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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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O cruel realismo do cais do
porto: Os Vira-latas da Madrugada, de Adelto Gonçalves*
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Por MAURÍCIO SILVA |
Maurício Silva possui doutorado e
pós-doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela Universidade de São
Paulo; é professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na
Universidade Nove de Julho (São Paulo); atuou como pesquisador da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro de 2012 a 2013 e, atualmente, é
pesquisador residente da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da
Universidade de São Paulo; é autor de A Hélade e o Subúrbio.
Confrontos Literários na Belle Époque Carioca (São Paulo, Edusp,
2006), A Resignação dos Humildes. Estética e Combate na Ficção de
Lima Barreto (São Paulo, Annablume, 2011), e O Sorriso da
Sociedade . Literatura e Academicismo no Brasil da Virada do Século
(1890-1920) (São Paulo, Alameda, 2012), entre outros. |
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I |
Mais de uma vez se chamou a atenção do público-leitor para uma curiosa
contradição que parece ter-se instalado de maneira sólida e obstinada no
universo literário brasileiro, a qual não nos custa repetir: enquanto a
recente produção literária nacional revela-se impressionantemente
criativa, ela recebe, em contrapartida, um tratamento incompatível com
sua qualidade estética, principalmente nos meios de comunicação e nos
canais de divulgação artística, isto quando não são relegadas ao
completo ostracismo, resultado de um silêncio ao mesmo tempo pérfido e
cruel. Tal constatação pro cura, antes de mais nada, colocar por terra a
propalada tese de que a literatura nacional estaria vivendo uma grave e
crônica crise criativa, opinião assentada antes sobre um imponderado
exercício de impressionismo crítico, do que sobre uma análise imparcial
da atual realidade estética de nosso país.
Exemplo claro, entre outros, de uma literatura em muitos aspectos
reveladora – e, sintomaticamente, pouco lembrada pela crítica – é a obra
literária do jornalista e escritor Adelto Gonçalves, que com o seu
premiado romance Os Vira-latas da Madrugada (1981) está por
merecer um lugar de destaque dentro da mais recente produção literária
nacional. Natural da litorânea cidade de Santos e tendo dedicado grande
parte de sua atividade profissional ao jornalismo, Adelto Gonçalves é um
típico exemplo do descaso que a crítica literária contemporânea tem
devotado aos mais novos escritores.
Tal descaso, contudo, revela-se de todo injustificado: manipulando
basicamente duas categorias universais distintas – o homem e o meio –,
Adelto Gonçalves procura, em seu romance, retratar o embate travado
entre ser e espaço, entre o físico e o humano, embate este marcado por
uma forte carga emotiva e realista. Neste sentido, não nos parece
demasiado exagero afirmar que o autor se coloca, embora em menor grau,
entre alguns dos continuadores da tradição literária que reconhece no
espaço um componente privilegiado do romance, elemento no qual o ser
alcançaria sua plena realização ou a sua mais absoluta decadência.
Assim, poder-se-ia inserir sua obra, feitas as devidas ressalvas, na
categoria do que a teoria literária convencionou chamar de “romance de
espaço”1, em que talvez pudéssemos introduzir nomes tão relevantes como
os de José Eustasio Rivera (La Vorágine), Euclides da Cunha (Os
Sertões) e Rómulo Gallegos (Doña Bárbara), para ficarmos
apenas nos latino-americanos. Logicamente, semelhante observação não
busca dar ao romance de Adelto Gonçalves o mesmo grau de importância
desses que, indubitavelmente, podem ser considerados verdadeiros
clássicos da Literatura Latino-Americana, mas apenas revelá-lo como mais
um dos originais herdeiros de tão fecunda tradição.
Deste modo, se nas obras aqui citadas o que se verifica, acima de tudo e
num primeiro instante, é a disputa que acirradamente trava o homem e a
floresta (Rivera), o homem e o sertão (Cunha) e o homem e a planície
(Gallegos), em Os Vira-latas da Madrugada o mesmo embate pode ser
percebido entre o homem e o cais do porto, um espaço, como todos os
demais aqui aludidos, marcado por características peculiares, por normas
e leis próprias, por uma realidade singular.
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II |
O romance de Adelto Gonçalves desenvolve-se em Paquetá, bairro da zona
portuária de Santos, onde aliás o autor viveu a maior parte de sua vida.
