No estudo que temos vindo a empreender sobre a
existência, apetências, expressão, representação simbólica e configuração
das elites portuguesas[1]
através dos séculos, a figura de D.João II destaca-se de qualquer imagem
de conjunto e impõe-se como convergente interpretativo no que dela emerge
de empreendorismo, de inovação, de alavancagem para um novo tempo político
na História portuguesa.
João II afirma-se, depois de um tempo propodêutico de regência, por
um programa político de linhas sólidas onde, assimilando a simbólica da
tradição, vai evidenciar-se a modernidade, concretizando a ideologia na
prática da afirmação do poder real, que, desde a primeira hora, exerce com
suprema autoridade por todo o reino e sobre todos os seus súbditos. Numa
visão comparatista com a exigência de léxico do nosso tempo, João II
impõe-se sob um slogan, um headline
de comunicação de índole empresarial que o tornará famoso: “Pola Lei e
pola Grei”... Expressão que ditará uma “marca” forte – como diria hoje
um profissional de marketing. À
expressão, acresce o logotipo metafórico do Pelicano, que é a tradução
gráfica de uma essência de contacto, uma forma de representação simbólica
para a comunicação. É fundamental a exausta compreensão do sistema
iconográfico do Poder; as representações do soberano são condutoras ao
conhecimento do poder real. João II reviu-se nesta figura que teria várias
presenças históricas representativas até aos nossos dias – nomeadamente, e
só para dar um exemplo, na maçonaria - , o Pelicano, a ave que alimenta os
filhos com o seu próprio sangue. Aliás, como o próprio Cristo Salvador,
que derrama o seu sangue em remissão dos pecados, um Redentor imolado
generosamente para salvação do Outro, a imagética de Cristo, em suma,
transposta para o Rei-sacrifício, o Rei-sacrificado que se expõe para o
bem comum .
Em João II este é o Pelicano
paternal e jurídico, o que impera sobre o Povo como seu Pai; e sobre a
Lei, como orientador e executor da Justiça. É comum à tradição portuguesa
esta junção do Pelicano à Lei e à Grei, ao Paternal e ao Justo. É pois um
símbolo simultâneo de protecção e mando, símbolo de
piedade e compreensão – contrário à impiedade e à dureza dos
tiranos. A este símbolo junta-se uma imagem gráfica ornada pela simbologia
das cores: o verde e o roxo, entroncamento visual da esperança e da paixão
ou, de modo ainda mais lato, da expectativa ávida de aquisição de bens
ausentes e, sobretudo, da misericórdia.
D.João II é o protagonista dessas cores, logo desde príncipe,
quando leva a esperança ao seu povo e pratica a misericórdia em actos
assistenciais: traz a si o prolongamento da reforma da assistência – que
já vinha sendo concretizada pelo século XV pelos monarcas seus
antecessores - , roga junto ao papa Sisto IV a possibilidade de construir
um grande hospital em Lisboa, gera o núcleo da reforma hospitalar que
redimensiona quando se torna Rei... Em traço de menor e de maior dimensão,
João II é um empreendedor.
O processo de criação de uma marca forte é uma prioridade
empreendedora e assemelha-se a um culto. Impõe lealdade – à marca e ao
produto que simboliza – e a lealdade extrema define essa ideia de culto.
Como nos nossos dias também se aceita no mundo dos negócios; gerar
um culto é uma das melhores maneiras de criar e promover uma marca. A
“marca” João II – a marca do “mujto alto excellente e poderoso principe e
senhor El Rej dom João” – começa pelo espectáculo encenado – que também é
comparável a muitos dos empreendimentos dos nossos dias! – nas Cortes de
Évora de Novembro de 1481. Os Paços de S. Francisco assistem a um
acontecimento único na História portuguesa: a consagração simbólica do
novo monarca, sentado “em seu solio, e estado Real”, impondo-se a todos os
três estados de sus Rejnos em seus lugares ordenados[2]”.
João II apresenta-se, então como líder! Senhor dos senhores, na afirmação
de um poder centralizado e corporizado na sua pessoa. Afasta a
subserviência – a ideia de ser ou parecer “servo dos servidores”.
