Escrito no fim da vida e interrompido pela morte em 1975, quando o seu autor comemorava os 70 anos de idade, Solo de Clarineta reúne as memórias de Érico Veríssimo (1905-1975), concebidas como um diálogo mudo diante do espelho, com o Outro que vê diante de si e que lhe devolve a imagem de um homem já maduro, de carnes flácidas, cabelos ralos, sobrancelhas antes negras e espessas, agora, suavizadas pelo tom cinza deixado pelo tempo.
Em Solo de Clarineta, iniciado em 1970 e cujo primeiro volume saiu à luz em 1973, Veríssimo começa por rememorar os tempos de sua iniciação, traçando perfis criativos de pessoas que foram fundamentais em sua formação, especialmente de seu pai, homem que, deixando-se levar pelos apelos do erotismo, não soubera preservar o lar, perdendo a mulher de fibra com quem fora casado e acabara morrendo ainda moço, aos 54 anos, solitário e empobrecido, em São Paulo, bem distante da família.
Como um excepcional crítico de seu próprio trabalho, Veríssimo entrega-se à tarefa de passar a limpo a própria existência, aproveitando para rever seus textos ficcionais. E mostra, assim, num diálogo sincero com o leitor, a matéria-prima de seus personagens, revelando aqui e ali as pessoas de carne e osso que lhe serviram de inspiração.
A uma época em que a informática ainda engatinhava, Veríssimo compara o consciente a um “prodigioso computador cuja ‘memória’ (...) vai sendo alimentada e programada com imagens, conhecimentos, vozes, idéias, melodias, impressões de leitura etc...”.
É a esse banco de dados que o romancista recorre: “Quando, por exemplo, nos preparamos para escrever o romance e começamos a pensar nas personagens, o “computador”, sensível sempre às nossas necessidades, rompe a mandar-nos “mensagens”, algumas boas — pedaços físicos ou psicológicos de pessoas que conhecemos —, outras traiçoeiras — recordações de livros e “esquecidos” que nos podem levar ao plágio”, escreve, lembrando que cabe ao consciente fazer a seleção, repelir ou aceitar as mensagens do “computador”. Depois, acrescenta: “Nada do que nos vem à mente é gratuito. Não é possível nem creio que seja aconselhável tentar criar do nada, esquecer as nossas vivências, obliterar a memória”.
Ao lembrar a feitura de O Tempo e o Vento, que começou a escrever em 1947, quando tinha 42 anos de idade, conta como foram fundamentais os três anos vividos na casa de seu avô materno, de quem aproveitou o seu “ato de viver”, sua prosódia, a cadência de sua voz, sua sabedoria de vida, seus ditos, seu gosto em matéria de comida, a maneira como se vestia e tantos detalhes para escrever aquela que considerava talvez a obra mais importante de sua carreira.
Veríssimo também criou tipos femininos memoráveis, como Ana Terra, de O Tempo e o Vento, admitindo que, para isso, procurou ser essas mulheres, ao contrário de Ernest Hemingway, a quem acusa de não ter criado uma única personagem feminina verossímil, talvez em razão de sua obsessão de provar que era macho. “No fundo talvez isso fosse um sinal de insegurança quanto à sua própria condição de macho, o temor de que alguém pudesse pôr em dúvida sua virilidade”, especula.
Portanto, como observa o crítico Hildeberto Barbosa Filho, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba, autor do prefácio, Solo de Clarineta é obra indispensável à compreensão do processo de criação literária de Érico Veríssimo. Desde então, nenhum crítico pode mais se aventurar a decifrar o enigma de criação no ficcionista gaúcho sem levar em conta o que o próprio autor adiantou em suas memórias.
No primeiro volume de Solo de Clarineta, além de resgatar acontecimentos familiares, Veríssimo chega aos seus primeiros tempos de escritor, depois de uma experiência fracassada como dono de farmácia ainda em sua terra natal, Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, passando por seu casamento com Mafalda Halpen Volpe, moça de sua cidade, à época de seus anos iniciais em Porto Alegre, quando teve a sorte de empregar-se na Revista do Globo, da Editora do Globo, detalhe que seria decisivo para impulsionar sua carreira de criador literário. Escrevendo e publicando de maneira vertiginosa, a carreira de Veríssimo deslancha a uma época da vida em que a maioria dos romancistas ainda hesita na escolha de seus caminhos.
