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REVISTA
TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE |
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Adelto Gonçalves |
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‘Goto’, um romance pós-moderno |
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I |
Itararé, pequena cidade do Estado de São
Paulo na divisa com o Paraná, ganhou notoriedade à época do movimento
civil-militar de 1932 em que a alta burguesia paulista, desalojada do
poder em 1930, tentou, de maneira desastrada, afastar pelas armas o regime
instaurado igualmente à força por Getúlio Vargas (1882-1954), fazendeiro
gaúcho que soube galvanizar o ressentimento das demais unidades da
Federação contra a chamada política do “café com leite”.
Como se sabe, desde o advento da República,
capitalistas paulistas e mineiros, praticamente, tinham o monopólio dos
benefícios e benesses que a União poderia oferecer, usufruindo-os à
exaustão, enquanto os demais Estados chafurdavam no subdesenvolvimento,
quase todos entregues à espoliação promovida por suas oligarquias locais.
Em 1932, deu-se então o episódio da projetada
batalha de Itararé, “aquela que não houve” porque as forças de um lado e
de outro concluíram que não valia à pena levar adiante aquela guerra
fratricida, com a capitulação das elites paulistas, que já haviam sido
derrotadas em 1930, com o afastamento abrupto do presidente Washington
Luiz (1869-1957). O episódio foi utilizado, de maneira jocosa, pelo
jornalista, humorista e escritor Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly
(1895-1971), conhecido por Apporelly, que passou a apresentar-se sob o
falso título de nobreza de barão de Itararé.
Obviamente, o que houve foi uma conciliação de
interesses, que permitiria a Vargas levar até 1945 um projeto de governo
autoritário e populista que haveria de flertar ostensivamente com o
fascismo e o nazismo, até a virada em favor dos Aliados (Estados Unidos,
Reino Unido e União Soviética) que se opunham aos países do Eixo
(Alemanha, Itália e Japão). Hoje, sabe-se, porém, que a história oficial
escondeu que houve mortos de lado a lado em Itararé, entre os invasores
gaúchos e os resistentes paulistas.
Mais de oitenta anos depois, a bucólica Itararé
agora entra pela porta da frente da Literatura Brasileira e ganha foro
comparável ao do Yoknapatawpha County de William Faulkner
(1897-1962) na literatura norte-americana, e de Macondo de Gabriel García
Márquez (1927-2014) e de Santa Maria de Juan Carlos Onetti (1909-1994) na
literatura latino-americana. A paulista Itararé é o palco das aventuras
contadas por Aristides, ou Ari, ou ainda Goto, personagem do romance
Goto – o reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé
(Joinville-SC, Editora Clube de Autores, 2014), de Silas Correa Leite
(1952).
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II |
Obra do século XXI, em que toda a coerência
formal da narrativa já foi desrespeitada, Goto surge como romance
pós-moderno, ou seja, é fragmentado, desintegrado e de linguagem rebelde,
assumindo-se como não-romance ou anti-romance, ao romper com as fôrmas
literárias do Romantismo e do Modernismo, como diria o insuperável
professor e ensaísta Massaud Moisés (1928).
Afinal, o barqueiro, em seu trabalho de levar
gente de uma margem para outra do rio Itararé, contava para o que ouvia,
mas falando na primeira pessoa, exatamente do mesmo modo como havia ouvido
o caso. Com isso, o romance adquire também um sentido polifônico, ou
seja, composto por muitas vozes que não a do autor, tal como definiu o
crítico literário e filósofo da linguagem russo Mikhail Bakhtin
(1895-1975), ao analisar a obra de Fiódor Dostoiévski (1821-1881). É nesse
sentido que se pode dizer que Goto alcança o status de
pós-moderno.
De fato, dono de um estilo inconfundível, Silas
Correia Leite é, no dizer do poeta bielo-russo-brasileiro Oleg Almeida
(1971), um dos mais originais escritores deste Brasil pós-moderno, com uma
visão da realidade que se manifesta de maneira socrática: com ironia,
coragem e irreverência. E isso o leitor constata com facilidade logo nas
primeiras linhas deste romance permeado por “causos” contados pelo
barqueiro de Itararé, como o do ancião analfabeto que assinava havia mais
de 50 anos um jornalão do Rio de Janeiro apenas porque precisava de papel
farto para embrulhar a carne de seu açougue.
