Nos séculos XVIII e XIX, reis, rainhas, nobres e muitos daqueles revolucionários que, mais tarde, viraram "pais" da pátria eram quase todos desdentados. Nesse aspecto, não eram diferentes da rude gente da plebe. Se não os vemos assim nas pinturas que procuraram imortalizá-los e, hoje, estão expostas em palácios e museus, é porque os artistas sempre se preocuparam em retratá-los de boca fechada. Se sorrissem, seria um vexame: veríamos falhas enormes. E, provavelmente, não os levaríamos muito a sério. Um desdentado é sempre motivo de riso.
Na verdade, a dor de dentes é um dos flagelos que atravessaram o século XVIII. Não havia quem, de qualquer posição social que fosse, não se queixasse do mal. Em cartas pessoais e nos relatórios burocráticos que repousam em arquivos, há sempre esse tipo de queixa. "A dor atravessa a linguagem arcaica, e o missivista surge em nossa imaginação, esperando com angústia que um tira-dentes itinerante chegue à cidade e, mediante uma breve tortura, ponha um fim às longas semanas de agonia", escreve Robert Darnton num dos ensaios que formam Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII , que acaba de sair pela Companhia das Letras, de São Paulo.
O nova-iorquino Darnton, 66 anos, talvez o maior especialista do mundo em século XVIII, professor de História da Universidade de Princeton, autor de livros memoráveis como Boemia literária e revolução (1987), O Iluminismo como negócio (1990) e Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária (1998), conta que, certa vez, ao visitar a propriedade de George Washington, em Mount Vernon, deparou-se com o que deve ser uma das mais estranhas relíquias já exibidas num memorial: os dentes falsos do antigo dono da casa, que estavam lá, atrás de um vidro, feitos de madeira.
Para Darnton, provavelmente, seria por isso que Washington, um dos paladinos da independência norte-americana, parecia tão austero nos retratos: de lábios cerrados, a pele da boca esticada, escondendo grosseiros dentes de madeira, que, móveis, eram tirados quando o seu dono tinha de mastigar e fustigar as gengivas para extrair sumo de algum alimento. Definitivamente, viver no século XVIII não deve ter sido nada bom.
Como lembra o historiador, nem mesmo monarcas estavam imunes à dor de dentes. Os médicos de Luís XIV quebraram sua mandíbula na tentativa de extrair molares apodrecidos. Claro, não havia equipamentos adequados nem qualquer tipo de anestesia. Acostumados às comodidades oferecidas pela tecnologia odontológica que surgiu já na segunda metade do século XX, não somos hoje capazes de imaginar o terror que representou para o homem do século XVIII a dor de dentes.
Na História do Brasil, temos até um grande vulto, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, ligado às artes odontológicas. Era conhecido como Tiradentes porque, nas horas vagas, em Vila Rica e em suas andanças pelo sertão de Minas, costumava ganhar uns cobres a mais por sua habilidade em arrancar molares ou caninos podres.
Com certeza, junto aos arreios de seu cavalo, levaria sua maleta com instrumentos. Seria sempre bem-vindo a cada lugarejo a que chegava onde houvesse alguém estremunhado por noites mal dormidas por causa de dor de dente.
Quando pesquisamos a documentação da capitania de Moçambique, Rios de Sena e Sofala, que está guardada no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa, encontramos extensas cartas do governador e capitão-general dom Diogo de Sousa ao Reino rogando o seu retorno. Pouco mais de um ano depois de instalado no Palácio de São Paulo, na ilha de Moçambique, capital das possessões portuguesas na contra-costa africana até 1897, dom Diogo, àquela altura ao redor dos 29 anos de idade, já implorava à rainha a sua volta a Lisboa, embora por lei não pudesse fazê-lo sem uma ausência de cinco anos.
Dom Diogo até anexou a um relatório o atestado de um cirurgião-mor confirmando que padecia de "uma afecção escorbútica" que lhe fizera cair os dentes. Reclamava que tinha as gengivas inchadas e a sangrar constantemente, o que lhe teria "degenerado uma lassidão, debilidade nos joelhos, o corpo com escamas, sintomas de afecção leprosa", como se pode ler no documento.
Apesar do tom lamurioso da carta que escreveu e da falta que os dentes lhe faziam, dom Diogo de Sousa teria vida longa, pois seria ainda nomeado governador da capitania do Maranhão e, mais tarde, passaria a fazer parte do Conselho Ultramarino. Passaria à História como conde de Rio Pardo, já incorporado à monarquia brasileira.
Se a vida já era difícil para um nobre, como dom Diogo de Sousa, que podia reunir em torno de si o que houvesse de melhor no burgo acanhado que comandava, imagine o que passavam os demais. Quase todos aqueles homens haviam enfrentado longas viagens marítimas - dias e dias em alto mar comendo alimentos salgados e bebendo água armazenada em grandes tanques de ardósia. Tudo aquilo favorecia o escorbuto, causado pela ausência de vitamina C. O resultado era o amolecimento das gengivas com a conseqüente queda precoce dos dentes.
Viver na ilha de Moçambique não seria mesmo o melhor dos mundos. Como a ilha tinha formação porosa, não era difícil a água servida misturar-se com a água das cacimbas e dos miseráveis poços, o que provocava doenças gástricas e intestinais. A medicina da época e a população, porém, atribuíam as doenças ao clima quente e aos monomocaios, ou seja, aos tufões, que assolavam a ilha com freqüência.
Por tudo isso, nada mais enganoso do que o retrato que João Maximiano Mafra pintou de Tomás Antônio Gonzaga na prisão, um jovem de longos cabelos a lhe caírem sobre os ombros. À época, o poeta já era um quarentão, que havia enfrentado algumas viagens marítimas e ainda teria de enfrentar uma das mais longas, do Rio de Janeiro à ilha de Moçambique, em 1792.
Na ilha de Moçambique, quando teve de enfrentar a má vontade de dom Diogo, talvez se deparasse com problemas pessoais semelhantes aos do governador, até porque chegara de uma temporada de três anos no cárcere da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. Teria todos os dentes? É bem provável que não, o que, porém, não o impediu de casar, oito meses depois de chegado à terra, com Juliana de Sousa Mascarenhas, rapariga de 18 anos de idade.
Incorremos, porém, em anacronismo, quando fazemos este tipo de observação, pois, afinal, no século XVIII, o amor nada tinha de romântico, estado de espírito que só o século seguinte consagraria. Os casamentos eram quase sempre arranjos familiares que levavam em conta interesses financeiros ou patrimoniais. E foram esses fatores que contribuíram para o casamento do poeta.
Era um desterrado, é verdade, mas havia sido ouvidor em Vila Rica, cargo sobremaneira importante. Era formado em Leis pela Universidade de Coimbra - que melhor prova de nobreza para um português do século XVIII? O casamento, a essa época, era para os que possuíam bens ou alguma distinção na sociedade, não para os pobres. Mas, tanto entre ricos como entre pobres, a paixão amorosa, ou seja, a interferência do amor e da atração física pelo cônjuge, era idéia hostilizada pela moral coetânea.
Pronto, já chegamos até aqui e quase nada dissemos sobre o livro de Robert Darnton. Por isso, as linhas que restam são para dizer que este é livro imperdível para quem se interessa pelo século XVIII porque, em vez das generalizações habituais sobre o Iluminismo, traz detalhes da vida e das idéias que a moviam. Não é a tentativa de buscar o insólito ou o curioso que move o historiador, mas sim a vontade de compreender melhor o passado. Conhecendo bem o passado, com certeza, daremos mais valor ao nosso presente.
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