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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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Saga de um mundo sem rumo |
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Às cegas
(Alla cieca), de Claudio Magris, tradução de Maurício Santana
Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 376 págs., R$ 59,90, 2009. Site:
www.companhiadasletras.com.br
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I |
A História, geralmente, só preserva os nomes
dos “grandes”, desde a Antiguidade até os nossos dias, embora essa postura
tenha passado por certo revisionismo, desde que Lucien Febvre (1878-1956),
co-fundador com Marc Bloch (1886-1944) da École des Annales, ao
final dos anos 1920, defendeu a leitura microcóspica e a particularização
dos assuntos históricos. Resgatar a história dos derrotados sempre foi
difícil porque, raramente, eles deixaram relatos de suas vivências.
Esse é o grande problema com que se depara o
pesquisador quando, por exemplo, procura escrever sobre o regime da
escravidão no Brasil. Nos arquivos oficiais, por exemplo, só encontramos
relatos dos escravocratas, geralmente fazendeiros que tinham tido acesso à
educação formal. Dos “humilhados e ofendidos”, nenhum relato, até porque
não sabiam ler nem escrever.
Assim também se dá na reconstituição da história
política contemporânea. É, de certo modo, fácil reconstituir a história de
um sindicalista que tenha ascendido na vida e chegado a ocupar cargos
importantes num partido ou até mesmo no governo. Nunca faltam testemunhos
daqueles que conviveram com ele na intimidade, a favor ou contra. Já o
“revolucionário” que prestou serviços a um partido clandestino e à causa
operária, mas que nunca deixou os subterrâneos da História, desse
dificilmente podemos conseguir relatos sobre a sua militância. Décadas
depois, não só serão raros os testemunhos desse período – quase sempre
marcado por assassinatos e “desaparecimentos” – como a memória dos
sobreviventes acabará por vacilar e trair os fatos.
Nesse caso, a única saída é recorrer à ficção, que
pode adquirir foro de grandeza se quem a desenvolver for um escritor da
estirpe de Claudio Magris, não só o maior romancista italiano da
atualidade como um ensaísta incomparável. É o que se pode constatar em
Às cegas (Alla cieca), romance de 2005 publicado no Brasil
em 2009 pela Companhia das Letras em tradução de Maurício Santana Dias.
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II |
Trata-se de um relato da vida de Salvatore Cippico,
ou Cipiko, nascido em 1910, antigo militante do Partido Comunista italiano
que, aos 80 anos de idade, encontra-se internado em fase agônica numa
grande clínica psiquiátrica de Trieste, cidade na fronteira com a Croácia,
que, no início do século XX, abrigou aquele que é considerado o maior
romancista de todos os tempos, o irlandês James Joyce (1882-1941), e onde
nasceu e viveu o judeu Ettore Schmitz (1861-1928), mais conhecido como
Italo Svevo.
O relato de Cippico é feito ao médico que o
acompanha, doutor Ulcigrai, que o incentiva a colocar no papel as suas
aventuras. Provavelmente em função do mal de Alzheimer que o acomete,
Cippico já confunde realidade com ficção, ao se assumir como Jorgen
Jorgensen, aventureiro dinamarquês que viveu no século XIX e combateu
durante as guerras napoleônicas, foi rei da Islândia por três semanas,
fundou a capital da Tasmânia, Hobart Town, prisioneiro em Newgate e em
Port Arthur e escreveu sermões e uma autobiografia, obviamente
controversa, tal a aura fantástica que o cercava.
Sem saber bem quem é, confundindo o mundo vivido com
o imaginado a partir de aventuras lidas ou ouvidas, Cippico é, na
realidade, outro tipo de aventureiro, daqueles que embarcaram e
naufragaram ao aderir a uma das utopias que empolgaram o século XX – o
comunismo. A outra utopia – que não chegou ao poder – foi a anarquista e
não a liberal, ao contrário do que se lê no texto de apresentação na
“orelha” do livro. Até porque o liberalismo não surgiu como ideia de um ou
mais pensadores, mas como resultado da própria experiência humana, ainda
que não faltem teóricos liberais.
Obviamente, o capitalismo defendido pela ideia
liberal não é só virtude nem tampouco tem como objetivo o bem-estar da
sociedade, mas está comprometido apenas com o lucro daqueles que detêm o
capital. Mesmo assim, é ainda o melhor regime econômico – talvez o único –
já criado, ou ao menos aquele que apresenta mais virtudes que defeitos. E
oferece oportunidades àqueles que sabem aproveitá-las. Cortar ou minorar
os seus defeitos seria tarefa que caberia ao Estado, não fosse todo
governo quase sempre um ajuntamento de corruptos.
