Se há uma figura de excelência na
História de Portugal que mereça personificar o espírito do empreendedor e
protagonizar simbolicamente o emprendedorismo, essa figura é a do Infante
D.Henrique, dito, quase abusivamente o Navegador. E diz-se aqui abusiva
tal designação, pois Henrique concebeu o navegar com visão Universal mas
nunca embarcou, literalmente e apesar disso, em nenhum dos empreendimentos
que o seu génio e visão prepararam.
A estratégia Portugal foi relançada pelo seu pai, D.João I, que
recuperou a identidade de uma marca forte, a marca Portugal ameaçada, por
assim dizer, perante um take over castelhano, definindo-a regionalmente. Assim criou uma
relação com a comunidade local, aquela que o escolheu como soberano. Em
marcha, encontrava-se uma nova geração de ilustres – a Ínclita Geração – e
o quinto filho do rei, Henrique, pegou numa marca forte, com pouco mais de
duzentos anos, e não só a reposicionou como a disponibilizou ao Mundo
inteiro.
A nova dinastia, a de Avis, iniciada por João I, tornou-se
peça-chave na genética e na divulgação do sentido de ser português,
assumindo uma nova óptica de lucro: a expansão.
Portugal criou, com D.Henrique, uma imagem
premium, estabelecendo as novas
regras de mercado: um Reino líder com uma expansão de rede nos quatro
cantos do Mundo conhecido, revelado pelos navegadores portugueses, pilares
fundamentais desta visão estratégica. Aliás, a imagem de grandiosidade
parecia atrair o infante, se aceitarmos o que nos sugerem as crónicas de
Zurara: havia nele um sentido da teatralidade, um gosto pela ética
cavaleiresca e desde cedo gostava de organizar cerimónias aparatosas.
Vestia-se com roupas caras, impunha aos seus criados o uso de librés
aparatosas, encenava festividades dispendiosas, para seu entretenimento ou
para assinalar a partida de exércitos portugueses ( como o que aconteceu
na partida para Marrocos, símbolo da sua biografia, já que na sequência da
tomada de Ceuta foi armado cavaleiro, com os seus irmãos ). A carta que
endereça ao seu pai, em1428, onde descreve o casamento, em Coimbra, do seu
irmão D.Duarte com Leonor de Aragão, parece destacar esse gosto pelo
fausto e suas grandezas: descreve com minúcia entusiasmada os detalhes da
ocasião...
É bem possível que a verdadeira biografia do Infante D. Henrique
esteja, no entanto, por contar, mesmo tendo em conta as largas centenas –
milhares? - de títulos que lhe foram dedicados ao longo dos séculos, do
aqui citado Gomes Eanes de Zurara, seu coetâneo e admirador, aos novos
interpretativos já no século XXI. A verdade é que ainda em vida sua, em
Portugal, produziu-se o mito em seu redor – transcendendo o homem, em
glória e imortalidade.
Assim, registamos que o Príncipe Henrique, o Navegador, também
conhecido como Infante Dom Henrique ou Infante de Sagres, Duque de Viseu e
Senhor da Covilhã, cavaleiro da Ordem da Jarreteira, dirigente da Ordem de
Cristo - que sucedeu à Ordem dos Templários e da qual D.Henrique foi
curador e administrador dos bens e não Grão-mestre como já se escreveu ,
num cargo que deteria até ao fim da vida - , foi sobretudo a mais
importante figura do início da era dos Descobrimentos – e um dos maiores
mitos da história portuguesa.
A sua figura é tão dilatada em fama e prestígio que até os ingleses
– sempre ciosos dos seus próprios valores - , a começar por Samuel
Purchas, famoso geógrafo britânico do século XVII - , quiseram destacar no
Infante o seu sangue inglês. E de facto, Henrique era um dos filhos da
princesa inglesa Filipa, de Lencastre ( isto é, natural de
Leicester, no Reino Unido). Filipa era da casa
dos Plantagenetas, por ser filha de João de Gant, primeiro Duque de
Lencastre, com Branca de Lencastre.
Tornou-se rainha consorte de Portugal através do casamento com o rei D.
