Um romance que é mais uma prosa poética, quase sem enredo, que trata de um
tipógrafo brasileiro que, à beira do rio Douro, faz um devaneio em que
procura recuperar a vida perdida e descobre que ainda pode amar. Escrito a
quatro mãos, pela angolana Ana Paula Tavares e pelo portuense Manuel Jorge
Marmelo, Os olhos do homem que chorava no rio mais parece feito por uma só
alma, embora tenha tido o seu tema sugerido por um terceiro escritor, o
brasileiro Paulinho Assunção. Assim, a exemplo de um antigo romance de
Adonias Filho (1915-1990), Luanda Beira Bahia, de 1971, refaz-se uma
triangulação nas literaturas de expressão portuguesa, desta vez, reunindo
Huíla, Porto e Belo Horizonte.
Diz Paulinho Assunção (1971), amigo dos autores, que este é um
livro-música-de-câmara. E o define muito bem, pois é mais uma fantasia
onírica. Afinal, de sua leitura pode-se ouvir sons mágicos, o som que vem da
correnteza do rio, do fluxo de pensamento. Como não se sabe quem escreveu o
quê, o que se pode dizer é que os autores produziram um romance que é também
uma prova prática das idéias do pensador francês Gaston Bachelard
(1884-1962), autor A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria
(São Paulo, Martins Fontes, 1989, tradução de Antônio de Pádua Danesi), para
quem "contemplar a água é escoar-se, dissolver-se, é morrer". Até porque não
há quem, ao se sentar perto de um riacho, não caia em devaneio profundo nem
deixe de rever a sua ventura.
Diz Bachelard que é possível descobrir-se duas águas, a da alegria e a da
dor, mas, no caso deste livro de Ana Paula e Marmelo, essas águas se
confundem, misturam-se. Ora, transmitem tristeza, ora felicidade. Diz ainda
o pensador que há duas maneiras de se ler semelhantes textos: pode-se lê-los
seguindo uma experiência positiva, num espírito positivo, tentando evocar,
entre as paisagens que a vida nos fez conhecer, um local onde podemos viver
e pensar à maneira do narrador. Nesse caso, a leitura seria pobre, difícil
de se chegar ao fim.
Mas pode-se ler essas páginas tentando simpatizar com o devaneio criador,
procurando penetrar até o núcleo onírico de criação literária, comungando,
pelo inconsciente, com a vontade de criação do poeta, diz Bachelard. E aqui
este livro adquire grandeza, porque traz uma transcendência inata. Não
importam muito o seu arremedo de enredo, sua breve intriga ficcional, mas
sim o espetáculo da palavra que oferece, o lirismo que vem do rio.
É o que se pode constatar, por exemplo, quase ao final do livro, quando se
dá o encontro do tipógrafo com a sua eleita: "A solução anda agora à solta e
dela se abeiram a menina, o tipógrafo e os vultos que sobram. Estão todos na
margem. Vestida de branco - a brisa fazendo esvoaçar a seda, bailar os
cabelos azuis -, a rapariga vai descalça, caminha com passos leves que são
quase um esvoaçar ligeiro e rasante. Sorri e não sabe bem porquê. Avança com
o peito inflado, a cabeça erguida".
Como observa Bachelard, esse tipo de descrição, entregue à sua função
subjetiva, dá outra visão do mundo, ou melhor, a visão de um outro mundo.
Escrevem os autores: "Os vultos estão no exacto limiar da terra, voltados
para as águas, e a menina não os vê, não por lhe terem voltado as costas,
não por serem invisíveis ao olhar dos homens, mas apenas porque tem os olhos
postos longe. Avança, por isso, indiferente à parada silenciosa e
cabisbaixa, ao cerimonial das sombras da beira do Douro. O tipógrafo vem em
sentido contrário, com a fileira dos vultos à esquerda. Não sorri. Traz
apenas um rosto sereno, duro ainda, e o vento que entra pela boca do rio
brinca-lhe com a melena escura dos cabelos".
