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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Em busca das raízes no Brasil profundo (*)
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O homem, através dos tempos, sempre sonhou com o
retorno às suas raízes, ou seja, à terra de seus pais e avós ou mesmo ao
local onde nasceu e de onde saiu para ganhar o mundo. Talvez tenha sido
assim desde a Antiguidade, como se pode ler em A Odisseia, grande
obra clássica e épica do poeta grego Homero (século VIII a.C.), que conta
a história de Ulisses (Odisseu), rei de Ítaca, ilha supostamente
localizada no mar Jônico, que seria casado com Penélope e tinha um filho,
Telêmaco.
Quando Páris, príncipe troiano, raptou Helena, a mulher mais bela do mundo
e esposa de Menelau, rei de Esparta, preparou-se uma expedição contra
Troia, na qual Ulisses tomou parte ativa. Durante os dez anos do cerco a
Troia, Ulisses teve um papel decisivo. Depois, com as feridas
cicatrizadas, levou mais dez anos para retornar a sua Ítaca, onde estavam
suas raízes, a pátria de seus sonhos. Mas o importante da história não é o
seu retorno, mas a longa e sobressaltada viagem que fez para voltar para
casa.
Com isso, parece que Homero queria dizer que todo homem sempre sonha com o
seu retorno às raízes, o eterno retorno, de que dizia o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche (1844-1900). Se tudo retorna eternamente, o futuro já
é um passado; e o presente é tão passado quanto o futuro, dizia o
filósofo. Em Assim Falou Zaratustra (1883-85), Nietzsche retoma a
ideia do devir formulada por Heráclito (535a.C-475a. C), segundo a qual
tudo flui, tudo muda, tudo passa e tudo retorna, girando assim a
roda deste mundo.
Em A insustentável leveza do ser, Milan Kundera conta que, certa
vez, ao folhear um livro sobre Adolf Hitler (1889-1945), emocionou-se com
algumas fotos do ditador, pois lhe lembravam o tempo de sua infância.
“Essa reconciliação com Hitler trai a profunda perversão moral inerente a
um mundo fundado essencialmente sobre a inexistência do retorno, pois
nesse mundo tudo é perdoado por antecipação e tudo é, portanto,
cinicamente permitido”, escreveu.
Já o filósofo romeno Mircea Eliade (1907-1986), em O mito do eterno
retorno, lembra que este mito existe em todas as religiões, pois
reconstitui a passagem do tempo, o percurso entre o começo e o fim, a vida
e a morte. Para Eliade, ao narrar um mito, reatualizamos, de certa forma,
o tempo sagrado no qual se sucederam os acontecimentos de que falamos,
como diz em Imagens e símbolos (1961) É esse tempo sagrado que nos
ficou na memória que, de certo modo, todo homem procura reconstruir, ao
buscar suas raízes.
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Nicodemos Sena |
Foi, aliás, o que este
crítico procurou fazer em janeiro de 1990, quase quarentão, depois de
entrevistar o escritor catalão Eduardo Mendoza, em Barcelona, para um
trabalho de mestrado na Universidade de São Paulo (USP), ao viajar de trem
até Vigo, na Galiza, e de lá de caminhoneta rumo ao Porto, para no dia
seguinte buscar na freguesia de Carvalhosa, comarca de Paços de Ferreira,
no Norte de Portugal, o lugar de Peias e possíveis vestígios da sua
família paterna, 60 anos depois que seu pai largara aquela terra para
nunca mais vê-la. Levado por um parente compungido, conhecido no local e
na hora, porém, o que encontrou foram só os retratos dos avós numa lápide
do cemitério do vilarejo, imagens que já trazia na lembranç ;a, pois eram
as mesmas fotografias que costumava ver nas mãos do pai, que perdera aos
14 anos de idade.
De certo modo, é o relato de viagem semelhante, ao interior de si mesmo e,
portanto, de volta às raízes, o que o leitor vai encontrar em Choro por
Ti, Belterra!, narrativa de Nicodemos Sena, publicado originalmente
como folhetim em 2014 no jornal O Estado do Tapajós, de Santarém do
Pará, na Amazônia brasileira, cidade natal do escritor. A diferença é que
Nicodemos Sena teve a oportunidade (e a felicidade) de, cinquentão, em
2014, levar o pai Bernardino Sena, então com 78 anos de idade, para ver o
que restara, mais de seis décadas depois, do lugar em que vivera “cinco
inesquecíveis anos de sua vida juvenil”.