João I, celebrado em 1387 na cidade do Porto. Este casamento foi
acordado no âmbito da Aliança Luso-Inglesa, um acordo firmado contra o
eixo França-Castela. Foi atribuída a Filipa a distinção inglesa da Ordem
da Jarreteira.
Terá sido na mesma cidade do Porto que nasceu o infante D.Henrique,
a 4 de Março de 1394. Henrique é um mito,
a começar não só por esta ascendência como também pelo dia do seu
nascimento. É que a data coincidiu com uma Quarta-Feira de Cinzas,
dia que se considerava, pela carga simbólica evidente, pouco propícia ao
nascimento de uma criança.
De proprietário rural, senhor efectivo e austero, Henrique levou a
sua ambição ao Mundo, tornando-se “dono moral” de um Império.
Como empreendedor, terá estabelecido, no entanto, o seu plano de
negócio a partir de uma realidade muito modesta: apesar de ser esse o
desejo do rei, o património da coroa não era suficientemente vasto para
para satifazer as suas ambições. Portugal era um reino pobre para prover a
cinco infantes. As guerras da independência tinham contribuído
decisivamente para esgotar o património da coroa. O plano de negócio é um
objecto que ainda hoje criamos com o objetivo de estruturar as principais
ideias e opções que o empreendedor analisará para decidir quanto à
viabilidade da empresa a ser criada. O seu plano de negócio parece ter
sido o de mover o reino para fora das fronteiras tradicionais, reunindo
uma frota e um exército poderosos rumo ao sul: a fronta era constituída
por quase uma centena de navios mercantes requisitados ou fretados (
muitos eram estrangeiros: castelhanos, flamengos, alemães, bretões e
ingleses ) e saíram do Tejo em 26 de Julho de 1415.
As descrições mais fidedignas afirmavam que “transportavam grande
quantidade de madeira e “máquinas de cerco”( outras fontes referem que
estas máquinas incluíam muitos canhões). Um esquadrão de vinte galés reais
acompanhava os navios reais que acompanhavam as tropas. Do Porto, sob a
direcção do jovem Infante D.Henrique, partiu um grupo de várias galés e
navios mercantes, equipados...
Um projecto ou empreendimento pessoal ou corporativo pode ser
estruturado e administrado de diversas maneiras, mas se o que se pretende
é capital ou recursos de investidores, de bancos-“incubadoras” ou de
outros órgãos de fomento, ou ainda se se pretende convencer outros
parceiros a investir numa ideia, há que colocar na ponta do lápis o plano
de negócios. No caso do Infante, esta “estreia” parece ser cuidadosamente
preparada, e a frota que partiu rumo ao norte de África era um ensaio que
resultava de muitos tempo de ponderação. Há notícia de que, quase dois
anos antes, em Março de 1413, D.Henrique tinha mantido conversações com os
mais experiementados generais de D.João I, com o intuito de preparar uma
cruzada contra o Islão – existem motivos para supor que o mesmo projecto
fora abordado pouco depois de concluída a paz com Castela, isto é, em
1411. Até há poucos anos, era apenas a crónica de Zurara a fornecer os
elementos para este momento crucial da história do Reino e do Infante,
todavia, novos documentos têm surgido capazes de fazer entender os
preparativos navais da expedição. Nesses documentos destaca-se o conjunto
de relatórios enviados de Portugal para Fernando I de Aragão, por Ruy Díaz
de Vega, um agente secreto castelhano ao serviço do rei Fernando ( que era
o soberano mais apreensivo quanto aos planos do monarca
português. Fernando temia que o objectivo português fosse uma
cidade na costa marroquina. Nos tempos pré-islâmicos, o então território
de Marrocos consistia na província visigótica da Mauritânia Tingitana,
governada a partir de Toledo. Castela tinha pretensões sobre o território
e uma iniciativa de João I de Portugal em Marrocos desagradava obviamente
aos castelhanos. De uma carta assinada em Sacavém, Díaz diz a Fernando que
o destino dos portugueses será Gibraltar ou Ceuta
).
Díaz relata a dimensão do exército expedicionário: 5400 homens de
armas, 1900 besteiros montados e 3000 desmontados. Mais 9000 peões ( o que
prefaz um total de mais de 19 mil homens ).
Díaz relata dados sobre tonelagem e quantidade da tripulação a
bordo de cada um dos navios estrangeiros já fretados pela coroa
portuguesa.
