|
REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
|
|
|
|
|
Adelto Gonçalves |
|
"Ladeira
do Tempo-Foi’,
um romance machadiano
|
|
I |
É como se Machado de Assis
(1839-1908) tivesse vivido mais meio século e tido a oportunidade de
passar os seus derradeiros anos no tradicional bairro de São Cristóvão,
no Rio de Janeiro da década de 1950, recolhendo material e passando para
o papel o que vira e sentira em meio aos seus moradores. É assim que se
haverá de sentir o leitor ao acabar de ler o romance
Ladeira do Tempo-Foi (Rio de
Janeiro, Synergia Editora, 2017), do arquiteto e professor Helio Brasil,
sua segunda experiência no gênero.
Obviamente, este já é outro Rio
de Janeiro que se percebe neste livro, se comparado aos romances
machadianos, mas a alma das ruas é a mesma, bem como os seus
logradouros, praças, calçadas, ladeiras, portões, sobradões, janelas,
esquinas, quartéis, mercearias, armarinhos, botequins, igrejas e
escolas. Até porque quem o descreve é um carioca de quatro costados,
nascido e vivido em São Cristóvão, autor de outro livro que igualmente
resgata o bairro, São Cristóvão - memória e esperança (Rio de Janeiro, Prefeitura do
Rio de Janeiro/Editora Relume Dumará, 2004), que viria a ser reeditado
em 2016 pela Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro
(Faperj) na obra coletiva Cantos
do Rio – imagens literárias de
bairros e localidades cariocas, volume que reúne 13 textos.
E que, em sua primeira
experiência no romance, A última
adolescência (Rio de Janeiro, Editora Bom Texto, 2004), já havia
explorado a mesma paisagem de São Cristóvão, a exemplo do que faria em
vários contos. Para ele, São Cristóvão é metaforicamente um território
pessoal de vivências ou “uma bela e colorida amostragem do brasileirismo
e do carioquismo”, como diz na dedicatória. Em outras palavras:
Ladeira do Tempo-Foi constitui
uma bem sucedida, onírica e proustiana busca de um tempo perdido na
memória do autor.
Sem contar que o seu saboroso
estilo é indisfarçavelmente inspirado no texto machadiano, ainda que
adaptado aos nossos dias. Enfim, trata-se de “uma viagem ao mundo
carioca e brasileiro dos meados do século XX, conduzida com vigor
narrativo neste romance que surpreende a cada passo”, como bem observa
Gustavo Barbosa, escritor, professor, consultor editorial, consultor de
comunicação, editor e produtor de conteúdo multimídia, no texto de
apresentação que escreveu para este livro.
|
|
II |
Num cenário que lhe é extremamente
familiar, o romancista cria (ou transporta personagens reais para a
ficção?) uma ampla galeria de personagens – imigrantes portugueses e
espanhóis, professores, comerciantes, senhorios, burocratas, donas de
casa, prostitutas, policiais, malandros, boêmios, pobres, ricos e
remediados, brancos, gringos e portugas, pretos e mulatos, trabalhadores
braçais, funcionários e doutores e outros tipos típicos das ruas cariocas
daquele tempo, por onde ainda se podia andar sem medo de ser surpreendido
por uma bala perdida.
É nesse ambiente que o leitor vai
acompanhar a vida do professor Carlos Jordão, morador na Ladeira do
Tempo-Foi, ao pé do morro, leitor assíduo de estudiosos como Anísio
Teixeira (1900-1971) e Gilberto Freyre (1900-1987), casado com Leonor, de
família açoriana chegada havia pouco ao Brasil, mãe de seu filho
recém-nascido Felipe e moça “esculpida pela educação camponesa, mas não
rústica”. Viviam num sobrado, vizinhos de outras famílias, mas alimentavam
o sonho de abrir uma conta na caixa econômica para fazer um pé-de-meia e
comprar uma casa, para escapar daquela vizinhança de gente pobre.
A vida familiar vai bem até que,
um dia, chegam num caminhão de mudanças os rústicos e poucos móveis de uma
vizinha, Idália, jovem pobre, ex-operária da fábrica de tecidos de Bangu,
que traz apenas o seu filho, Lula, menino doente, deficiente mental. E vai
morar no porão do velho sobrado. Acontece que a morena Idália é também uma
mulher de formas exuberantes, que atrai o olhar dos homens nas ruas por
onde passa. E o seu cheiro feminino começa a inebriar também o jovem
professor.
