela família desta, extremamente poderosa, que o
considerava «um mau partido». Este casamento permitiu a integração de
Sebastião José no grupo representante da alta fidalguia. Não houve
descendência deste primeiro casamento. Que leitura fazer deste
arrebatamento? Paixão incontrolável? Ambição? Juventude com coração e
poesia?
Mas a verdade é que a oscilação amor ódio se efectua mais tarde
entre dois pratos irreconciliáveis de uma balança presa e agitada pelos
ventos da mudança. E a verdade é também, que Sebastião José só chega ao
poder com 50 anos – e que até longe, nos 80 de vida, marca Portugal como
poucos o fizeram… Sobretudo:
“ Ele significou a viragem decisiva do absolutismo, que deixa de
ser condicionado dominantemente pela velha nobreza ‘senhorial’ e pelo
clero ultramontano para ser, em termos políticos, a afirmação de uma
burguesia intelectual e mercantil, de um novo clero, de uma nova nobreza
de Estado. Por outro lado, representa a primeira grande tentativa, que as
próprias circunstâncias extremamente graves haviam criado, de encarar de
frente os grandes problemas económico-políticos do país, o que implicava
alterações fundamentais, geradoras de situações de conflito. Ao nível
ideológico, orienta-se, à sua maneira, pelas vias do ‘absolutismo
esclarecido’, afirmando assim, sem qualquer subterfúgio, a origem directa
do poder, a concentração total da soberania do rei (e, na prática, no seu
gabinete) e a oposição sistemática ao ultramontanismo, até aí considerado
como ideologia político-eclesiástica oficial, cobrada de uma defesa viva
de teses galicanistas, que até então eram consideradas como
heterodoxas”[8]
O inventário factual da vida e obra do Marquês de Pombal está
minado. Minado ideologicamente, em especial ao longo de dois séculos – o
XIX e o XX – sob ímpetos dos ideais revolucionários que se foram sucedendo
em Portugal e onde imperam os movimentos laicos, anticlericais e
antilegitimistas.
A Maçonaria preponderou, sem dúvida, nesse esforço mitificador.
“Contra os filopombalistas que fizeram de Sebastião
José de Carvalho e Melo o Prometeu ou o Hércules português, o herói do
progresso e da iluminação de Portugal, inimigo visceral do obscurantismo,
da hidra jesuítica, os antipombalistas teceram uma lenda negra deste
ministro, fazendo dele o Nero português, uma tempestade que semeou apenas
desgraças, desordem e impiedade. Donde o mito bipolar de Pombal!”[9]
O ódio a Pombal estará todavia patente no desenrolar do seu
ministério. O amor gerado pelo organizador, pelo ressuscitador – o que lhe
confere uma aura divina, supra e sobre-humana, mítica ainda, – pelo homem
quase deus que enfrenta a morte (o terramoto) erguendo sobre ela uma nova
vida, todas as esperanças, desenvolvendo, criando e gerando riqueza, na
perseguição quase utópica do retorno da grandeza perdida de uma velha
nação de um Velho Continente agitado pelas mudanças extremas. À sombra da
protecção de um rei que, insisto, a história ainda não colocou no devido
lugar, Pombal criou e gerou – granjeando aplausos e agrado de muitos
-,perseguiu, prendeu, torturou e matou, em nome da abertura das portas à
modernidade e de um sentido de Estado sem piedade – obtendo o ódio eterno
votado por tantos outros. E a história de Portugal assina assim mais uma
página, pouco clara: uma agonia branca. Entre o querer respeitar aquele
que lhe parece grande e o querer recusar os efeitos da sua grandeza. Para
voltar a Eduardo Lourenço:”A nossa «agonia», o nosso combate ideológico
tem isto de sublime: é uma agonia branca. O nosso problema é justamente
esse de uma agonia branca, como se diz de um «casamento branco», de uma
agonia fictícia que só pode superar-se tornando-se real e enfrentando-a em
seguida.[10]”
O descrédito de Pombal é óbvio à hora da morte de José I. Aliás, o
Rei parece tê-lo afastado da governação depois da doença que o acometeu –
dando o governo da Monarquia a D. Mariana Vitória, sua mulher. Muitos
autores se referem ao facto… Silva Bastos[11] escreve o seguinte: “Ao
primeiro rebate da apoplexia régia que levaria o Rei D. José I, ao cabo de
três meses, a prestar contas ao Eterno, outro rebate se escutou – o dos
inimigos do detestado Marquês. Os ódios assolapados, durante anos, vinham
à tona das consciências clamando justiça! A Viradeira– assim se chamou à
reacção anti-pombalina – fazia ouvir as suas vozes de protesto, ainda com
o Rei no leito. Estava, de facto, apeado o omnipotente ministro. Já se
forjavam alvarás e outros diplomas de governação, sem ao menos o
Secretário de Estado ser ouvido: a sua função era meramente nominal. Com
os sucessivos ataques de apoplexia, o protesto das vítimas reais ou
supostas, fazia ouvir bem alto os rancores. Afinal baixava sobre a cabeça
do Marquês o decreto da sua exoneração, mas acolitado com a comunicação
particular de que a Rainha faria justiça – pedida pelo Marquês, mas essa
justiça seria a que Sua Majestade dispensava, de resto, a todos os seus
vassalos. Era outro aviso…mas parece que o Marquês não o entendeu em toda
a sua latitude.