Além dos “causos” contados em linguagem
caipira, há o depoimento em que Goto, espécie de alter ego do
autor, conta as agruras pelas quais passou nas mãos dos esbirros da
ditadura civil-militar (1964-1985) que tanto infelicitou a Nação
brasileira:
“Era o regime de exceção. Era o arbítrio.
Eu mesmo senti na pele a dor crucial dessa época (....). Pendurado num pau
de arara, sem água, sem luz e sem pão, eu não podia dizer muito
porque nunca tinha atentado contra ninguém, minha única arma era a palavra
escrita e falada, porque eu era bom de dialética e sabia ocupar meu espaço
denunciando, reclamando, pedindo por eleições diretas e o fim das
insanidades palaciais. Se eu soubesse muita coisa, de qualquer maneira,
confesso que jamais contaria, eu não era um alcaguete e sabia suportar
pressões. (Mas apanhei muito. Várias vezes. Quase morri. (...).”
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III |
Silas Correa Leite, educador, jornalista
comunitário e conselheiro em Direitos Humanos, começou a escrever aos 16
anos no jornal O Guarani, de Itararé-SP. Migrou para São Paulo em
1970. Formado em Direito e Geografia, é especialista em Educação pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, com extensão
universitária em Literatura na Comunicação na Escola de Comunicações e
Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP). É autor também, entre
outros, de Porta-lapsos, poemas (Editora All-Print-SP), Campo
de trigo com corvos, contos (Editora Design-SC), obra finalista do
prêmio Telecom, Portugal, 2007, e O homem que virou cerveja: crônicas
hilárias de um poeta boêmio (Giz Editorial-SP), Prêmio Valdeck
Almeida de Jesus, Salvador-BA, 2009.
Seu e-book O rinoceronte de
Clarice, onze ficções, cada uma com três finais, um feliz, um de
tragédia e um terceiro final politicamente incorreto, por ser pioneiro,
foi destaque em jornais como O Estado de S.Paulo, Diário
Popular, Revista Época, Revista Ao Mestre Com Carinho e
Revista Kalunga e na rede televisiva. Por ser único no gênero e o
primeiro livro interativo da Rede Mundial de Computadores, foi recomendado
como leitura obrigatória na disciplina Linguagem Virtual no Mestrado de
Ciência da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi tema de
tese de doutorado na Universidade Federal de Alagoas (“Hipertextualidade,
o livro depois do livro”).
Silas Correa Leite recebeu os prêmios Paulo
Leminski de Contos, Ignácio Loyola Brandão de Contos; Lygia Fagundes
Telles para Professor Escritor, Prêmio Biblioteca Mário de Andrade (Poesia
Sobre São Paulo), Prêmio Literal (Fundação Petrobrás), Prêmio Instituto
Piaget (Lisboa, Portugal/Cancioneiro Infanto-Juvenil); Prêmio Elos
Clube/Comunidade Lusíada Internacional; Primeiro Salão Nacional de Causos
de Pescadores (USP), Prêmio Simetria Ficções e Fantástico, Portugal
(Microconto), entre outros. Tem trabalhos publicados em mais de 100
antologias e até no exterior (Antologia Multilingue de Letteratura
Contemporânea, Trento, Itália; e Cristhmas Anthology, Ohio,
EUA). Acaba de publicar pela Editora Pragmatha, de Porto Alegre-RS,
Pirilâmpadas, poesia infanto-juvenil.
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Goto – o reino encantado
do barqueiro noturno do rio Itaraé, de Silas Correa Leite.
Joinville-SC: Editora Clube de Autores, 432 págs., 2014. Site:
www.clubedeautores.com.br
E-mail: poesilas@terra.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os Vira-latas da Madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002), Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br |
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