Nasce, então, um romance às
escondidas entre o professor e a morena, que não é interrompido nem mesmo
quando a mulher é despejada do porão do sobrado por falta de pagamento do
aluguel. Sem alternativa, ela vai viver num sobrado da Rua Riachuelo,
perto da Lapa, que fora transformado em
rendez-vous.
Idália vira prostituta, mas
continua a receber entre os seus clientes o jovem professor, embora fosse
perseguida por seu antigo amante, o rufião Ranulfo. A vida familiar do
professor é, então, abalada por uma denúncia anônima que vem num papel mal
escrito e faz a açoriana largar a casa, levando consigo o filho Felipe. O
lar burguês só seria refeito quando ocorre a tragédia que marca o romance:
Idália e o filho doente, um dia, seriam mortos a facadas pelo malandro
Ranulfo.
|
|
III |
Se o Rio de Janeiro – e, por
extensão, o Brasil – e o contexto em que se passa o romance já não são
aqueles das obras de Machado de Assis, ainda havia na sociedade brasileira
da década de 1950 os sinais do clientelismo e do patriarcalismo que, ao
lado da escravidão, constituíam as formas sociais que dominavam o País à
época machadiana. Os conflitos de classe seriam, praticamente, os mesmos e
o professor Jordão, ainda que não fosse alguém que pudesse ser visto como
uma pessoa bem posta na vida, não poderia assumir publicamente o seu
relacionamento com a lasciva mulata Idália.
Outro personagem que parece saído
de um romance machadiano – mas, quem sabe, seja antes o protótipo do
brasileiro médio – é o professor José Lírio, colega de Jordão na escola
municipal do bairro, o Ginásio Santa Cordélia, onze anos mais velho,
casado, mas que mantém um romance igualmente clandestino com uma aluna,
Ana Luíza, 17 anos declarados, mas que, na verdade, seria uma adolescente
de apenas 15 anos.
Empregado também num ministério da
República, Lírio transitava com certa facilidade nos corredores da
política no Distrito Federal. E, com o retorno de Getúlio Vargas
(1882-1954) ao poder, agora por meio de eleições livres, e a entrada no
Ministério da Educação de Simões Filho (1886-1957), respeitado
intelectual, via a oportunidade de cavar para si e para o colega de
trabalho no Santa Cordélia uma colocação no grupo que haveria de preparar
um livro encomiástico sobre a trajetória de Vargas. Um seria assessor do
outro.
Como se vê, a exemplo de Machado
de Assis, a visão que Helio Brasil tem de seus personagens não é
sentimental, mas realista. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de
reconhecer no autor um tom saudosista do tempo que ele mesmo viveu no
bairro de São Cristóvão. Tudo isso faz deste livro um dos lançamentos mais
auspiciosos da Literatura Brasileira neste começo de século XXI.
|
|
IV |
Helio Brasil (1931), nascido no
bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, é formado em 1955 pela
Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi funcionário do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES), entre 1955 e
1984, tendo realizado projetos para as instalações da instituição.
Projetou edifícios comerciais, industriais e residenciais no Rio de
Janeiro e em outros Estados. Foi professor da disciplina Projeto de
Arquitetura, durante vinte anos, na Universidade Santa Úrsula, na UFRJ e
na Universidade Federal Fluminense (UFF).
É autor de
São Cristóvão – memória e esperança;
O anjo de bronze
e outros contos (Rio de Janeiro,
Oficina do Livro, 1994); A última
adolescência; Tempos de Nassau:
um príncipe em Pernambuco, ficções, com vários autores (Rio de
Janeiro, Bom Texto, 2004); Cadernos
(quase) esquecidos (crônicas autobiográficas, edição de autor) e
Pentagrama acidental (novelas,
Editora Ponteio, 2014). É co-autor com Nireu Cavalcanti de
O Tesouro – O Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de
Janeiro (Rio de Janeiro, Pébola Casa Editorial, 2015) e com José
Rezende Reis de O Solar da Fazenda
do Rochedo e Cataguases (memórias, Synergia Editora, 2016), em segunda
edição. Participou ainda de coletâneas de contos das editoras Uapê, Bom
Texto e 7Letras.
|
|
|
Ladeira do Tempo-Foi,
de Helio Brasil, com texto de apresentação de Gustavo Barbosa. Rio de
Janeiro: Synergia Editora, 220 págs., R$ 40,00, 2017. Site:
www.synergiaeditora.com.br
E-mail:
synergia@synergiaeditora.com.br
|
|
Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
|
|