“A Viradeira, porém, não se dava por satisfeita: só o ficaria,
vendo espernear na forca o odiado Secretário de D. José”. Essa forca, é
sabido, não foi para ele. No entanto, a sua impopularidade era notória:
morria Pombal com o rei.
Rocha Martins na página 33 do seu
O Marquês de Pombal Desterrado
dá-nos uma imagem da rapidez com que as coisas se passaram: “Cabia ao
principal ministro, pela sua categoria de Mordomo-mor, dirigir o funeral
do amo, mas já se cometera o encargo ao Marquês de Tancos, D. Duarte
António da Câmara, veador e general das armas[12].”
Foi exonerado por assim dizer, em simultâneo com a morte do seu
monarca. Mas o amor que a história lhe votava, que ainda vota em muitos
sectores do pensamento e da memória, diluía-se num ódio tão imediato?
Muitas causas estavam na origem deste efeito.
As recomendações do último Diploma que El-Rei assinou são ordens
para Pombal, que ele pede à Rainha que mande executar, e que encerram
grande arrependimento: José I mostra-se desejoso de salvar dívidas
materiais e espirituais, e pessoais: perdoa até a pena Legal àqueles
criminosos de Estado, que, cometeram ofensas contra a sua pessoa – o que
reforça muito a ideia de quem esteve, ao longo da história, na origem das
piores decisões deste período.
O amor, deixado em marcas evidentes na memória individual e
colectiva, prendia-se com a capacidade de Pombal ter alterado – à luz das
candeias do racionalismo iluminista – um Portugal antigo e travado pela
sua própria inércia, transformado por um déspota que era, a um tempo, o
paradigma do progresso, da cultura e de uma sociedade renovada num
Portugal enfermo e destruído pouco antes pela pior das catástrofes.
“A política do Marquês de Pombal teve sempre como objectivo
mobilizador recuperar o atraso de Portugal e dos seus territórios
coloniais em relação aos modelos de progresso dos países considerados mais
avançados e cultos da Europa. O discurso político pombalino (patente na
legislação, nos tratados e na propaganda do Estado) engloba uma dimensão
mitificante e uma dimensão utópica que deve ser entendido no quadro de
transformação de macro-estruturas, ou seja, da mentalidade política e
social e dos paradigmas culturais que tinham enformado a vida portuguesa
nos duzentos anos precedentes[13].”
O ódio, vinha da inveja – um lutador que venceu na vida, que viveu
no estrangeiro, na Inglaterra, na Áustria, exemplos de força e grandeza
dominadoras, um lutador que chega ao poder quase por acaso e com funções
menores, que conquistou o poder e os máximos favores do rei, por
determinação e empreendedorismo, que enriqueceu, que dominou,.
Ambos, amor e ódio, resultam de um caudal ideológico, acrítico e
tendencioso que forjou o mito e o perdurou. Mito literário, histórico e
cultural, sublinhado na rua e manipulado sob os tectos baixos dos que
criam a opinião publicada para que se torne, por força às vezes, a opinião
pública. O mito faz parte da história – mas não é a história e essa é o
eco que teimamos em querer escutar…
ECO
Hoje, perguntando onde estás, e o
que fazes, ouço as palavras tristes
da solidão que me responde, sem
nada me dizer, ao dizer-me tudo.
-
O que fazes e onde estás, pergunto
ao silêncio que me deixaste; e ouço
em mim a resposta, num eco que
vem de ti, perguntando por mim.
-
E neste espelho que entre mim e ti
a ausência constrói, outro espelho
reflecte o vazio da sua imagem, até
-
esse infinito em que a minha pergunta
te responde, para que me devolvas
o eco em que as nossas vozes se juntam.
( Nuno Júdice, in " O Breve Sentimento do Eterno " )
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