Sob o ponto de vista do
entendimento do líder D.João II, há que estabelecer uma dialéctica de
análise: de um lado, a concepção do poder régio que se evidenciava no
Portugal do fim da Idade Média, a concepção da realeza como
ofício, um estatuto de
responsabilidade conferida para o bem comum, num contrato entre os reis e
os seus súbditos, um pacto tácito para uma monarquia limitada ( e
circunscrita ao modo feudal ou senhorial ); do outro, a afirmação do Rei,
acima de qualquer outro senhor – e já não como primeiro entre iguais. Isto
é, quebrando a solidariedade das realezas medievais. É uma relação nova de
liderança, em pirâmide – findando a horizontalidade entre rei e súbditos.
O que torna a análise mais complexa, certamente, é constatarmos que
estamos perante um enquadramento de circunstâncias estruturantes que torna
a nossa interpretação muito longe de um mero entendimeno linear.
Mesmo assim, o Rei dá, nas Cortes de 1481, a imagem de si mesmo que
todos esperavam, mas prepara a breve trecho uma renovadora realidade...
A Arenga – o discuros habitual na “tomada de posse”, foi preparado
pelo novo monarca com o Doutor Vasco Fernandes de Lucena.
É a apologia da absoluta submissão de todos ao monarca. É a
apologia a um líder que centraliza o poder, sendo ao mesmo tempo isento de
qualquer juramento àqueles que lidera ( aos seus súbditos, no caso ).
Mas João II não é um líder tirano, pois o que distingue um e outro
é a sua relação com a Lei. João II declara desde logo à sua obediência à
Lei: “segundo dicto do nosso Remydor jezu christo non viemos para
quebrantar as leis, nem o que devemos, mas ante pera o muy
jnteiramente cumprir e guardar: pero segundo a variedade e
sobcessos dos tempos convem aos Reis e prinçipes de Santa e virtuosa
entençam mudar, limitar, declarar, ader e inerpretar as constituições e
posições humanas por as causas urgentes de bem e publico proveito, por
tall que as leis sempre aiam com vigor e força de servir o fim nunca
mudavel e causa finnal do direito, o qual he rrefrear e limitar os
apititos desordenados sob justa e direita regra O que todos se deve fazer
com grande madureza e deliberaçom dos prodentes[3]”.
Trata-se de um líder determinado,
com estratégia, objectivos de lidrança e quotas definidas para atingir na
sua agenda de prioridades empresarais – mas não de um déspota. E se se lhe
reconhece uma ideologia, ela é a do seu próprio carisma: a personalidade
do Monarca que dita o seu comportamento político. É o assumir de um
projecto político desde a primeira hora – as cortes de 1477 -, um projecto
inovador: de monarquia preeminencial. Como todos os líderes, porém, João
II teve de enfrentar a concorrência, manifesta em opositores activos, que
acaba por eliminar ou silenciar.
No mesmo sentido interpretativo que anunciámos, o da lealdade
extrema como definidora da ideia de culto, o espectáculo do poder na
exaltação do Monarca deu lugar aqui ao ritual da devoção na divinização do
Homem. A prova viria da sua biografia – onde impera o cognome Príncipe
Perfeito - e consubstanciar-se-ia em tempo da morte e “para além dela” –
morreu em Alvor, pequena localidade não muito distante de Portimão, no
Algarve, no ano de 1495 . Uma morte que é descrita como a morte de um rei
devoto, contrito, empenhado na sua salvação que, quando trasladado do
Algarve para a Batalha é acompanhado por “sinais de milagres”[4].
Pode, sem o conhecimento prévio de época, causar surpresa que João
II venha a morrer numa das mais pequenas terras do seu vasto Reino. Mas
não é de estranhar que, à semelhança das Presidências Abertas que
conhecemos na nossa História recente, também os reis apostavam na
itinerância, deslocando a corte, nem sempre facilmente, dando-lhe
significado territorial e fisico junto aos súbditos. O Reino era assim o
resultado da presença física do Rei, tornando o Reino e o Rei como coisa
una. Também a corte estabelecia ligações vivenciais concretas com as
regiões que se tornavam, por períodos mais ou menos longos, a residência
do Rei, o centro do Reino. É, vendo em forma amplificada, uma outra prova
de empreendorismo. “Os indivíduos adoptam um certo tipo de visão do mundo
através de uma certa forma de sociabilização (...)”.”Tanto a força como a
frequência dos laços grupais têm a maior influência na crença e no
compromisso[5]”.