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III |
O relato de Cippico é a de um homem que viveu os mais
conturbados episódios do século XX, combatendo na Guerra Civil espanhola
(1936-1939, ao lado dos republicanos, que, como se sabe, eram
influenciados pelo anarquismo catalão, e, depois, haveria de se engajar na
resistência italiana ao fascismo de Benito Mussolini (1883-1945). Preso e
torturado, seria deportado para o campo de concentração de Dachau, na
Alemanha nazista, onde contraiu tuberculose óssea. Ao sobreviver, iria
lutar pela construção do socialismo na Iugoslávia, do marechal Josip Broz
Tito (1892-1980).
Em 1947, Cippico migrou para a Iugoslávia com mais
dois mil monfalconeses – ou seja, trabalhadores dos estaleiros navais de
Monfalcone, na Itália –, a pretexto de ajudar a construir o socialismo e
trabalhar nas construções de Fiume, atual Rijeka, na Croácia. Mas, depois
do rompimento de Tito com Josef Stalin (1878-1953), Cippico é preso e
acusado pelos iugoslavos de membro do Cominform (birô comunista de
informações que pretendia resgatar as ligações institucionais dos partidos
comunistas do mundo inteiro). Seria deportado em 1949 para o gulag
de Goli Otok, a ilha Nua ou Calva, no mar Adriático, onde acabaria
submetido, como os demais, a trabalhos desumanos, sevícias e torturas.
Em outras palavras: depois de torturado pelos
asseclas do nazismo, aquele que daria os melhores anos de sua vida pela
causa socialista seria torturado exatamente por aqueles que diziam
construir o socialismo na Terra. Ao lado dos companheiros, “que tinham
decidido deixar tudo, casa, trabalho, pátria, para ir à Iugoslávia
construir o socialismo”, Cippico seria acusado de espião de Stalin, de
traidor da Iugoslávia, de inimigo do povo e, em seguida, torturado e
deportado para uma ilha, perdendo por isso todas as esperanças que poderia
ter na espécie humana.
Tateando no escuro, às cegas, num mundo que parece
ter perdido o seu rumo, Cippico confunde-se com Jorgen Jorgensen, ao
rememorar sem parar: “(...) envelhecer, adoecer, ver morrer os amigos,
acertar as contas com a infâmia, a vergonha e a traição que você traz
dentro de si. E como se esse acúmulo não bastasse, ainda o amor? É uma
guerra muito dura, entende-se perfeitamente que às vezes não resta nada
senão desertar”.
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III |
Para este resenhista, igualmente a caminho do
ocaso de sua vida, estas imagens do Adriático e de Trieste são evocativas
porque lembram uma tarde de agosto de 1982, ao pé do Castelo de San
Giusto, a ler a edição do dia de Il Piccolo della Sera e a ouvir
as transmissões da Rádio Tirana, da Albânia, em sua edição em português. E
de como chegou à conclusão de que teria de recusar o convite de um
emissário do Partido Comunista do Brasil para ir à terra de Enver Hoxa
(1908-1985) recolher material para escrever um livro sobre aquele
“paraíso” comunista que, em poucos anos, ruiria como um castelo de cartas.
Olhando para a vida imaginada de Cippico, ainda bem que este resenhista
não desperdiçou os melhores anos de sua vida com uma utopia desastrada nem
virou coveiro de um mundo morto. |
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IV |
Nascido em Trieste em 1939, Claudio Magris foi
professor catedrático de Língua e Literatura Alemã na universidade local,
até se aposentar em 2006. É filólogo e tradutor para o italiano de Ibsen
(1828-1906), Kleist (1777-1811) e Schnitzler (1862-1931), além de
articulista do Corriere della Sera. Foi senador de 1994 a 1996. É
autor de vários livros de ensaios e ficção, como O mito habsbúrgico na
literatura austríaca moderna (1963), Atrás das palavras
(1978), Danúbio (1996), Microcosmos (1997) e O
senhor vai entender (2006), entre outros. No Brasil, a Companhia das
Letras publicou também Danúbio, Microcosmos e O
senhor vai entender.
Nome frequentemente indicado nas listas para o Prêmio
Nobel de Literatura, Magris, em 2013, foi contemplado em Portugal com o
primeiro Prêmio Europeu Helena Vaz da Silva para a divulgação do
Patrimônio Cultural, instituído pela Europa Nostra, em parceria com o
Centro Nacional de Cultura e o Clube Português de Imprensa. Com
Microcosmos, ganhou o Prêmio Strega de 1997, na Itália. Em 2009, na
Feira do Livro de Frankfurt, recebeu o Prêmio da Paz dos editores alemães.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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