Este momento propodêutico da tomada de Ceuta é sintomático no que se
passará a seguir na vida e acção empreendedora do infante, acabado de sair
da adolescência mas aparentemente figura primordial no protagonismo entre
a elite dirigente portuguesa.
Muitos elementos convergem para a posterior acção empreendedora do infante
– e para o seu êxito. A sua ligação à Ordem de Cristo dota-o de meios
materiais diversificados.
A Ordem era herdeira da extinta Ordem dos Templários, cujas
riquezas eram famosas e incluíam os conhecimentos de navegação ( da
Península Ibérica ao Médio Oriente ).
Hoje sabemos que a Ordem de Cristo possuía cópias dos mapas do famosos
Claudius Ptolomeus, o carógrafo de Alexandria ( segundo século da era
cristã ), que mostravam o mundo romano, desde as Canárias à Taprobana ( na
índia, cerca de cem quilómetros do Sri Lanka actual ). D. Pedro terá
trazido ao irmão uma arca com mapas e um diário de uns irmãos venezianos,
oferta preciosa dos Doges de Veneza. O diário seria o de Marco Polo, com
muitas das suas anotações e os seus mapas preciosos.
Na lenda vasta em torno do infante, é hábito encontrar que terá
fundado uma vila no promontório de Sagres, onde terá vivido (
romanticamente a olhar para as ondas do Oceano Atlântico, e a pensar na
forma de intentar por elas as suas expedições descobridoras, ali fundado
uma escola de navegação ). Parece, isso sim, ter-se fixado nos arredores,
entre Budens e a Raposeira, a norte da estrada que liga estas duas
povoações a Lagos, no bonito concelho de Vila do Bispo, no barlavento
Algarvio. Curiosamente, ali ainda hoje se pode visitar a Ermida de Nossa
Senhora de Guadalupe, pequena ermida recentemente recuperada datada do
século XIII, com diversos elementos góticos numa base ainda românica que
pertenceu à Ordem dos Templários e depois à de Cristo.
Da escola de navegação nada se prova, a não ser a presença em
Portugal de um cosmógrafo célebre, Jaime de Maiorga. Com ou sem escola
formal, a verdade é que o acervo de mapas , portulanos e segredos de
técnicas de navegar que permitiam ir voltar e, (extremamente importante)
retornar a locais descobertos era o que de mais avançado havia na
cartografia; o infante, soube reunir esse material e perceber que valia
ouro, até porque permitia chegar ao ouro, e assim sendo protegeu
cartógrafos, dando-lhes guarida e libertando-os das grilhetas dos
corsários e piratas – percusores do actual “rapto de cérebros” - e
aproveitando o que hoje se chamaria o seu
know how, agindo mais uma vez
com visão empreendedora.
Nos arredores da sua Quinta da Raposeira, o
infante terá estabelecido estaleiros e oficinas de construção naval.
A partir das informações obtidas em Ceuta, todos os anos alguns
navios tentaram explorações para o sul, no que resultou a série de
descobrimentos, que imortalizaram a memória do infante D. Henrique. Em
1418, Bartolomeu Perestrelo descobriu a ilha do Porto Santo, cuja
capitania lhe foi confiada com permissão de el-rei; e João Gonçalves Zarco
acompanhado de Tristão Vaz Teixeira encontrou a Madeira; estas ilhas,
contudo, já eram conhecidas, tendo sido descobertas no tempo de D. Afonso
IV. D. Henrique, porém, não se limitou a dirigir as navegações, procurou
colonizar as ilhas que se iam descobrindo. A Madeira, principalmente.