D.João II é ainda o gestor. Herda de Afonso V uma enorme dívida
pública[6],
mas também uma enorme experiência de alguns anos de regência e gestão
régia. A sua acção depois da aclamação – 28 de Agosto de 1481 – apresenta
iniciativa, visão conjuntural, dinâmica empreendedora. O novo Rei
disciplina e reordena a estrutura social interna. Inverte a orientação da
política externa. Corrige as tendências ruinosas da receita fiscal.
Promove a reforma monetária ( o ano charneira para o arranque desta
extraordinária iniciativa é o de 1485, referido pelos cronistas, embora
não exista registo de Chancelaria para muitos anos deste reinado ) .
O Rei D.João II estimula a progressão dos Descobrimentos ( para a
costa ocidental de África e depois preparando a viagem à Índia. Um dos
principais protagonistas desta expansão vai ser Diogo Cão, um navegador
que parece descender de uma família de Vila Real -
distrito onde se situavam as Três Minas, de onde provinha o ouro do
Reino - , e que vai comandar duas expedições à costa ocidental de África:
na primeira descobriu a foz do rio Zaire e a ilha de Ano Bom; na segunda
atingiu o Cabo Gross, 600 quilómetros a Sul do limite do Sul de Angola.
Outros nomes, como os de João Afonso de Aveiro, Pêro de Évora e Gonçalo de
Eanes vão prosseguir estes feitos com êxito assinalável).
João II diminui o poder da nobreza e da alta burguesia (ainda
feudais ) e assume o seu próprio poder centralizado. Age em campos como a
Saúde, atacando as pestenças
( nomeadamente incentivando decisões normativas para a higiene
urbana ), criando hospitais e reorganizando a assistência hospitalar.
No seu reinado e desde cedo, mostrou-se um empreendedor em quase
todas as áreas: fomentou as letras, as artes, os estudos náuticos –
lançando assim a época mais gloriosa e de maior projecção na vida
internacional do nosso País em todos os seus anos de História.
O seu empreendorismo fica ainda patente noutras manifestações. A
saber: manteve, reformou e estimulou o sistema monetário e a circulação
monetária, com a dinamização das Casas da Moeda de Lisboa e Porto. Emitiu
moeda de ouro, provando a vitalidade económica nacional; obteve, para tal,
fornecimento dos metais amoedáveis
( ouro, mas também prata e cobre ).
Vigiou e defendeu o marco amoedado e os câmbios – para evitar o
excesso de drenagem da moeda portuguesa. Publicou legislação inovada e
aplicada aos seus objectivos. Criou feitorias e entrepostos comerciais –
alguns começaram por ser edificações pobres, frágeis, em madeira, e mandou
construí-las em pedra... Como um bom visionário da economia, investiu nos
seus recursos!
Nessas feitorias, entrepostos comerciais de crescente importância,
realizava-se a troca directa do aurífero pó
tibar, das ilhas Tibar, junto ao
Senegal, das jóias indígenas de ouro, dos cavalos – os cavalos da Barbaria
eram trocados pelo ouro - , coiro de antílope, almíscar, goma, vacas,
cabras, escravos negros... Tudo isso era trocado por panos de linho e
mantas e tapetes alentejanos, sedas de Granada, selins, trigo, vinho
branco, manilhas de latão... É empreendorismo ao nível do comércio
externo, aposta na marca Portugal,
confiança nos seus produtos... Perante a necessidade de aumentar
este comércio, somada à necessidade de criar alternativas às fontes de
ouro, e também perante a necessidade de criar rotas mais seguras para o
comércio em questão, João II promove alternativas sob decisões drásticas:
instalou outras feitorias no interior, reforçou a actividade da feitoria
da Mina, a mais importante, que edificou em pedra; deu-a a Diogo de
Azambuja, cavaleiro de sua casa, como local a erguer e defender, o que
este fez com dez caravelas, com cem carpinteiros e pedreiros a bordo, mais
quinhentos homens de armas.
João II é o monarca da nova visão do Mundo, uma visão aplicada num
pragmatismo político de eficácia. É ele quem assume, em 1474, a direcção
da política relativa aos Descobrimentos, conseguindo defender com enorme
habilidade os direitos de Portugal contra a ingerência castelhana. A
activíssima política ultramarina em que alicerça o futuro das suas
decisões reais e que começa, ainda como Príncipe, deixa marcas inequívocas
de liderança.