É um romance de muitas personagens, embora com pouco destaque para elas,
já que, como fora aludido, é o componente espacial que ganha maior
relevo no decorrer dos acontecimentos; a existência trágica, o
sofrimento cotidiano, a luta homérica contra um meio físico subversivo
parecem ser o elo inexorável que liga figurantes e personagens a um
destino comum. No rastro desses elementos, o autor procura dar aos
acontecimentos um caráter documental, seja por vários de seus episódios
estarem assentados em f atos do cotidiano, trazidos à tona por meio das
reminiscências do próprio autor (“eu era muito pequeno, quando
algumas destas histórias aconteceram”)2, seja pela tentativa
confessada do autor em colocar em seu romance personagens que um dia
existiram de fato. Não obstante o romance tender ao documental, Adelto
Gonçalves não hesita em rechaçar qualquer intenção em fazê-lo histórico
(“não pretende este livro uma imagem de histórico”, p.31).
Analisando o cenário em que os episódios se desenrolam, percebe-se que,
com uma habilidade inquestionável, Adelto Gonçalves desloca a narrativa
de cenário tradicional, caracterizada pela dicotomia cidade/campo, para
uma realidade totalmente nova e diferente – o cais do porto. Sem ser
campo, mas também sem chegar a ser completamente cidade, o cais do porto
parece situar-se numa zona limítrofe, num indefinível meio-termo,
universo norteado por uma espécie curiosa de natural dicotomia: contém,
ao mesmo tempo – e numa mistura que apenas um espaço com características
tão originais poderia conter –, particularidades tanto do campo quanto
da cidade, o que nos permite reformular nossa afirmação anterior: para
além de ser uma região dicotômica, o cais do porto é, sobretudo, um
espaço híbrido.
Por ser híbrido, ele também agrupa em si o arcaico e o moderno, trazendo
consigo todas as infinitas contradições que esta mistura pode acarretar:
excessos, desvios e, principalmente, injustiças. Caberia, a esta altura,
perguntar em que o meio físico do cais, stricto sensu, se difere
dos demais. Em que, realmente, ele é peculiar? Uma simples análise da
descrição que o autor faz do local parece-nos suficiente para que estas
peculiaridades aflorem em definitivo:
“mais adiante, viu novamente os armazéns das docas, uma locomotiva
passando rápida, solitária, os guindastes que se sobressaíam além do
teto dos armazéns. De vez em quando, um caminhão passava, em meio aos
buracos, espirrando lama das poças fétidas – um cheiro de mistério como
o de todos os portos do mundo. E perdeu-se na zona do Golfo: à esquerda,
um sem-fim de armazéns amarelos, sujos, descaiados – cargas em fileiras
nas ruas, cobertas por encerados, um policial adiante –, à direita, uma
longa fila de botequins – mulheres desenxabidas sentadas às portas,
olhando a chuva batendo nas pedras das ruas, nas latas vaz ias” (p.
21).
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III |
Guindastes e botequins, lama e prostitutas, música e locomotiva: tudo
parece contribuir de maneira inusitada para a composição de um cenário
francamente grotesco; a conformar sua paisagem, há ainda a presença
sugestiva de morcegos e ratos, da densa lama a se espalhar continuadamente
por todo o cais, da atmosfera decadente do local, além de sua
aparentemente natural subversão.3
No limite, contudo, é o elemento humano que faz do cais o que ele
realmente é, fisicamente ou não: um mundo à parte, marcado pela violência
e pela injustiça, pela extrema individualidade e absurda inconsequência,
pela trágica fatalidade a se refletir nos olhos dos homens e pela
contundente tristeza a dissimular-se no sorriso acanhado das mulheres:
“mas igual a este beira-cais, como dizem os velhos marinheiros, não
existe lugar em outra parte do mundo. Aqui é onde as mulheres das ruas já
não brigam mais por causa da traição do amante, mas porque a outra lhe
roubou o freguês; onde os moleques, vira-latas da madrugada, percorrem a
noite inteira em busca de um otário, roubam os bêbados caídos nas
calçados, dormem com os pederastas e vivem de pequenos furtos (...); onde
os pretos esfarrapados se deitam nos vãos de porta e dormem com o cuspe
grosso de cachaça escorrendo no canto da boca e sonham com a família que
não tiveram e com a moça loira que anuncia Coca-cola (...); on de as
pessoas têm a cor do rosto amarelada, pálida, os olhos fundos, o cabelo
ensebado, a pele macilenta como a dos jogadores de sinuca” (p. 33).