Depois de publicar vários romances, como Caminhos Cruzados e Música ao longe, de 1935, Olhai dos Lírios do Campo, de 1938, Saga, de 1940, Gato preto em campo de neve, de 1941, que relata a sua primeira viagem aos Estados Unidos, O resto é silêncio, de 1943, A volta do gato preto, de 1946, que conta a sua segunda viagem aos Estados Unidos, e O Continente, de 1949, e O Retrato, de 1951, ambos da trilogia de O Tempo e o Vento, Veríssimo é indiciado pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil, João Neves Fontoura, para assumir a Diretoria de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), cargo que exerceria por três anos a partir de 1953.
Passou a ter sob sua direção oitenta e tantos funcionários, inclusive um ex-ministro da Educação da Colômbia e vários detentores de título de Doutor em Filosofia e até um Harvard man. “E toda essa gente estava sob as ordens dum sujeito que nem sequer havia terminado o curso ginasial do Colégio Cruzeiro do Sul”, ironiza.
O segundo volume de Solo de Clarineta, publicado postumamente, em 1976, reúne textos deixados pelo autor a que o organizador Flávio Loureiro Gomes, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e professor da Universidade de Caxias do Sul, reuniu outros, que haviam sido apenas esboçados pelo autor em seu roteiro para as memórias. Depois de evocar a fase final da criação de O Tempo e o Vento, Veríssimo ocupa-se, principalmente, da viagem que fez a Portugal em 1959, além de estadas mais rápidas na Espanha e Grécia, em que nada escapa ao seu olhar atento.
De Portugal, anota as várias conferências fez em cumprimento a um roteiro programado por seu editor, António de Souza Pinto, da Editora Livros do Brasil, com a participação de Jorge de Sena. O que marca a maioria dessas conferências é a presença ostensiva de agentes da Pide, preocupada com os contatos que o escritor brasileiro fazia com figuras da oposição ao governo salazarista.
Veríssimo recorda com prazer a grandiosidade da recepção que lhe foi oferecida na Embaixada do Brasil em Lisboa pelo embaixador Álvaro Lins, admirável crítico literário, que àquela altura que muito mal visto pelo governo salazarista desde que concedera asilo na Embaixada ao general Humberto Delgado, um dos líderes da oposição portuguesa.
Depois de evocar recepção que lhe foi dada pela Sociedade Portuguesa de Escritores no Castelo de São Jorge, em que foi saudado por Jaime Cortesão, o romancista lembra a tarde de autógrafos de que participou numa das livrarias de Lisboa, quando se formou uma fila de comprimento de dois quarteirões. E cita a conferência que fez na Universidade Clássica de Lisboa, a convite da Faculdade de Medicina, quando um jovem universitário lhe perguntou a que atribuía a crise da literatura portuguesa à época: “À Censura, meu filho”, respondeu, de imediato. “Sem liberdade não pode existir plena criação literária ou artística”, acrescentou, pouco depois de ter sido apresentado ao público por um professor salazarista.
No Norte, surpreende-se com a influência britânica que paira sobre o Porto e conclui que a cidade é realmente “um varão de aspecto severo, um burgo com músculos e nervos de granito, solidamente plantado no seu rochedo”. A cor da cidade? “Um branco de osso, manchado aqui e ali pelo azulado de cúpulas, pela ardósia e pelo pardo avermelhado dos telhados, pelo verde grave dos parques e praças”.
Lembra que, depois da Primeira Guerra Mundial, o progresso das áreas urbanas de muitos países europeus começou a ser medido pela altura de seus “arranha-céus”, regozijando-se por aquele não ter sido o caso do Porto. Estava em 1959 e, portanto, com certeza, hoje muito lamentaria se visse várias das antigas ruas portuenses que tiveram vários de seus velhos prédios de quatro andares derrubados para dar lugar a edifícios modernosos, de discutível beleza arquitetônica.
De Portugal, Veríssimo chegou a colocar no papel todas as lembranças que carregava de sua visita ao país e estava começando a escrever sobre sua estada na Espanha quando a morte o alcançou. De seus últimos dias em Lisboa, colocou ainda no papel a armadilha de que foi vítima, quando convidado por um escritor a participar de um jantar no Círculo Eça de Queirós.
Só quando chegou ao local descobriu que caíra num ninho de salazaristas. Pensou com remorsos nos amigos da oposição portuguesa dos quais já se despedira, mas agüentou firme as homenagens que recebeu do mundo oficial. Nas memórias, porém, evitou revelar o nome do escritor que o “enganara”, ao levá-lo com palavras hábeis e melífluas aonde não queria ir.
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