Já como Rei, destacam-se a construção em 1482 da fortaleza de
S.Jorge da Mina, eixo fundamental para o comércio do ouro, marfim e para o
tráfico de escravos da Guiné; a ultrapassagem
( 1488 ) do cabo das Tormentas, o da Boa Esperança de chegar a
salvo à Índia; a assinatura ( 1494 ) do Tratado das Tordesilhas, obra
prima do imaginário e da (ante)visão política: em conjuntura adversa, é
traçado um novo meridiano virtual para dividir terra e mares a encontrar
do outro lado do Atlântico. Sob o ponto de vista do empreendorismo, é a
antecipação, construída sob uma base estratégica.
O saber fazer é fundamental para saber prosseguir, para saber
liderar, para saber passar o que se pretende a quem se governa ou lidera.
A experiência do Príncipe está patente em acções de gestão, administração
e acção. Não esqueçamos que João II combateu na batalha do Toro, tendo a
ala sob o seu comando vencido o inimigo. Em outras batalhas, essa sua
formação prática parece ser fundamental – como no confronto com
D.Fernando, 3º Duque de
Bragança – que João acabará por mandar executar, em 1483! Fernando,
bisneto de Nuno Álvares Pereira, procurou apoio contra João II junto aos
Reis Católicos. Descoberto, foi condenado e executado.
Ou, ainda, na sequência dos mesmos acontecimentos, quando João II
apunhala D.Diogo, irmão da rainha D.Leonor e apoiante de Fernando...
Nos dias que correm, falamos muito na liberdade de concorrência,
também no direito à não ingerência nos assuntos internos de cada País. São
sintomas esses que aplicados ao Mundo empresarial podem definir alguns
princípios de mercado e de organização empresarial. Se João II definiu as
fonteiras concorrenciais com o Tratado das Tordesilhas, apostou, em
matéria de liberdade institucional, numa disposição régia que vinha do
tempo em que Pedro I era ainda
infante ( nas cortes de Elvas de 1361 já o clero pedia que tal medida
fosse aboloida) : o beneplácito régio. Afinal, a disposição de proibir a
publicação de bulas ou outras letras apostólicas, antes de previamente
serem examinadas na chancelaria régia. João II mantém o beneplácito régio.
Remete para tribunais da 1ª instância as causas relacionadas com
benefícios eclesiásticos, não as deixando subir à Rota Romana. Pretende
controlar os pedidos de benefícios dirigidos ao Papa. Pretende ser o
reformador e visitador dos mosteiros; encarcera indefinidamente sacerdotes
e religiosos; apodera-se do espólio que fica por morte dos bispos;
apodera-se dos contributos recolhidos junto dos fiéis para o combate
contra os infiéis...Inova. Ousa.
O empreendedor João II dá sinais de modernidade no plano social,
desde cedo: na reestruturação da Justiça, da Fazenda e da Administração
geral. É com esta dinâmica que lança as bases do seu reinado, o qual se
vai caracterizar pela perspicácia. O carácter pacifista das Relações
Externas de Portugal é disso bom exemplo – e contraria a política que
antecedeu o novo monarca. João
II assegura a paz com os Reis Católicos, o que permitirá a assinatura do
Tratado de Tordesilhas e assina um Tratado de Aliança com a França de
Carlos VIII.
A vida de João II, todavia, foi demasiado curta – quarenta e um
incompletos anos de vida e catorze de governo– para consolidar um projecto
único que, no declinar do
século XV, acreditou ser possível lançar em Portugal. A morte do seu único
herdeiro, o príncipe D.Afonso, a incapacidade ( também por grande oposição
da rianha D.Leonor ) de legitimar o seu bastardo D.Jorge, a doença que o
minou durante muito tempo - foram rudes golpes que só a herança depositada
nas mãos de um Venturoso pôde mitigar.
Morreu em mistério –
teria sido envenenado? – um dos maiores empreendedores da Monarquia
portuguesa. Em Alvor, a 25 de Outubro de 1495, acabou a última empresa
activa de João II. Fica a História – para nosso merecimento e
aprendizagem.
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