Se o adeus à beira mar é simultaneamente o mais dilacerante e o mais
literário dos adeuses, como diz Bachelard, o encontro diante das águas de um
rio explora um velho fundo de sonho e de heroísmo. Nas lendas pagãs ou
cristãs, tendo atravessado as águas, as crianças abandonadas ao rio e que
sobreviviam tinham simbolicamente atravessado a morte. E esses seres
miraculosos podiam, então, salvar povos, refazer mundos. Assim, também um
casal de enamorados que se reencontra diante do rio, como no livro de Ana
Paula e Marmelo, dá início a uma nova vida, deixa para trás os dias aziagos
e parte para uma viagem jamais feita. "De mão dada, menina e tipógrafo
avançam também para o Douro. São poucos passos para tanta felicidade. Sabem
que devem despedir-se, talvez agradecer. Sabem que o rio os uniu e que
continuará a estar na vida de ambos".
No último parágrafo, lê-se: "As águas estão de uma cor que não existe em
mais lado nenhum - apenas num livro". Enfim, volta-se à realidade, o sonho
acabou e as águas já não são a superfície quase parada do Douro, já não são
o sonho onírico, mas apenas as águas evocadas por um livro.
Portuense, Manuel Jorge Marmelo (1971) é um dos mais produtivos escritores
portugueses da atualidade. Após a sua estréia, em 1996, com O homem que
julgou morrer de amor, publicou sete romances (entre os quais Português,
guapo y matador, O Amor é para os Parvos e Sertão Dourado), um volume de
contos com fotografias, uma coletânea de crônicas (Paixões & embirrações),
um álbum sobre o Palácio de Cristal, do Porto, e uma história para crianças
(A menina gigante, escrita em colaboração com a filha). Em breve, será
editada a primeira tradução integral de um livro seu, o romance As mulheres
deviam vir com livro de instruções, a ser lançada na Espanha pela editora
basca Txalaparta e, posteriormente, no Chile, Argentina e Uruguai.
Já a poeta Ana Paula Tavares (1952), nascida em Huíla, ao Sul de Angola, é
historiadora com o grau de mestre em Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa. Em Angola, publicou Ritos de passagem (poemas), pela União de
Escritores Angolanos, em 1985. Em Cabo Verde, saiu O Sangue da Buganvília em
1998. Pela Editorial Caminho, de Lisboa, publicou O Lago da Lua (poemas), em
1999, seguindo-se Dizes-me coisas amargas como os frutos (poemas), em 2001,
obra vendcedora do Prêmio Mário Antônio de Poesia 2004 da Fundação Calouste
Gulbenkian, Ex-Votos (poemas), de 2003, e A cabeça de Salomé (crônicas), de
2004.
Tem participação com poesia e prosa em várias antologias em Portugal,
Brasil, França, Alemanha e Espanha. Publicou alguns ensaios sobre História
de Angola.
Paulinho Assunção, mineiro de São Gotardo, também é poeta, ficcionista e
jornalista profissional, com mais de uma dezena de livros publicados.
Participou do Suplemento Literário do Minas Gerais, a convite de Murilo
Rubião, e foi repórter durante mais de 15 anos na sucursal em Belo Horizonte
da Agência Estado (O Estado de S. Paulo). Ganhou o Prêmio Cidade de Belo
Horizonte, de 1983, com Diário do Mudo (poesia), e o Prêmio Minas de Cultura
Guimarães Rosa, categoria contos, da Secretaria de Estado da Cultura de
Minas Gerais e da Universidade Federal de Minas Gerais, em 1998, com Pequeno
Tratado Sobre as Ilusões, editado em Portugal pela Campo das Letras, do
Porto, em 2003.
Da união inter-atlântica entre esses três autores, nasceu uma das mais belas
criações da lusofonia nos últimos anos em que as personagens foram apenas
pretextos para se produzir uma narrativa marcada pela intervenção do
fenômeno poético, ritmada como uma canção, um hino de amor ao rio Douro.
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