E assim chegamos ao outro pólo do embate que – ao lado do espaço romanesco
– a obra de Adelto Gonçalves procura retratar: o humano. Em Os
Vira-latas da Madrugada, as cenas como que se desprendem das páginas
do livro para preencher um espaço na mente do leitor: não são cenas
simples, comuns, mas antes passagens dotadas de uma intensa complexidade
existencial, que se esconde por detrás de cada ato realizado ou de cada
palavra proferida.
Uma questão social se impõe logo de início: Os Vira-latas da Madrugada
são um romance dos marginalizados. Em suas páginas, prolifera-se todo um
universo por meio do qual o autor procura revelar a crua e violenta
realidade do cais, onde bêbados e prostitutas disputam um espaço nos
botequins, onde meninos de rua partem em busca de algum dinheiro fácil,
onde trabalhadores tristes e solitários – embrutecidos pelo ofício duro e
desvalorizado – pervagam sem destino pelas ruas enlameadas. Assim, temos
um quadro de relações sociais completamente subvertidas nesse mundo em que
reinam a malandragem, o poder perverso e a exploração.
Entre o patético e o selvagem, há a dura realidade – seja ela a realidade
da prostituição, seja ela a realidade do poder. Assim, aos olhos de Sula,
a realidade de uma existência prostituída – mais do que a de um corpo
prostituído – mistura-se melancolicamente com o seu passado ideal, agora,
mais do que nunca, distanciado do presente; e esta é apenas mais uma das
muitas mulheres que cumprem rigorosamente um destino marcado pela
humilhação, pela violência e pela tragédia pessoal. No que diz respeito à
realidade do poder, também pode-se perceber no romance todas as suas
perversões, todos os seus desvios, quer se trate do poder político
constituído, do poder policial-repressor ou do poder da coerção social.
O que sobra de tudo isso é uma compreensão profundamente pessimista da
realidade, a qual é compartilhada por quase todas as personagens do
romance, mas particularmente por Marambaia.
Também o leitor é tomado, de certa maneira, pelo clima pessimista que logo
se impõe: acompanhando de perto a narração dos acontecimentos no cais, ele
passa, involuntariamente, a sofrer com as personagens da história,
compartilhando de seus anseios e angústias, de suas tristezas e desgostos,
de seus tormentos e aflições.
As últimas palavras do autor marcam o encerramento do romance, mas também
atam as duas pontas de um fio narrativo que vinha percorrendo toda a obra.
Sua conclusão revela-se particularmente constrangedora – como o próprio
autor faz-nos perceber, trata-se de uma autêntica confissão, onde se pode
facilmente distinguir a mescla de dor e revolta que a conforma:
“as vozes que me trouxeram até aqui já não ouço mais. Estão mortas,
estão assassinadas. Este irregular relato é só uma homenagem a essas vozes
que se calaram cansadas de testemunhar tanta ignorância e violência em
nome de valores morais que a ambição já desmoralizou há muito tempo”
(p. 163).
Suas cruéis histórias, por isso, são tão mais cruéis quanto mais reais se
tornam com o tempo.
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Notas
(*) Publicado em
Sentidos Secretos – Ensaios de Literatura Brasileira (São
Paulo, Editora Altana, 2005, págs. 137-144) e em Leopoldianum. Revista
de Estudos e Comunicações, Santos, vol. XX, nº 56: 144-149, abr. 1994.
1 KAYSER, Wolfgang. Análise e
Interpretação da Obra Literária. Introdução à Ciência da Literatura.
Coimbra, Arménio Amado, 1976.
2 GONÇALVES, Adelto. Os Vira-latas
da Madrugada. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981. Todas as referências
a esta obra serão retiradas desta edição, doravante aparecendo apenas o
número da(s) página(s) em que se encontram.
3 Para uma definição sucinta do
grotesco, consultar: MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários.
São Paulo, Cultrix, 1978, e KAISER, Wolfgang. O Grotesco. São
Paulo, Perspectiva, 1976.
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