Anos depois, em 1432, Gonçalo Velho Cabral, comendador de Almourol,
encontrou as ilhas dos Açores. No entretanto, não eram as ilhas do
Atlântico que cativavam os cuidados do infante.Vinte tentativas se haviam
feito para dobrar o cabo Bojador, mas os navegantes sempre recuavam por
terror supersticioso. Finalmente, D. Henrique armou uma barcha, cuja
capitania confiou a Gil Eanes, seu escudeiro, que partiu cm 1433, e voltou
sem nada ter adiantado (aportando às Canárias, retrocedeu com uns
cativos). Tornou a embarcar em 1434, e conseguiu o que se pensava ser
impossível: dobrar o cabo de todos
os temores. Em 1436, Afonso Gonçalves Baldaia, copeiro de D. Henrique,
percorrendo a costa ao sul do Bojador, descobriu o Rio do Ouro, e
desembocando na Angra dos Cavalos. Continuando para o sul chegou à Pedra
da Galé. Em 1441 Nuno Tristão descobriu o Cabo Branco, em 1443 a ilha de
Arguim, onde se estabeleceu uma feitoria, e em 1445 visitou a costa da
Senegâmbia, chegando até Palmar. A seguir, Diniz Dias dobra o Cabo Verde;
João Fernandes, em 1445, penetra no interior do Sudão e chega ao país dos
Tuaregues, sendo o primeiro europeu que explorou o interior do continente
negro até Taguor; no ano seguinte, 1446, Álvaro Fernandes descobre a Serra
Leoa, e reconhece a ilha de Gorea; em 1457 o veneziano Luís de Cadamosto e
o genovês António Nola, ambos ao serviço do infante, descobriram a Gâmbia;
em 1460 Diogo Gomes descobriu o arquipélago de Cabo Verde, que Cadamosto
pretendia haver descoberto, e que mais tarde se provou não ser verdade,
pela relação do próprio Diogo Gomes publicada em 1847 pelo Dr. Schmelles,
de Munique.
Quando se reformou a Universidade, em 1431, estando em Lisboa o
infante, fez-lhe doação por escritura da 12 de Outubro, dumas casas que
comprara na freguesia de S. Tomé. Em 25 de Março de 1448 fez mercê à mesma
Universidade de 12 marcos de prata, anuais, e consignados nos dízimos da
ilha da Madeira, para salário da cadeira de prima de teologia. Esta mercê
foi confirmada por carta de 12 de Setembro de 1460, pelo que se lhe deu o
título de Protector dos Estudos em Portugal.
O infante D. Henrique faleceu em Sagres; o seu corpo foi depositado
na igreja de Lagos, sendo dali trasladado para o convento da Batalha, em
1461, pelo seu sobrinho, o infante D. Fernando, filho de el-rei Duarte, a
quem pouco tempo antes havia constituído herdeiro e adoptara como filho.
D. Fernando veio a casar com sua prima D. Beatriz, filha do infante D.
João, e foi o pai de D. Diogo, duque de Viseu, e de D. Manuel, duque de
Beja, e rei de Portugal. Sobre o túmulo vê-se a sua estátua de pedra, que
em relevo o representa ao natural, vestido de armas brancas. e coroado de
coroa real entretecida de folhas de carvalho, e uma rosa no meio; tem nela
três escudos: o primeiro com as armas do reino de Portugal e as suas, e
nos outros dois as insígnias das duas ordens que professara, de Cristo e
da Jarreteira. Foram sua divisa uns ramos pequenos, e curtos como de
carrasco com seus frutos pendentes, e por mote em língua francesa as
palavras: Talent de bien faire.
Esta divisa também se vê no túmulo, tendo por baixo numa só linha, em todo
o comprimento do túmulo, um epitáfio em letra alemã. El-rei D. Manuel
mandou colocar também o seu retrato na estátua de mármore sobre a coluna,
que divide a porta travessa da igreja de Belém, como fundador da antiga
ermida de Nossa Senhora do Restelo, que existiu primeiro naquele local. (
Todas as representações do infante desmentem aquela que o destaca nos
painéis de São Vicente, com chapéu borgonhês e bigode, mais uma das lendas
que o ornamentam ). O seu empreendeorismo é inequívoco e assina uma das
páginas mais importantes da nossa história, capaz de encarar o Mundo e
dar-lhe novos mundos...
BIBLIOGRAFIA
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- Portugal Medieval, novas interpretações,
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SARAIVA,
José Hermano, Dicionário Enciclopédico de História de Portugal,
Lisboa
RUSSEL,
Henrique o navegador, Livros
Horizonte, Lisboa. 2004.
SUCENA, Eduardo, A epopeia templária e
Portugal, Lisboa, 2008
ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica da
Tomada de Ceuta por El-Rei D.João I, ed. Francisco Maria Esteves
Pereira, Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 1915
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