Em 19 episódios, Nicodemos Sena reconstitui o dia em que fez essa viagem
de retorno às origens em companhia de seu pai, depois de um percurso de
algumas horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar numa estradinha de
terra que leva à Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de
Belterra, que na década de 1940 fora dirigida pela Ford Motor Company,
empresa do magnata norte-americano Henry Ford (1863-1947), que, em plena
Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tentaria fazer da extração da borracha
uma atividade lucrativa, fornecendo os pneumáticos necessários para
movimentar os veículos militares.
Não se pode dizer que se trata de um romance nem tampouco de um conto que
se tenha derramado por causa de uma prosa poética. Não é também uma
simples reportagem, pois não constitui a mera literalização dos
acontecimentos de um dia na estrada. Neste caso, cada encontro no caminho
com esporádicos moradores perdidos naquelas paragens do Brasil profundo
serve como motivo para um ou mais comentários, como aquele episódio em que
o cronista depara-se, em meio ao tórrido calor do meio-dia amazônico,
dentro de um casebre em que não havia água encanada e muito menos tratada,
com uma menina que não parava de manipular a tela de um telefone celular.
É, isso sim, um texto híbrido que se assume como uma crônica repassada de
lirismo, uma narração das vicissitudes vividas pelo narrador em companhia
do pai, que faz, com a ajuda do filho, uma viagem de retorno à infância
para reencontrar todos os fantasmas que ainda assolam seus pensamentos.
Ou ainda uma narrativa poética que, ao reunir musicalidade e
metaforização, faz com que o narrador desfie o novelo da memória, em tom
de conversa com o leitor em que não dispensa nem mesmo citações de
autores, como o português Fernando Pessoa (1888-1935), o colombiano
Gabriel García Márquez (1927-2014), o mexicano Juan Rulfo (1917-1986) e o
norte-americano William Faulkner (1897-1962). Como se sabe, o que une
esses autores de nacionalidades tão distintas é a construção metafórica de
um lugar mítico, que existe só na alma do próprio autor, como “o rio da
minha aldeia” do heterônimo pessoano Alberto Caeiro. Em resumo, o texto
dialoga com o mito do eterno retorno, ao praticar a intertextualidade com
discursos canônicos, reconstruindo, dessa forma, metáforas da precária
condição humana.
Autor de livros que já se tornaram referências obrigatórias dentro da
Literatura Brasileira, como os romances A espera do nunca mais
(1999), A noite é dos pássaros (2003) e A mulher, o homem e o
cão (2009), trilogia que constitui uma saga amazônica, Nicodemos Sena
mostra em Choro por ti, Belterra! que pode ser também considerado
um cronista da estirpe de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Rubem
Braga (1913-1990) ou Fernando Sabino (1923-2004).
A diferença é que, em vez da fugacidade dos registros do cotidiano das
ruas do Rio de Janeiro que se leem nas crônicas daqueles grandes mestres,
o que o leitor descobrirá nestes episódios é não só Amazônia que é vista
ainda como exuberante paraíso tropical, mas também aquela que governantes
corruptos permitiram que continuasse a ser destruída, tomada por
aventureiros “gananciosos e cruéis, os quais, sem escrúpulos, saqueiam e
depredam os bens da terra, auxiliados por ‘mucamas’ e ‘mordomos’
(degenerados filhos da terra) que, a troco de migalhas e posições,
passaram-se para o lado dos inimigos”.
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(*) Apresentação escrita especialmente para o livro Choro por
ti, Belterra! (págs. 7/11). |
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Choro por ti, Belterra!,
de Nicodemos Sena, com apresentação de Adelto Gonçalves. Taubaté-SP:
Editora LetraSelvagem, 192 páginas, R$ 30,00, 2017. E-mail:
letraselvagem@letraselvagem.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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